Sábado, 6 de dezembro de 2025
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O que acontece com o cérebro durante a anestesia continua um mistério

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Uma tela mostra um homem no final dos seus 60 anos deitado e acordado numa mesa de cirurgia. Ligeiramente fora da visão da câmera, um médico está movendo o dedo em frente ao rosto do homem, instruindo-o a seguir com os olhos o seu dedo indo e voltando. Segundos depois, após uma dose do poderoso anestésico Propofol, suas pálpebras começam a fechar. Então, suas pupilas param de se mexer. Somente o constante bip do monitor cardíaco ao fundo serve como lembrete de que o homem não está morto. “Ele está em coma”, explica o doutor Emery Brown. “A anestesia geral é um coma reversível induzido por medicamentos.”

Como um anestesista no MGH (Hospital Geral de Massachusetts), Brown é uma testemunha constante de uma das proezas mais profundas e misteriosas da medicina moderna. Todos os dias, cerca de 60 mil pacientes nos Estados Unidos são submetidos à anestesia geral, o que lhes permite sobreviver até mesmo às operações mais terríveis inconscientes e livres de dor.

Mas apesar de os médicos fazerem as pessoas dormirem há mais de 150 anos, o que acontece no cérebro durante a anestesia geral é um mistério. Cientistas não sabem muito sobre a extensão em que estes medicamentos tocam no mesmo circuito cerebral que usamos ao dormir ou qual é a diferença entre ser anestesiado e outras formas de perda de consciência, como entrar em coma após uma lesão. Há partes do cérebro realmente desligando-se ou elas simplesmente param de se comunicar umas com as outras? Qual é a diferença entre ser anestesiado e estar num estado de hipnose ou meditação profunda? E o que acontece no cérebro durante a transição entre consciência e inconsciência? “Nós sabemos que podemos colocar você dentro e fora disso com segurança”, diz Brown. “Mas ainda não podemos claramente dizer como isso funciona.”

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Ferramenta clínica

Brown, que é neurocientista e professor no MIT, quer transformar a anestesia de uma ferramenta exclusivamente clínica em um poderoso instrumento para o estudo das perguntas mais básicas sobre o cérebro. Compreender o que acontece no cérebro sob medicamentos anestésicos, acredita, ajudará a tornar a anestesia mais segura e eficaz, com menos efeitos colaterais. Também poderia levar a novos tratamentos para coma e outras condições cerebrais – e para ideias a respeito de questões fundamentais da neurociência, incluindo a natureza da própria consciência. “Anestesiologia é uma forma de neurociência”, diz George Mashour, anestesista e neurocientista da Universidade de Michigan. “E o que fazemos diariamente é modular praticamente todos os aspectos do sistema nervoso.”

A neurociência tem muitas vezes se beneficiado de experiências naturais – pacientes que perderam a habilidade de lembrar, produzir linguagem ou regular suas emoções depois que partes de seus cérebros foram danificadas ou retiradas cirurgicamente. Anestesistas controlam experiências análogas todos os dias: eles assistem elementos da consciência desaparecerem. Sob anestesia geral, por exemplo, os pacientes perdem a percepção de dor, a consciência, a memória e a habilidade de se moverem. Um anestesista pode influenciar cada uma destas mudanças de forma diferente ao variar a dosagem e os tipos dos medicamentos usados.

“Ao retirar diferentes funções que associamos à consciência”, diz Brown, “nós podemos ter a capacidade de começar a juntar as peças do quebra-cabeça.”

Brown faz parte de um pequeno, porém crescente, grupo de pesquisadores de anestesiologia que estão usando o eletroencefalograma (EEG), uma ferramenta para monitorar a atividade elétrica do cérebro, para sondar sistematicamente cada aspecto da anestesia em humanos e animais. Monitores cerebrais baseados no EEG já são uma visão comum nas salas de operação; alguns anestesistas rastreiam a atividade cerebral de seus pacientes com monitores disponíveis no mercado, que usam algoritmos para transformar os sinais de EEG em indicadores crus (outros rastreiam somente sinais físicos, como a frequência cardíaca e o nível de oxigênio no sangue). Mas alguns, ele conta, passam o tempo olhando os dados crus do EEG.

Brown, contudo, tem uma perspectiva diferente da maioria dos anestesistas: ele também é um estatístico. Depois de fazer graduação em medicina e doutorado em Harvard, no final dos anos 1980, ele seguiu dois caminhos separadamente, trabalhando nas salas de operação do MGH enquanto comandava um laboratório de pesquisa focado no desenvolvimento de algoritmos de processamento de sinal para extrair informações de dados biológicos.

