A diplomacia do diploma
Com universidades supranacionais, Brasil busca conquistar parceiros na América Latina, Caribe, África e Ásia

Obras no campus da Unila, em Foz do Iguaçu, iniciadas em 2011: projeto de Oscar Niemeyer
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A recente ascensão do Brasil no cenário internacional ressuscitou a antiga tese de que o “gigante sul-americano” pode assumir um papel imperialista em relação a seus vizinhos. Esse fantasma ronda, por exemplo, os protestos de moçambicanos contra condições precárias de trabalho em mineradoras de origem brasileira e a reação de populações indígenas à construção por empreiteiras nacionais de rodovias no território boliviano.
Como resposta a essa desconfiança, o Brasil tem procurado construir projetos que valorizem a cooperação em bases solidárias. E um dos campos em que essas iniciativas têm se destacado é a educação. Com o ensino superior cada vez mais inserido no processo de internacionalização, o governo adotou princípios de cooperação solidária e integração regional para nortear as parcerias no setor, especialmente com países latino-americanos e africanos.
A cooperação solidária se baseia em acordos de mão dupla, onde todos possam sair ganhando: estímulo à transferência e compartilhamento de experiências e conhecimento e fortalecimento do intercâmbio e de parcerias entre instituições de ensino superior, principalmente através de redes.
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Com base nesses princípios foram criadas instituições de ensino de caráter supranacional, ou de “integração”, na denominação oficial: Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana), em Foz do Iguaçu (PR), na Fronteira Trinacional, voltada para a América Latina e Caribe, e Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira), no município de Redenção (CE), para atender os países da CPLP (Comunidades de Países da Língua Portuguesa. Nas duas, os brasileiros são recrutados com base na nota do Enem. A Unilab seleciona estrangeiros com ajuda de missões diplomáticas brasileiras, e a Unila, dos ministérios da educação dos países participantes do projeto.
Para Manolita Correia Lima e Fabio Bertioli Contel, autores de Internacionalização da Educação Superior (Alameda), essas universidades supranacionais indicam a concretização de um projeto “contra-hegemônico” de educação superior, que procura “dotar o território brasileiro, assim como o subcontinente latino-americano, de instituições comprometidas com a solidariedade acadêmica endógena, voltada para as necessidades de países com origem colonial e composições subordinadas à divisão internacional do trabalho atual”. Para eles, em pleno funcionamento, essas instituições funcionarão como “articuladoras das relações acadêmico-científicas internacionais”, contribuindo para a inserção ativa do sistema de ensino superior brasileiro no espaço internacional do ensino superior.
Como exemplo prático dessa política contra-hegemônica, a Unila, em atividade desde 2010, incentiva os alunos latino-americanos e caribenhos a voltarem aos seus países de origem para lá poderem aplicar os conhecimentos adquiridos no curso.
Ao mesmo tempo em que procura se tornar um polo de atração para estudantes e professores do exterior, o Brasil busca evitar o fenômeno conhecido com “fuga de cérebros”.
Atualmente, a Unila conta com 608 alunos brasileiros e 633 estrangeiros, em que se destacam paraguaios (217) e uruguaios (82). Em seguida, pela ordem, aparecem estudantes do Peru (65), Equador (63), Bolívia (57), Argentina (50), Colômbia (42), Venezuela (36), Chile (15) e El Salvador (6), único representante centro-americano. A meta da Unlia é chegar a 10 mil alunos, metade estrangeira. Os cursos mais procurados pelos estudantes internacionais foram Engenharia Civil e de Infraestrutura, Engenharia de Energias Renováveis, Ciências Econômicas, Relações Internacionais e Integração e Música.
A Unilab, que teve seus cursos iniciados em 2011, determina que os três últimos trimestres de cada curso sejam realizados em países africanos ou no Timor Leste — caso estes tenham parcerias, equivalência e condições para oferecê-los. Dos seus atuais 220 alunos estrangeiros (22% do total), a maioria é formada por estudantes do Timor Leste (71), seguido pela Guiné-Bissau (58), Cabo Verde (22), São Tomé e Príncipe (20), Angola (17) e Moçambique (3). É a única universidade no Brasil a ter todos os seus 78 professores com título de doutorado.
