Explosão em Alcântara e os incômodos gerados pelo programa espacial brasileiro
Militares relataram que alguns testes foram interrompidos por interferências eletrônicas emitidas por uma aeronave que sobrevoava o local
Há 22 anos, em 22 de agosto de 2003, o Brasil vivenciava a pior tragédia da história de seu programa aeroespacial. Uma explosão destruiu o Veículo Lançador de Satélites (VLS) e a plataforma de lançamentos da Base de Alcântara, no Maranhão, matando 21 pessoas.
A explosão ocorreu três dias antes da data prevista para o lançamento do primeiro foguete orbital construído com tecnologia brasileira, que visava transportar dois satélites científicos.
A catástrofe causou um enorme retrocesso ao programa espacial brasileiro, em função da morte de alguns dos maiores especialistas em engenharia espacial do país.
O comando da Aeronáutica classificou o ocorrido como um acidente, atribuindo a explosão ao acionamento não planejado de um dos motores, possivelmente desencadeado por uma falha elétrica ou interferência eletromagnética.
Muitos militares e especialistas, no entanto, aventaram a possibilidade de sabotagem. Se for o caso, basta uma análise histórica para notar que esse não foi o único ataque que o nosso programa espacial sofreu.
O programa espacial
As raízes do programa espacial brasileiro remontam ao período posterior à Segunda Guerra Mundial. Testemunhando os programas avançados das grandes potências, incluindo o uso dos primeiros mísseis balísticos, alguns militares passaram a defender a necessidade de fomentar o desenvolvimento da tecnologia aeroespacial no país.
Após a inauguração do Centro Técnico de Aeronáutica em São José dos Campos e a criação do curso de propulsão no Instituto Militar de Engenharia (IME), o Brasil construiu pequenas estações de lançamento e desenvolveu seus primeiros projetos de foguetes movidos a combustível sólido.
Na década de 50, a Marinha desenvolveu o programa SOMMA e a Aeronáutica o SOMFA, ambos produzindo pequenos foguetes para sondagens meteorológicas. Em 1956, após a assinatura de um acordo com os Estados Unidos, uma estação de rastreamento foi montada em Fernando de Noronha.
O estabelecimento formal do Programa Espacial Brasileiro ocorreu em meados em 1961, após o país receber a visita do cosmonauta soviético Yuri Gagarin, o primeiro ser humano a viajar para o espaço. Na ocasião, o presidente Jânio Quadros inaugurou o Grupo de Organização da Comissão Nacional de Atividades Espaciais (GOCNAE), embrião do atual Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
Em outubro de 1965, o governo brasileiro inaugurou o Centro de Lançamento da Barreira do Inferno (CLBI), a primeira base para lançamento de foguetes da América do Sul, localizada em Parnamirim, no Rio Grande do Norte. O local seria utilizado no lançamento dos primeiros foguetes da família Sonda, destinados a missões suborbitais de exploração do espaço.
A criação da Comissão Brasileira de Atividades Espaciais (COBAE) representou uma tentativa de unificar e coordenar o trabalho das instituições envolvidas em pesquisas aeroespaciais. Posteriormente, a comissão seria substituída pela Agência Espacial Brasileira (AEB)
Em 1979, o governo criou a Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), um plano ambicioso que visava fomentar autossuficiência nacional em tecnologia espacial, prevendo investimentos bilionários na construção de satélites, foguetes e centros de lançamento. Foi nesse contexto que surgiu a Base de Alcântara.
A Base de Alcântara e o VLS
Inaugurado em 1º de março de 1983, o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) foi construído como uma alternativa às limitações físicas da base da Barreira do Inferno. O complexo está situado em uma área de 620 quilômetros quadrados, equipada com torres de lançamento, centros de controle e antenas de rastreamento.
O CLA entrou em operação em 1989, durante a “Operação Pioneira”, quando foram lançados mísseis do tipo SBAT (“Sistema Brasileiro Ar-Terra”, uma família de mísseis fabricados pela Avibras).
Localizada no litoral do Maranhão, na Região Metropolitana de São Luís, a base de Alcântara é considerada o melhor centro de lançamentos do mundo em termos de localização, por estar situada a apenas 2,3 graus ao sul da Linha do Equador.
