Como voto obrigatório redefiniu o mapa político do Chile
Polarização coexiste com insatisfação difusa, abrindo espaço para discursos antissistema e pressionando as coalizões tradicionais
A primeira eleição presidencial chilena com voto obrigatório desde 2012 gerou uma reorganização no mapa político. Com 99% das urnas apuradas, os resultados preliminares garantem um segundo turno entre Jeannette Jara (26,85%), candidata governista e militante do Partido Comunista, que terminou liderando a corrida, seguida por José Antonio Kast (23,92%), do ultradireitista Partido Republicano.
Mas a surpresa deste pleito ficou com o terceiro lugar: o candidato Franco Parisi, com 19,71%, centrista com discurso antipartidário, consolidando-se como a maior força antissistema do país e deslocando Johannes Kaiser (13,94%) e Evelyn Matthei (12,46%), representante da direita tradicional e grande perdedora da noite.
O voto obrigatório mobilizou mais de 11,6 milhões de eleitores, transformando a composição do eleitorado e levando à participação de segmentos historicamente ausentes: jovens, trabalhadores informais, setores superendividados e com baixa adesão partidária. Essa mobilização em massa alterou o desempenho esperado das candidaturas tradicionais e abriu espaço para opções disruptivas, especialmente em territórios populares onde Parisi (principalmente no norte do país) e Kast cresceram com força.
Em seu discurso, Jara interpretou os resultados como um sinal de renovação democrática: “a democracia deve ser cuidada. Custou muito para recuperá-la para que hoje ela seja colocada em risco”. Para o segundo turno, ela anunciou uma mudança de rumo em direção aos setores que não se inclinaram por nenhuma das duas principais candidaturas: “quase metade dos chilenos não votou nem em mim nem em Kast. A partir de amanhã, vamos sair para ouvi-los atentamente”.
Jara também surpreendeu ao reconhecer explicitamente o desempenho de Parisi: “ele soube interpretar com medidas radicais e inovadoras um grande sentimento cidadão, merece nosso respeito”. Sua estratégia visa capturar parte desse voto volátil, permeável a discursos econômicos duros, contrários à classe política e centrados no custo de vida.
Da direita, Kast declarou que a chave para o segundo turno será a unidade: “o Chile é mais importante do que os partidos. Podemos recuperar e reconstruir nossa Pátria”. O ultradireitista enfatizou a importância do resultado parlamentar e pediu a seus adeptos que “permaneçam até o último voto”, confiando que seu setor conseguirá uma bancada ampliada graças ao impulso de Kaiser e Matthei.
O próprio Kaiser reiterou seu apoio ao candidato republicano: “cumprimos nossa palavra, vamos apoiar sua candidatura no segundo turno”, afirmou. O “Milei chileno” definiu-se como parte de uma força política “que veio para ficar” e prometeu fiscalizar Kast para manter “a defesa dos princípios da liberdade”.

Jara e Kast vão disputar segundo turno no Chile
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Parisi e o impacto do voto obrigatório
O fenômeno Parisi se consolidou como o grande ator inesperado da noite. Seu desempenho superior ao previsto pela maioria das pesquisas se explica por uma mistura de mal-estar econômico, rejeição aos partidos tradicionais e uma demanda transversal por estabilidade financeira. O discurso centrado em dívidas, eficiência do Estado e desconfiança em relação à “classe política” conectou-se particularmente com eleitores novos ou historicamente abstencionistas: nem fascista, nem comunista.
A questão estratégica é para onde irão esses votos no segundo turno. Não se trata de um eleitorado orgânico ou disciplinado: parte dele pode se inclinar por Kast, especialmente em áreas onde a segurança tem mais peso (ou seja, o norte do país, onde Parisi venceu); outro segmento pode votar em branco ou nulo; e um terceiro grupo pode atender à mudança discursiva de Jara em direção a garantias econômicas concretas, como sua ênfase em salários, custo de vida e proteção social, ou mesmo diante do temor de um governo de direita instável.
Um segundo turno sob novas regras
A eleição de 14 de dezembro será o primeiro segundo turno presidencial em que o voto obrigatório definirá completamente o comportamento do eleitorado. Ao contrário dos ciclos anteriores, a disputa não será apenas nos bastiões tradicionais de cada setor, mas em um universo ampliado que inclui milhões de eleitores pouco politizados e altamente sensíveis a mensagens sobre segurança, inflação, acesso ao emprego e endividamento.
O mapa político chileno, após este domingo, ficou irreconhecível em relação à década anterior. O que acontecer nas próximas quatro semanas dependerá da capacidade de cada candidatura de interpretar o mal-estar e as expectativas do país.























