O que está por trás do sucesso da skincare sul-coreana no Brasil?
Coreia do Sul exporta cultura do cuidado da pele em forma de soft power, junto com K-pop e K-dramas; especialista associa ‘identificação’ ao interesse crescente entre brasileiros
Em menos de cinco anos, a empresa Jini Cosméticos, que revende produtos de beleza e de skincare da Coreia do Sul, abriu três lojas físicas em São Paulo. Na contramão de comércios que fecharam suas portas devido ao isolamento social durante a pandemia de covid-19, o “fica em casa” abriu uma possibilidade para o empreendimento: a visibilidade à cultura sul-coreana por meio da música K-pop, do audiovisual K-drama, mas também da beleza, o K-beauty.
A partir de obras disponibilizadas em aplicativos de streaming, como novelas, e músicas de grupos da Coreia do Sul, o país e sua cultura ganharam espaço no Brasil. As produções apresentaram um estilo de vida que atraiu muitos brasileiros de todas as faixas etárias e gêneros.
Entre os aspectos que chamaram a atenção dos espectadores foi, sobretudo, o ritual do cuidado da pele, mais conhecido como a “skincare sul-coreana”. Assim, muitas famílias de imigrantes do país asiático abraçaram esse fenômeno com o empreendedorismo, como foi o caso de Amy, proprietária da Jini Cosméticos.
Antes de abrir sua primeira loja, Amy realizava viagens casuais à Coreia do Sul e, de lá, costumava trazer produtos de beleza a pedido de suas amigas no Brasil. Entre uma viagem e outra, muitas pessoas obtiveram conhecimento sobre o seu trabalho informal de “encomenda”, o que despertou a ideia de abrir uma loja que revendesse os produtos sul-coreanos.
“A popularidade da cultura sul-coreana está sendo bastante sólida, além disso, todos que experimentam os cosméticos sul-coreanos conseguem ver resultados, de fato, impulsionando cada vez mais as compras”, contou a gerente comercial da Jini Cosméticos, Daniela Keum, a Opera Mundi.
A funcionária destacou que a skincare, função cumprida por muitos dos produtos vendidos na loja, faz parte do estilo de vida dos cidadãos na Coreia do Sul em decorrência da pressão estética e dos padrões de beleza impostos no país asiático. Segundo ela, essa cultura está cada vez mais sendo transferida aos brasileiros, o que é evidenciado pelo aumento exponencial da demanda na Jini Cosméticos, que inclui encomendas feitas para fora do estado de São Paulo.
“Na Coreia do Sul, cuidar da pele e da aparência é visto como sinal de disciplina, saúde e até respeito com os outros. Claro que hoje em dia isso ficou mais nítido por causa do K-pop, dos K-dramas, e do boom da K-beauty”, disse Keum.
Cultura enraizada na Coreia do Sul que desembarcou no Brasil
A dermatologista Lee Da Hye reitera que a sociedade sul-coreana realmente valoriza a cultura do autocuidado, de modo que o mercado de estética no país é abrangente, envolvendo desde a cirurgia plástica até a dermatologia.
“Diferentemente do Brasil, o autocuidado não é apenas uma tendência na Coreia do Sul. Há sim a moda, por exemplo, sobre qual tipo de skincare as pessoas farão em cada momento, mas de forma geral os coreanos prezam muito por mostrar uma boa qualidade de pele”, explica em entrevista a Opera Mundi.
De acordo com a médica, a cultura do autocuidado é tão forte no país que consegue atingir públicos mais difíceis de serem alcançados no Brasil, como os homens por exemplo.
“No Brasil há muita resistência do público masculino por razões culturais e de preconceito. O público brasileiro masculino pensa que autocuidado é uma prática isolada para mulheres ou homens homossexuais”, analisa em crítica à cultura da masculinidade brasileira.
Segundo Lee, esta não é uma mentalidade entre os homens sul-coreanos, pelo contrário, eles acreditam que o autocuidado interfere em decisões importantes de seu dia a dia, como na conquista de um emprego, por exemplo. Além disso, os homens que são figuras públicas na Coreia do Sul praticam esse cuidado e acabam influenciando os demais.
“Acho que a relação de autocuidado na sociedade sul-coreana é sinônimo de uma pessoa que se cuida bem. E não é apenas sobre skincare, mas sim em ter uma rotina de atividade física também”, afirma.
Apesar do público brasileiro associar o termo “skincare” a produtos, Lee explica que a mesma palavra para os sul-coreanos significa literalmente o “cuidado diário com a pele”, definição também compreendida pelos dermatologistas.
“É possível que esse cuidado com a pele possa se estender, por exemplo, com cuidados em casa, nas clínicas dermatológicas ou estéticas”, detalha.
Ao falar da tendência dos produtos de skincare sul-coreanos no Brasil, Lee analisa que essa onda ocorreu há cerca de 10 anos, após o público brasileiro passar a consumir conteúdos nas redes sociais sobre o cuidado da pele de outros lugares do mundo.