A velocidade de rotação da Terra na altura do Equador auxilia o impulso dos lançadores, o que permite uma redução de até 30% no consumo de combustível. Além disso, a disposição da península de Alcântara permite lançar espaçonaves em uma ampla gama de órbitas e a proximidade com o Oceano Atlântico minimiza os riscos operacionais.
Alcântara também se destaca por possuir condições climáticas estáveis, com regime de chuvas bem definido e ventos amenos, o que possibilita o funcionamento da base durante todas as estações do ano.
A construção do CLA ocorreu em paralelo ao desenvolvimento do Veículo Lançador de Satélites, o VLS. Ele deveria ser o primeiro foguete produzido com tecnologia brasileira a ser enviado para o espaço.
Construído pelo Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA), o VLS era um foguete de quatro estágios, com 19,4 metros de altura e 50 toneladas. Desenvolvido para colocar satélites em órbita, tinha capacidade de transportar até 380 quilos.
As duas primeiras tentativas de lançamento orbital do VLS falharam, forçando o acionamento do comando de autodestruição logo após a decolagem. Os técnicos revisaram então o projeto ponto a ponto, iniciando os preparativos para o terceiro voo de qualificação.
Incômodos, espionagens e sabotagens
Desde o início, a construção da base de Alcântara e o desenvolvimento do VLS incomodaram algumas potências ocidentais — sobretudo os Estados Unidos. Isso ocorreu porque a autonomia no lançamento e operação de satélites colocaria o Brasil em um novo patamar de capacidade científica e militar.
A tecnologia empregada para construir e lançar um foguete como o VLS é essencialmente a mesma utilizada na construção de mísseis de longo alcance. Isso é, o sucesso no lançamento do VLS teria o potencial de conduzir o Brasil ao clube extremamente restrito das potências que possuem mísseis balísticos intercontinentais.
Além disso, uma base de lançamentos localizada próxima à Linha do Equador seria muito competitiva, com um enorme potencial para abocanhar largas fatias do lucrativo mercado de lançamento de satélites comerciais, dominado por países como Estados Unidos e França.
As tentativas de barrar o avanço do programa espacial brasileiro começaram já nos anos 80. Em 1986, as instalações do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial foram invadidas por um bando armado, que subtraiu documentos confidenciais sobre o VLS e sobre a base de Alcântara.
O projeto de utilizar o VLS para colocar em órbita o Satélite de Sensoriamento Remoto (SSR-1) desenvolvido pelo INPE também passou a sofrer boicote de políticos e militares subordinados aos interesses norte-americanos.
Em 1991, Fernando Collor cedeu à pressão dos Estados Unidos e rejeitou um acordo de transferência de tecnologia aeroespacial proposto pela Rússia. Ele também cortou a subvenção ao VLS, preferindo celebrar contrato com a Orbiter, que colocou o SSR-1 em órbita utilizando o foguete norte-americano Pegasus.
O entreguismo de FHC
A subordinação do programa espacial brasileiro aos ditames do governo norte-americano se aprofundou durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Em outubro de 1995, obedecendo às ordens de Washington, FHC assinou a adesão ao Regime de Controle da Tecnologia de Mísseis, através do qual o Brasil abriu mão do direito de desenvolver ou adquirir mísseis de longo alcance. E em 1998, FHC incluiu o Brasil no Tratado de Não Proliferação Nuclear, renunciando ao direito de desenvolver armas nucleares.
Durante o primeiro mandato de FHC, o governo dos Estados Unidos confiscou os motores do VLS que tinham sido encaminhados para receber um tratamento térmico em uma siderúrgica norte-americana.
FHC também estabeleceu sucessivos cortes orçamentários que levaram ao sucateamento e desmonte do Instituto de Aeronáutica e Espaço e do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial.
Em 1994 foram realizados os primeiros testes dos motores S-43 do VLS, interrompidos por uma explosão. O incidente foi investigado pelo Serviço de Inteligência da Aeronáutica, que admitiu a possibilidade de sabotagem.
