
Shakespeare e Austen (além de Dan Brown, Eco e outros): clássicos e contemporâneos igualados pelo mercado
Saiba o que mais foi publicado no Dossiê #04: Comissão da Verdade
Leia as outras matérias da edição nº 4 da Revista Samuel
Nem todos os escritores compartilham da mesma ideia sobre o leitor para quem eles estão escrevendo. Muitos podem até acreditar que não estão direcionando sua obra para nenhum público em particular. Mesmo assim, há claros momentos em que as percepções de um autor sobre quem são seus leitores mudam, o que inevitavelmente leva a uma alteração no tipo de texto que ele produz. O exemplo mais óbvio é o período que vai do século XIV ao século XVI, quando escritores de toda a Europa abandonaram o latim pelo vernáculo. Em lugar de apresentar seu trabalho em uma arena internacional liderada por uma elite largamente clerical, como faziam anteriormente, eles passaram a usar idiomas locais e nacionais para se comunicarem com uma classe média emergente.
Nos livros de História, esta mudança para o vernáculo tende a ser apresentada como uma inspiração democrática que introduziu a riqueza da vitalidade local no texto escrito e deu um novo impulso aos idiomas nacionais, que se consolidavam rapidamente. Dito isto, este fenômeno provavelmente se deu tanto por ambição e interesses econômicos como por idealismo. Chegou-se a um ponto em que não fazia mais sentido escrever em latim porque os árbitros do bom gosto formavam então uma panelinha nacional e não mais internacional. Hoje estamos no começo de uma revolução ainda mais importante que está nos levando em uma direção bem diferente.
Como resultado de uma globalização cada vez mais acelerada, estamos caminhando em direção a um mercado mundial para a literatura. Há uma impressão crescente de que para um escritor ser considerado “grande”, ele ou ela deve ser um fenômeno internacional. Esta mudança não é talvez tão evidente nos Estados Unidos quanto na Europa, graças ao tamanho e ao poder do mercado estadunidense e ao fato de o inglês ser geralmente percebido como o idioma da globalização. Entretanto, cada vez mais autores europeus, africanos, asiáticos e sul-americanos consideram-se “fracassados” se não conseguem alcançar um público internacional.
Apoie a imprensa independente e alternativa. Assine a Revista Samuel.
Árbitros do bom gosto
Esta mudança foi largamente acelerada pela transmissão eletrônica dos textos. Hoje, um romance ou apenas um primeiro capítulo finalizado podem ser enviados para vários editores em todo o mundo. Não é incomum que direitos de publicação no exterior sejam vendidos antes mesmo que a obra tenha um editor local. Um agente astuto pode então orquestrar o lançamento simultâneo de um livro em vários países diferentes usando estratégias promocionais normalmente associadas a corporações multinacionais. Portanto, um leitor pode comprar um exemplar de um livro de Dan Brown, Umberto Eco, Haruki Murakami ou Ian McEwan sabendo que esta mesma obra está sendo lida, neste exato momento, no mundo todo. Comprando-o, o leitor se torna parte de uma comunidade internacional. Esta percepção aumenta o fascínio exercido pelo livro.
A proliferação de prêmios literários internacionais garante que o fenômeno não fique restrito ao setor mais popular do mercado. Apesar de seus procedimentos de seleção questionáveis e escolhas frequentemente bizarras, o Nobel é visto como mais importante do que qualquer prêmio nacional. O Impac na Irlanda, o Mondello na Itália, e o Prêmio Internacional de Literatura na Alemanha também estão ganhando prestígio. Logo, os árbitros do bom gosto não são mais os compatriotas do escritor — eles não são facilmente reconhecíveis, e não são um grupo de que o autor faça parte. Quais são as consequências para a literatura? A partir do momento em que o autor admite um público-alvo mundial, a natureza da sua escrita está fadada a mudar.
Nada de trocadilhos
É particularmente observável a tendência de remover obstáculos à compreensão internacional. Escrevendo nos anos 1960, intensamente envolvido com sua própria cultura e sua complexa política, Hugo Claus aparentemente não se importava se seus romances exigiriam um esforço especial do leitor e principalmente do tradutor para que fossem compreendidos fora da Bélgica. Em contraste absoluto, autores contemporâneos como o norueguês Per Petterson, o holandês Gerbrand Bakker ou o italiano Alessandro Baricco produzem obras que não demandam nenhum conhecimento prévio ou esforço, nem oferecem as recompensas que tal esforço pode proporcionar.
Ainda mais importante: a linguagem é mantida em um nível bem simples. Kazuo Ishiguro já falou da importância de evitar trocadilhos e alusões linguísticas para facilitar o trabalho do tradutor. Escritores escandinavos já me disseram que evitam dar a seus personagens nomes que seriam difíceis para um leitor de língua inglesa.
O que parece fadado a desaparecer, ou pelo menos a ser negligenciado, é o tipo de obra que se compraz nas sutis nuanças de sua própria linguagem e cultura literária, o tipo de escrita que pode atacar ou celebrar a maneira como este ou aquele grupo linguístico vive de verdade. No mercado literário global não haverá lugar para uma Barbara Pym ou Natalia Ginzburg. Shakespeare teria maneirado nos trocadilhos. Uma nova Jane Austen pode esquecer o Nobel.
Tradução por Carolina de Assis
* Texto publicado originalmente na revista quinzenal norte-americana The New York Review of Books
NULL
NULL