“O público brasileiro assistiu vídeos de criadores de conteúdo mostrando produtos coreanos que viralizaram e virou uma forte onda. A partir disso o Brasil passou a seguir uma tendência global. O público viu como fazer esse autocuidado em sua própria casa, começando pelo básico, que é a limpeza do rosto e a aplicação do protetor solar, até a aplicação de máscaras faciais”, explica.
De modo geral, Lee afirma que apesar do mercado estético na Coreia do Sul ser muito grande, o Brasil também apresenta essa oportunidade, diante do tamanho de sua população, quatro vezes maior do que a sul-coreana.
Essa oportunidade se dá inclusive ao considerar a composição dos produtos sul-coreanos, bastante diferentes dos nacionais ou dos importados vendidos no mercado brasileiro. “A skincare coreana procura uma linha mais branda, suave, com menos produtos químicos, e uma linguagem mais fácil. Quando comparamos os produtos brasileiros, para o gosto dos sul-coreanos, estes produtos são mais focados em aromas, composições mais fortes e menos foco na atuação em si”.
A expansão do mercado estético na Coreia do Sul
Lee é formada em medicina no Brasil e atualmente trabalha em uma das famosas clínicas de skincare da Coreia do Sul. Os estabelecimentos são diversos, sendo alguns focados na dermatologia, outros na cirurgia plástica e outros na estética. Apesar das diferentes vertentes, a especialista ressalta que mesmo nos estabelecimentos de procedimentos estéticos com laser ou skincare os responsáveis são profissionais da medicina.
“O esteticista é proibido de usar laser na Coreia do Sul. Esse é um equipamento de medicina para cuidados da pele, como para alisar falhas, deixar a pele uniforme ou remover cicatrizes. Mesmo para depilação a laser são os médicos que devem realizar o procedimento”, explica.
“Há clínicas voltadas a deixar a pele mais saudável fazendo um tratamento de skincare efetivo. Elas funcionam com base em pacotes de sessões que o cliente contrata de acordo com os problemas de pele que ele tem, se quer tratar uma pele acneica ou seca por exemplo. Os especialistas, incluindo médicos dermatologistas, avaliam um tratamento especializado”, revela a médica que foi praticar a medicina na Coreia do Sul justamente para explorar o mercado da estética e descobrir “uma forma diferente de ser médico”.
De acordo com Lee, os procedimentos mais procurados são o lifting (conhecido como rejuvenescimento, que atenua rugas e outros sinais de envelhecimento no rosto), clareamento de manchas na pele, preenchimento, Skinbooster (hidratação profunda que melhora a qualidade da pele), botox, e diversos tipos de procedimentos com o laser. A clínica que a médica atua também oferece serviços de cirurgia plástica, então conta com muitos clientes à procura de blefaroplastia (procedimento que remove excesso de pele da pálpebra), rinoplastia, mamoplastia, e lipoaspiração.

Famoso grupo de K-pop, TWS, da agência Pledis, tornou-se embaixador para a marca de skincare BeginS by JUNGSAEMMOOL
BeginS by JUNGSAEMMOOL/Reprodução
Narrativas sobre identidades pautadas em ideais abstratos de beleza
A socióloga Alka Menon, especializada em saúde, doença e corpo na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, falou sobre como as clínicas estéticas na Coreia do Sul ultrapassam as fronteiras da Ásia e chegam a outros países em forma de “narrativas”.
“Especialistas em beleza, profissionais da área, como cirurgiões plásticos, e também as pessoas que buscam os procedimentos usam de narrativas para explicar as mudanças que elas querem e como isso se relaciona com suas identidades sociais”, explica em entrevista exclusiva a Opera Mundi.
Menon, que é autora do livro Refashioning Race: How Global Cosmetic Surgery Crafts New Beauty Standards (“Remodelando a raça: como a cirurgia plástica global cria novos padrões de beleza”), afirma que se uma pessoa vai a uma clínica e pede “um visual coreano”, é necessário refletir sobre o que isso significa, e há possibilidade de que o cliente esteja pedindo algo que seja “diferente de um visual ocidental, mas também diferente de um visual puramente asiático”.
Para ela, é necessário pensar “no que está envolvido em chamar algo de coreano, asiático ou ocidental” tanto para os cirurgiões, quanto para as pessoas que vão realizar a mudança estética. “O que descobri é que esses rótulos correspondem, de certa forma, aos procedimentos que as pessoas realizam”, acrescentou.
“Uma mamoplastia de aumento não seria um visual coreano, de acordo com o que as pessoas pedem. Mas há, por exemplo, a cirurgia de pálpebras”, explica, detalhando que o procedimento para alteração do formato dos olhos não pode ser generalizado, uma vez que há pálpebras características em diferentes partes da Ásia.