“O Brasil vivia de costas para a América do Sul. Essa visão mudou. O país está cada vez mais inserido no cenário internacional. Sua presença é cada vez maior no continente africano, mas busca crescer através de uma relação diferente das estabelecidas tradicionalmente pelas grandes potências”, afirma Paulo Speller, reitor da Unilab, em entrevista a Opera Mundi. “Para nós, a formação acadêmica tem o foco na cooperação solidária”, completa.
“O processo de internacionalização na Unila não mostrará resultados iniciais, pois não tem fins lucrativos. O modelo voltado ao mercado apresenta vantagens mensuráveis. Já nós abrimos a universidade para alunos de todos os países da região para que eles possam retornar para casa com a bagagem adquirida aqui. A vantagem para o Brasil? Confirmar sua vocação latino-americana de solidariedade com o resto do continente”, afirma Andrea Ciacchi, pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação na Unila — italiano de nascimento e há mais de 20 anos no Brasil, também ouvido pela reportagem. “Não dá para mensurar concretamente. O retorno se dará por mil outros aspectos.”
Ciacchi explica que a Unila está construída sobre a ideia de colaboração. Seu objetivo não é “importar” os melhores alunos para a pesquisa e o mercado de trabalho brasileiro, mas construir ligações de “amizade e parceria”. “Não faremos nada para manter os estrangeiros aqui”, afirma o pró-reitor. “A ideia não é dizer ‘venha e fique no Brasil porque somos melhores’. Esse passado do Brasil subimperialista foi uma teoria corrente nos anos 1960”, afirma.
Como um exemplo dessa diferença de mentalidade, ele cita o curso de Letras. Na Unila, ao contrário do que ocorre nas outras universidades brasileiras, ele não se volta prioritariamente à Literatura Brasileira ou aos cursos de Língua Portuguesa. “Em nossa grade curricular, o português tem o mesmo peso do espanhol.” As literaturas são estudadas em grupos regionalizados, não nacionais — como Literatura da Comarca Andina ou de Fronteira Norte/Sul.
O reitor da Unilab conta que sua universidade visa a formar profissionais preparados para o mercado de trabalho em seus países de origem. E que, através das redes de cooperação, eles possam futuramente aproveitar esses laços, o que resulta em retorno para o Brasil. “Nossa diretriz é a formação. A expectativa é mais longa e ainda estamos atendendo a demanda de todos os outros países associados à CPLP”.
Impacto
“No dia de inauguração, o que mais me marcou foi o discurso de um estudante argentino que dividia seu quarto com um paraguaio, um uruguaio e um brasileiro. Ele lembrou que há pouco mais de um século esse quatro países estavam em guerra, e agora todos se encontram aqui”, diz Andrea Ciacchi, pró-reitor da Unila.
“Imagine o impacto econômico e cultural para uma cidade no interior do Nordeste, com apenas 26 mil habitantes, a chegada de mais de 700 estudantes, sendo 220 estrangeiros. E mais, dos brasileiros, 90% eram locais, cearenses. Só agora estão chegando representantes de outros Estados e regiões do Brasil. No início foi muito difícil”, diz o reitor da Unilab, Paulo Speller. Atualmente, a Unilab oferece sete cursos de graduação: administração pública (presencial e à distância), agronomia, bacharelado interdisciplinar em ciências humanas, ciências da natureza e matemática, enfermagem, engenharia de energias e letras — língua portuguesa.
Speller afirma que a Unilab, em breve, oferecerá instalações para que todos os estudantes morem dentro da universidade. Por enquanto, a maioria é atendida por auxílios de moradia, transporte e alimentação, e tem ainda mais contato com a cidade – o que, até o momento, não registrou maiores problemas.