FHC também indicou Luiz Gylvan Meira Filho para presidir a Agência Espacial Brasileira (AEB). Meira Filho estabeleceu uma série de contratos de serventia duvidosa com a NASA, para a qual foram repassados recursos públicos vultosos, sem qualquer contrapartida de transferência tecnológica.
Como um sintoma do desinteresse da gestão FHC pelo programa espacial brasileiro, nenhuma autoridade do governo compareceu ao lançamento dos dois protótipos do VLS em 1997 e 1999.
O Acordo de Salvaguardas Tecnológicas
No ano 2000, como um ato final de seus ataques ao programa espacial brasileiro, FHC assinou o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas, passando o controle da base aeroespacial de Alcântara para os Estados Unidos. O documento dava à NASA o uso exclusivo das instalações, banindo o acesso de brasileiros à base. Uma das cláusulas determinava que os materiais trazidos pelos Estados Unidos para Brasil não poderiam ser inspecionados ou vistoriados pelas autoridades brasileiras.
O acordo também proibia o Brasil de produzir foguetes e de investir em tecnologia espacial de uso militar, forçando-o a desistir do desenvolvimento do VLS. As cláusulas foram consideradas tão lesivas à soberania nacional que incomodaram até a base aliada do ex-presidente e acabaram sendo modificadas por ação do Congresso.

Destroços da estrutura da plataforma de lançamento do VLS após a explosão em Alcântara
Rose Brasil / Agência Brasil, via Wikimedia Commons
Após vencer a eleição presidencial em 2002, o presidente Lula anunciou que não daria continuidade às negociações do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas, por considerá-lo extremamente desvantajoso para o Brasil.
Paralelamente, o governo Lula retomou as negociações com a Rússia, que havia proposto um acordo de transferência de tecnologia de motores de propulsão líquida para uso no VLS. Em troca, os russos pediram permissão para o uso compartilhada da base de Alcântara.
Posteriormente, o Brasil também firmaria um acordo de cooperação com a Ucrânia, visando fabricar um novo foguete lançador de satélites — o Cyclone 4.
A explosão
Em agosto de 2002, o coronel do Exército Roberto Monteiro de Oliveira deu uma entrevista gravada durante a qual fez uma premonição: afirmou que o VLS, programado para ser lançado no ano seguinte na Base de Alcântara, não decolaria.
Conforme a previsão do coronel, o lançamento seria cancelado ou o foguete explodiria em função de uma sabotagem conduzida pelos Estados Unidos: “Eu vou bancar o profeta. Aquilo é tão importante para eles que eu vou dar duas hipóteses: ou não vão lançar (…) ou vão lançar e ele vai explodir. (…) Não há uma terceira hipótese. Porque se lançar e funcionar, tudo isso que está aqui [no Acordo de Salvaguardas Tecnológicas] nós podemos jogar na lata do lixo”.
A previsão do coronel se concretizou. Em 22 de agosto de 2003, poucos meses após o estabelecimento das novas diretrizes do programa espacial, ocorreu a explosão do VLS e de sua plataforma na base de Alcântara.
A explosão matou 21 engenheiros e técnicos ativos projetos mais importantes da Agência Espacial Brasileira e deixou prejuízos materiais estimados em mais de 100 milhões de reais. Dezenas de pessoas sofreram ferimentos e queimaduras.
O incidente ocorreu três dias antes do lançamento oficial do VLS. Caso a decolagem fosse bem sucedida, o foguete colocaria dois satélites brasileiros em órbita: o SATEC, desenvolvido pelo INPE, e o UNOSAT, o primeiro nanossatélite de aplicações científicas do país, desenvolvido pela UNOPAR.
Suspeitas de sabotagem
A investigação conduzida pelo comando da Aeronáutica concluiu que a explosão ocorreu por uma falha elétrica que fez com que o foguete entrasse em processo de ignição antes da hora.
A explicação, entretanto, foi recebida com reservas por alguns militares e especialistas, que acharam prudente não descartar a possibilidade de sabotagem. Transmissão por radiofrequência, disparo de ondas eletromagnéticas e mesmo um tiro de fuzil foram apontados como métodos simples de sabotagem que poderiam ter causado a detonação.