Quanto ao mercado de cosméticos sul-coreano, a acadêmica explica que já é “transnacional”, de modo que aprenderam a se expandir, considerando outras etnias. “Antes, algumas das grandes empresas de cosméticos surgiram nos Estados Unidos ou na França, e cada uma delas realmente expandiu os tipos de tons de pele. O mercado coreano de cuidados com a pele também aprendeu com isso. Eles se expandiram para lugares como a Malásia e o Sudeste Asiático, onde há mais diversidade de tons de pele do que na Coreia do Sul”.
Menon afirma que a indústria de beleza sul-coreana é “global” e se baseia em uma rede de lugares para projetar cosméticos a partir da avaliação de seus clientes, em quaisquer lugares do mundo em que estejam.
“Essa tem sido uma longa trajetória de uma indústria globalizada, mas como em qualquer tendência, é preciso olhar para ela e pensar: isso é o melhor para mim?”, defende, ao recomendar “cautela e pesquisa” para saber de fato qual tipo de procedimento ou produto cosmético funciona para cada indivíduo e sua pele.
A acadêmica que pesquisa a forma que os cirurgiões plásticos, em especial nos Estados Unidos e na Malásia, constroem aparências ideais para resultados estéticos usando categorias raciais, analisa que esse fenômeno “está relacionado a um conjunto específico de características faciais que são popularizadas” na cultura coreana, como a música K-pop e o audiovisual K-drama.
Menon afirma que essa tendência não é necessariamente atual, mas atribuí-la exclusivamente à Coreia do Sul concede “uma narrativa muito mais moderna” do que atribuir à uma tendência asiática de forma geral, sendo este um “projeto bem mais amplo”.
“Existem outros passos além da cirurgia plástica que seriam relevantes nesse caso. É necessário pensar se os pedidos [às clínicas e aos cirurgiões plásticos] são realistas, ou se provavelmente gerarão insatisfação, porque a vida do indivíduo não será transformada da maneira que imaginou”, questiona.
A professora de Yale afirma que, para além das clínicas, as “narrativas sobre as identidades, pautadas em ideais abstratos de beleza, que estão ligadas a determinados tipos de corpos” são vistas também em propagandas de cosméticos e “na cultura popular mais ampla”.
“Mas é claro que o corpo é apenas um aspecto do que compõe uma identidade, e muitas histórias são possíveis para o mesmo corpo”, enfatiza.
Indústria da beleza é investimento para a Coreia do Sul
Em última análise, Menon avalia que “os esforços sul-coreanos em cosméticos, beleza e cultura de forma mais ampla fazem parte de uma iniciativa de soft power para obter mais influência global”.
De acordo com a pesquisadora de Yale, esses investimentos vêm sendo “desenvolvidos há anos” e também conta com apoio do próprio governo sul-coreano.
“É um esforço para mostrar a Coreia do Sul como uma nação moderna que produz histórias muito cativantes. Essa imaginação produz narrativas que pessoas de todo o mundo podem assinar e se identificar, e isso aumenta a conscientização sobre a Coreia do Sul e a coloca no palco como um lugar influente, culturalmente poderoso e interessante”.
Menon explica que essa tentativa não é inédita, como ocorreu com a Índia e sua indústria cinematográfica conhecida como Bollywood, que investiu na popularidade de seus atores, atrizes e músicos em países que não falavam o híndi.
Segundo sua análise, esse fenômeno denota que é possível “avaliar a influência” de um país a partir dos cosméticos e indústria da beleza, que influenciam a economia e a cultura de outros países, e não mais a partir do “poder militar ou econômico”.
Influência sem colonialismo
Menon afirma que, se na história contemporânea, o ideal ocidental de beleza divulgado pelos Estados Unidos conseguiu se estender pelo mundo todo a partir do idioma inglês e dos métodos colonialistas, hoje, a Coreia do Sul tenta abrir espaço similar, mas por outras vias: a identificação.
A Coreia do Sul exporta sua influência com “histórias que ressoam primeiramente com os sul-coreanos” e, em seguida, leva ao mundo “as coreografias e melodias cativantes que têm apelo independentemente de as pessoas entenderem ou não o idioma [sul-coreano]”, explica.
Segundo a especialista, a onda sul-coreana incentivou, progressivamente, o público a superar os obstáculos linguísticos, fazendo da “identificação” uma ferramenta de aproximação à cultura do país asiático
“A onda coreana e o marketing dos produtos aconteceram inicialmente na Ásia, como na Malásia, na China e no Japão, não em todo o mundo. Com o tempo, chegaram aos Estados Unidos. Indo cada vez mais longe, chegou no Brasil, onde as pessoas talvez não tenham se identificado com os primeiros produtos lançados na Coreia do Sul. Mas à medida que ganharam experiência com novos fãs, novos mercados, essa mensagem ganhou força”, conclui.