Tagarelice do cérebro

Brown não apreciava os experimentos da neurociência que ocorriam na sua frente todos os dias durante as cirurgias até que um de seus colegas sugeriu fazer um estudo em pacientes anestesiados. Ao observar o processo se desenrolar, “você começa a perceber que as partes do cérebro não desligam todas ao mesmo tempo”, ele diz. “Há uma hierarquia, há uma gradação nele.”

O mesmo acontece quando o efeito dos medicamentos termina. Normalmente, as funções cerebrais mais básicas retornam primeiro — a respiração volta, e então, quando as áreas do tronco cerebral que controlam a salivação e os ductos lacrimais retomam as atividades, a boca dos pacientes se enche de saliva e seus olhos lacrimejam. Eles engolem e tossem quando as áreas que controlam as sensações na garganta tornam-se ativas. Finalmente, seus olhos se mexem e, então, eles respondem ao mundo exterior. Um tempo depois a sonolência virá e funções cerebrais complexas serão retomadas.

Uma das coisas que impressionaram Brown ao observar seus pacientes de EEG é o quão rápida e completamente medicamentos como Propofol podem mudar a atividade do cérebro. Conforme os pacientes entram no estado anestesiado, o padrão normal de ondas de baixa intensidade, mas de alta frequência, trocam para um pulso de menor frequência, mas maior intensidade — como se a tagarelice do cérebro tivesse dado lugar a um canto. A localização da atividade muda da parte de trás do cérebro para a da frente.

Nos últimos anos, outros estudos do EEG têm defendido a ideia de que a anestesia simplesmente não desliga o cérebro, mas, ao invés disso, interfere em sua comunicação interna. A pesquisa de Mashour, por exemplo, mostrou que o feedback entre a parte de frente e de trás do cérebro é interrompido durante a anestesia geral, desconectando diferentes redes cerebrais. Acredita-se que este feedback é importante para a consciência.

Para entender de fato se a comunicação entre diferentes áreas cerebrais foi quebrada, cientistas precisam de uma maneira para mapear a atividade destas regiões e as interações entre elas com maiores detalhes e área. Para isso, estão usando a ressonância magnética, que mede as mudanças no fluxo sanguíneo associadas à atividade neural.

Imagem do cérebro

Trabalhando com o bioengenheiro Patrick Purdon e outros colegas no MGH, Brown desenvolveu um modo de simultaneamente obter os registros de EEG e fazer exames de ressonância magnética em pacientes conforme eles entram no estado profundo da anestesia. Obter imagens do cérebro de humanos sendo submetidos à anestesia é complicado porque requer anestesiar as pessoas já dentro da máquina, fora da sala normal de cirurgia. Brown e seus colegas encontraram uma maneira para resolver os problemas técnicos e de segurança: eles recrutaram voluntários que já tiveram traqueostomia ou furos cirúrgicos na garganta. Isto significa que, em caso de emergência, um tubo poderia ser facilmente usado para restaurar a respiração. Em 2009, os pesquisadores demonstraram que era possível registrar com segurança ambos os dados do EEG e da ressonância magnética; agora, eles estão trabalhando para correlacionar as imagens e a informação do EEG com as mudanças observáveis à vista enquanto os pacientes entram no estado de anestesia.

Brown também está trabalhandocom Purdon para estudar pacientes epilépticos que tiveram eletrodos implantados em seus cérebros por diversos dias para que os clínicos pudessem registrar e localizar as convulsões. Quando os pacientes são submetidos à cirurgia para remover as áreas do cérebro identificadas como regiões de convulsão, os eletrodos registram as ondas cerebrais conforme a anestesia é administrada. Estes eletrodos coletam dados sobre partes muito menores do cérebro do que o EEG ou a ressonância magnética, mas a resolução é muito maior, permitindo aos cientistas terem noção do que acontece no cérebro conforme o paciente é anestesiado num nível celular. Estudos de acompanhamento de animais puderam render ainda mais detalhes ao permitir que os pesquisadores implantassem mais eletrodos e em locais precisos. Os pesquisadores serão capazes de documentar — de dentro do próprio cérebro — como a atividade muda enquanto o cérebro entra e sai da inconsciência.

Tradução por Jessica Grant

* Texto publicado originalmente na revista Technology Review

Cientistas sabem que ela funciona, mas não muito bem como

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