A impressão de Speller é confirmada pelo estudante de administração pública Faustino Manuel Rodrigues, originário da Guiné-Bissau e que acaba de concluir um mandato como representante dos estudantes de seu país. Nas horas vagas, ele dá aulas de inglês em Redenção.
O objetivo de Faustino é se formar, fazer mestrado e trabalhar na administração pública de seu país. “Há muita coisa para mudar por lá”. Adaptado à cidade e namorando uma colega cearense, ele afirma que a cidade cearense recebeu os estudantes de forma acolhedora. “Nunca houve episódio de assalto, agressão ou preconceito. Aqui, por ser pequeno, todo mundo sabe se acontecer alguma coisa”.
Os problemas maiores, segundo Faustino, já resolvidos, ocorreram nos primeiros meses. “No começo, alguns brasileiros não gostavam de participar de grupos de trabalho com africanos. Nos menosprezavam, diziam que não falávamos bem o português. Também tinham o hábito de falar com a gente na sala de aula e, fora dela, nem nos cumprimentavam”, afirma.
“Agora, se estávamos lado a lado na biblioteca, vinham falar no Facebook. Não entendo que ‘integração’ era essa. Falo cara a cara, olho no olho. Estamos construindo uma universidade do nada juntos, alunos e professores, precisávamos conversar, mas pelo Face eu não quero. Depois de reclamarmos, isso mudou. Agora as turmas de brasileiros pedem para que os africanos participem dos grupos”.
Veias abertas
Se em Redenção a relação entre a comunidade e os estudantes é relativamente tranquila, o mesmo não se pode dizer da turística e aparentemente multicultural Foz do Iguaçu. Os estudantes reclamam de serem hostilizados por uma parcela dos habitantes da cidade que, por sua vez, reclamam de agitações dos estudantes. “Foz é uma cidade misturada, mas cada um fica no seu canto. Por causa da fronteira, tem forte presença militar nas ruas. Minha cultura, a uruguaia, é outra, eu estranho um pouco”, diz a estudante uruguaia Besna Yacovenco, no 4º semestre de Ciências Políticas e Sociais.
Um dos problemas ocorreu no início de junho do ano passado, durante uma festa realizada por um grupo de quarenta estudantes em uma das moradias da universidade. A Polícia Militar apareceu no local para atender um vizinho que reclamou do barulho. Os policiais acabaram por invadir o local com a tropa de choque e levaram oito alunos para a delegacia. A Universidade repudiou a truculência da PM, mas parte da imprensa local criticou os alunos.
“A gente não gosta da maneira com que a polícia daqui se relaciona com as pessoas. Ela trata os estudantes da Unila como contrabandistas. A mídia daqui também é conservadora”, diz Besna, que participou da festa. “Querem evitar que a Unila cresça, mas ela quer criar laços com a cidade”.
“Em qualquer lugar do mundo há desconfiança em relação ao estrangeiro. Trouxemos um grande número de jovens para uma cidade média (255 mil habitantes), relativamente nova (98 anos) e conservadora. Quando alguém chama a polícia, as rádios locais exploram, pois gera notícia. Mas, em geral, avaliamos a adaptação dos alunos como muito boa”, diz Ciacchi.
Besna afirma que muitos dos estudantes estrangeiros chegavam ao Brasil com a imagem do país imperialista, mas que, em seu caso, se apaixonou pelo país e pensa em seguir carreira aqui. “Quem sabe com um outro governo ele venha a ser imperialista. Mas agora é o contrário, ele está avançando no processo de integração”.
Segundo ela, a maior lição até agora foi aprender a respeitar as outras culturas para aprender a respeitar a própria. “Quando cheguei procurava pessoas de minha nacionalidade para conversar. Hoje moro com uma paraguaia, uma peruana, uma brasileira e uma argentina. Essa diversidade contribui para minha formação profissional. As relações que faço aqui não se destroem, estamos criando uma rede de informação em toda a América. Mesmo que a universidade queira que a gente volte para o nosso cantinho, eu manterei um vínculo”, diz.
* Texto originalmente publicado no site Opera Mundi
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