Por pressão dos EUA, governo interino do Haiti corre para realizar eleições
Entidades afirmam não haver condições para processo eleitoral no país em meio à violência
Após pressão dos Estados Unidos, o Conselho Presidencial de Transição do Haiti afirmou que vai realizar eleições nos próximos meses. Os planos de curto prazo causam espanto e críticas de movimentos e entidades que alegam que o país não tem condições de realizar eleições democráticas, por causa da crise generalizada que atinge o Haiti e que o pleito apenas legitimaria um governo comprometido em garantir interesses de estrangeiros.
Centenas de gangues criminosas operam livremente pelo país, proibindo a circulação por grandes áreas do país, inclusive da capital, Porto Príncipe. Além disso, a falta de fornecimento de energia elétrica por quase a totalidade do território dificulta o trabalho de preparação de centros eleitorais, cadastro de eleitores, em um cenário onde há 1,5 milhão de refugiados internos.
Esses são alguns dos argumentos levantados por movimentos haitianos, que afirmam ainda faltar tempo para a realização adequada de todas as etapas de um processo eleitoral, mais ainda junto a uma população que está há quase 10 anos sem poder exercer o seu direito de voto. Ou de simplesmente circular pelo país.
As gangues controlam as principais estradas e semeiam um clima de terror nas regiões mais populosas. Integrante da coordenação do Movimento Democrático Popular (Modep), Elysée Luckner Vil compartilha as dúvidas de muitos cidadãos haitianos: “Os dois estados que mais têm eleitores no país, o Oeste e o Artibonite, são aqueles que mais sofrem a pressão das gangues. O Oeste é o coração político, onde fica a capital. Imaginem que tipo de eleições podem ser organizadas, com bandidos no controle!”.
Até hoje, o trajeto por terra entre as duas maiores cidades do país, Porto Príncipe e Cabo Haitiano, depende de um pagamento informal a homens armados – quando não é simplesmente impossível. Nessas condições, é difícil conceber a realização de uma campanha política que tenha credibilidade. Assim como é difícil apostar que as populações dos bairros dominados por gangues armadas possam gozar de segurança e liberdade na hora de ir às urnas.
“Enquanto organização popular, não somos contra as eleições”, explica Vil. “Elas são uma conquista democrática. O problema é o momento e é o jeito de fazer, quando não se respeitam um conjunto de princípios e normas para a população votar com tranquilidade e escolher o candidato que ela quer”.

Por pressão dos EUA, governo interino do Haiti corre para realizar eleições
Presidência do Haiti
Fantoche dos EUA?
Vazamentos da imprensa haitiana afirmam que o calendário eleitoral começa em duas semanas. Desde que assumiu a presidência do Conselho Presidencial de Transição (CPT), em agosto deste ano, Laurent Saint-Cyr fala frequentemente sobre a preparação em curso de eleições gerais no país. Segundo ele, US$ 65 milhões (R$ 347 milhões) já foram desbloqueados, 85% dos centros de votação e 6,2 milhões de eleitores já foram identificados pelo Conselho Eleitoral Provisório, que conta com um novo presidente.
Por trás dos números e medidas ostentadas pelo governo, existe a necessidade de tranquilizar os seus credores internacionais, especialmente dos EUA, que, em abril de 2024, colocaram o CPT no poder com uma missão dupla: combater a insegurança e restabelecer a democracia no país, num prazo de 22 meses. O problema é que, 18 meses depois, praticamente nada foi feito, nem de um lado, nem do outro. A cem dias do final do mandato, o CPT tem pressa de mostrar serviço a seus doadores.
Numa intervenção realizada semana passada frente ao Conselho de Segurança, o chefe do Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti (Binuh) não escondeu seu ceticismo. “A hora está avançando. Estou preocupado pela ausência de trajetória clara rumo à restauração de uma governança democrática”.
A Comunidade dos Caribes (Caricom), principal articuladora das organizações haitianas que hoje compõem ou apoiam o CPT, admitiu estar “em contato com os líderes dos grupos e setores representados”, a fim de “levantar propostas para fim do mandato”, deixando em aberto a possibilidade de uma prorrogação ou renovação de um poder de transição não eleito.
Os Estados Unidos, por sua vez, não desistem de uma consulta popular até fevereiro. Eles, que advogaram pela criação de uma nova Força de Repressão às Gangues perante a ONU, agora acompanham de perto o andamento da pauta eleitoral – deixando entender que o financiamento daqueles contingentes não acontece sem contrapartida.
“O momento chegou para o CPT e os demais membros do governo haitiano de cumprirem seu papel a fim de apresentar um plano preciso, acompanhado de um calendário eleitoral para a transição política” – declarava o embaixador estadunidense em Porto Príncipe, Henry T. Wooster, no início do mês de outubro e na véspera de uma viagem de Laurent Saint-Cyr a Washington.
Três dias depois, o Conselho dos Ministros haitiano anunciava uma medida drástica: o abandono de um projeto de nova constituição que o governo ainda pretendia adotar por referendo antes mesmo de pensar em organizar eleições. O texto, que era visto pelo campo progressista como um retrocesso em relação à Constituição atual, nasceu morto com a justificativa de acelerar o calendário. Os US$ 5 milhões (R$ 26 milhões) investidos em sua elaboração não serão devolvidos ao povo haitiano e o foco agora está na renovação supostamente democrática do poder executivo.
Quem ganha com eleições antidemocráticas?
Haiti tem um histórico de denúncias de irregularidades eleitorais, desde o início da década de 1990, que levaram não apenas à destruição progressiva do estado, mas também à descredibilização do processo democrático aos olhos do povo. Nas últimas eleições presidenciais organizadas no país, em novembro de 2016, a participação não passou de 21% dos cidadãos aptos a votar.
Resta saber, então, até que ponto vale a pena forçar um processo eleitoral caduco para manter as aparências de normalidade. Neste sentido, a insistência dos Estados Unidos e das próprias Nações Unidas em cumprir o prazo, mesmo sabendo da situação do país e da falta de garantia democrática, levanta uma série de questionamentos. A leitura da maioria das organizações populares contrárias a essa imposição de agenda é que as eleições serviriam apenas para colocar uma máscara de legitimidade num governo conivente com interesses estrangeiros.
“Desde o golpe contra Aristide [presidente derrubado em 1991], só temos eleições de fachada no Haiti, onde países como os Estados Unidos ou a França manipulam o processo para colocar no poder governos submissos. Hoje, é a mesma coisa: eles estão forçando o CPT a organizar eleições para continuar com esse mesmo projeto” lamenta Elysée Luckner. Infelizmente, desconfiando ou não das boas intenções da administração de Donald Trump, o contexto atual de alta tensão no mar do Caribe, assim como a posição central do Haiti neste cenário, dão motivos objetivos para temer outra ofensiva imperialista na ilha.