Alguns acontecimentos reforçaram as suspeitas de sabotagem. Uma comissão parlamentar apontou a existência de interferências eletrônicas oriundas de navios estrangeiros ancoradas na Baía de São Marcos, nos arredores da base.
Militares relataram que, nas semanas que antecederam a explosão, alguns testes realizados em Alcântara foram interrompidos por interferências eletrônicas emitidas por uma aeronave que sobrevoava o local.
A suspeita de tentativa de sabotagem era tão grande que a Aeronáutica decretou uma zona de interdição em torno da base de Alcântara e chegou a alterar a data prevista para o lançamento do VLS.
Dias antes do lançamento, os militares fizeram um levantamento nos hotéis do Maranhão e descobriram que uma quantidade suspeita de turistas norte-americanos estavam hospedados em hotéis de Alcântara, uma cidade de 20 mil habitantes.
Boias com equipamentos de telemetria também foram apreendidas nas praias próximas à base de Alcântara. Os equipamentos eram dotados de baterias de longa duração e painéis solares.
Acionados por controle remoto via satélite, os dispositivos tinham a capacidade de causar interferência nos sistemas de navegação de foguetes, além de capturar, enviar e processar dados de longa distância. Nenhuma empresa ou país admitiu ser proprietário dos equipamentos.
Suspeitas de sabotagem também recaíram sobre a França, que chegou a ser alvo de investigações da ABIN. A justificativa estava no fato de que a base de Alcântara poderia se converter na principal concorrente do Centro Espacial de Kourou, localizado na Guiana Francesa, caso começasse a lançar satélites comerciais.
“Uma política de longa data…”
Os Estados Unidos seguiram tentando boicotar o programa espacial brasileiro após a explosão na base de Alcântara. Em 2011, o WikiLeaks publicou um telegrama diplomático enviado pelo governo norte-americano à sua embaixada em Brasília, contendo recomendações às autoridades ucranianas.
No documento, o governo dos Estados Unidos afirma ter “uma política de longa data” que visa impedir o Brasil de ter um programa de produção de foguetes espaciais e orienta o governo ucraniano a não transferir tecnologia do setor aos cientistas brasileiros.
“Queremos lembrar às autoridades ucranianas que os Estados Unidos não se opõem ao estabelecimento de uma plataforma de lançamentos em Alcântara, contanto que tal atividade não resulte na transferência de tecnologias de foguetes para o Brasil”, afirmava o telegrama.
Em 2018, o governo dos Estados Unidos autorizou a publicação de um lote de documentos produzidos pela CIA que perderam o status de confidencialidade. Entre os documentos, há relatórios demonstrando que o serviço secreto norte-americano espionava e monitorava o programa espacial brasileiro desde os anos 80 e agiu diversas vezes para obstruir acordos de cooperação científica com outros países.
Quase duas décadas após a explosão na base de Alcântara, o programa espacial brasileiro ainda não se recuperou das perdas. A partir de 2016, o setor enfrentou sucessivos cortes orçamentários, levando à paralisação de pesquisas e ao sucateamento e desmonte da estrutura preexistente. Em 2018, o Brasil abandonou oficialmente o projeto de construção de um foguete lançador de satélites em parceria com a Ucrânia.
Em março de 2019, o ex-presidente Jair Bolsonaro assinou com Donald Trump um novo Acordo de Salvaguardas Tecnológicas, transferindo o uso da base aeroespacial de Alcântara para os Estados Unidos. O acordo foi aprovado pelo Congresso brasileiro e entrou em vigor em 2022, dando aos norte-americanos o tão almejado controle do centro aeroespacial.
O negócio não trouxe quaisquer ganhos para o Brasil. A promessa de que o arrendamento da base de Alcântara para os Estados Unidos geraria até US$ 3,5 bilhões por ano mostrou-se ilusória. Passados três anos da efetivação do acordo, o país não recebeu um centavo. Cedeu o uso de uma grande área de seu território e a base espacial mais bem localizada do mundo em troca de nada.























