'Peru expõe o desprezo das elites pela democracia na América Latina', diz Verónika Mendoza
Ex-congressista detalha como máfias controlam o Congresso; cenário peruano é resultado de '500 anos de colonialismo e 30 de neoliberalismo'
A crise política no Peru, agravada pelo Estado de emergência decretado pelo presidente interino José Jerí na quarta-feira (22/10), não começou com o impeachment da agora ex-presidente Dina Boluarte, ou mesmo com a queda do seu antecessor, Pedro Castillo, há três anos. Segundo a líder progressista Verónika Mendoza, do partido Nuevo Peru, o cenário atual é reflexo de uma institucionalidade que vem desmoronando há anos.
“Esta não é uma crise que tenha surgido nem este ano nem em 2021, na última eleição. O Peru atravessa uma crise profunda, resultado de 500 anos de colonialismo e 30 anos de neoliberalismo predatório. O problema não é apenas de governabilidade, é do próprio regime que já não se sustenta mais, e a melhor prova disso é que mudamos sete vezes de presidente em oito anos, enquanto a situação piora cada vez mais”, afirmou a política, em entrevista a Opera Mundi.
As palavras da líder progressista se refere aos milhares de manifestantes que se reuniram em todo o país nos últimos dias, desde a posse do presidente interino José Jerí, no dia 15 de outubro. Já naquela primeira jornada de protestos, centenas desses manifestantes entraram em confronto com a polícia em frente ao Congresso, na capital peruana. Na ocasião, os agentes de segurança dispararam gás lacrimogêneo, enquanto alguns participantes atiravam fogos de artifício, pedras e objetos incendiários.
“Depois do assassinato a sangue frio de pessoas por parte de um policial vestido de civil, e há vídeos para comprovar esses acontecimentos, fica claro que esta coalizão mafiosa continuará recorrendo às balas para se manter no poder”, declarou a ex-congressista que representou a região de Cuzco no período de 2011 a 2016, e que foi candidata presidencial nos pleitos de 2016 e 2021.
Na noite da última quinta-feira (16/10), o primeiro-ministro peruano, Ernesto Álvarez, afirmou que o governo decretaria estado de emergência em Lima e preparava um conjunto de medidas para combater a crescente insegurança. “Seria seria completamente inconstitucional, além de ilegítimo e ilegal”, reiterou Mendoza.
A medida terminou finalmente entrando em vigor e abarcou não só a região metropolitana de Lima como também a província de Callao, a noroeste da capital peruana.
Leia a entrevista na íntegra:
Opera Mundi: como você descreveria a atual estabilidade política do Peru após as sucessivas mudanças de governo nos últimos anos, levando em conta que houve sete presidentes em oito anos? Ademais, quais fatores você considera que estão influenciando a governabilidade do país neste momento?
Verónika Mendoza: veja, esta não é uma crise que tenha surgido nem este ano nem em 2021, na última eleição. O Peru atravessa uma crise que é profunda e múltipla, resultado de 500 anos de colonialismo e 30 anos de neoliberalismo predatório. Portanto, o problema não é apenas de governabilidade, é o próprio regime que já não se sustenta mais. E a melhor prova disso é que mudamos sete vezes de presidente em oito anos, enquanto a situação piora cada vez mais.
Embora se diga muito que o Peru tem uma economia exemplar, a verdade é que, para além dos números de crescimento econômico, estamos falando de um país que teve a mais alta taxa de mortalidade por covid-19 em nível mundial; um país com 29% de pobreza; com 74% da população economicamente ativa na informalidade laboral – ou seja, que não tem contrato, não tem seguro social e não sabe o que são férias remuneradas.
Também é um país que lidera o ranking de insegurança alimentar na América do Sul; um país onde, entre 2017 e 2024, os homicídios aumentaram 171%. Então, não: a crise não é apenas de governabilidade.
É verdade que há uma profunda crise de representação. Na realidade, hoje governam aqueles que perderam as eleições e governam de costas para o povo, preocupados unicamente em garantir sua impunidade e seus negócios. Por isso os níveis de aprovação do governo e do Congresso estão ambos abaixo de 5%, chegando às vezes a bordear o 0%. Mas insisto: esta não é apenas uma crise de representação, é uma crise do regime.
Como você caracterizaria a relação atual entre o Executivo e o Congresso?
Tampouco se trata apenas de uma disputa entre governo e Congresso, como a imprensa nacional costuma apresentar, e às vezes até a internacional. Hoje, na prática, temos um regime parlamentarista de fato: máfias e poderes factuais governam através do Congresso.
Na realidade, Boluarte e agora Jerí não passam de marionetes do que no Peru se denomina “coalizão mafiosa”. E o que é a coalizão mafiosa? É este conjunto de partidos de direita e ultradireita, que inclui também o Peru Livre – que ainda se declara de esquerda, mas não é –, e abrange máfias vinculadas à mineração ilegal, ao tráfico ilegal de recursos naturais, ao narcotráfico e a grupos de poder econômico, midiático, militar e policial.
Além disso, este Congresso praticamente constitucionalizou este regime parlamentar, pois criou – contra a opinião do povo, expressa em referendo – um Senado todo-poderoso, pelo qual nós, peruanos, seremos obrigados a votar em 2026, com regras eleitorais feitas para favorecer as elites centralistas e, ainda por cima, com a captura do sistema eleitoral.
Lembremos que vários candidatos já foram inabilitados, eliminados da disputa, e isto provavelmente continuará. Portanto, em 2026 não teremos eleições limpas no Peru.
Como você avalia o legado político da Presidência de Dina Boluarte após sua destituição e o que revela este episódio sobre a estabilidade do sistema político peruano?
Desastrosa, porque terminou de aviltar a figura presidencial, porque cedeu todo o poder à ultradireita e aos grupos de poder. Não esqueçamos que, além das normas pró-impunidade e pró-crime organizado que ela ratificou, também foram aprovadas isenções tributárias milionárias para grandes empresas e regalias para as Administradoras de Fundos de Pensão (AFPs, entidades privadas que substituíram a Previdência Social no país), incluindo subsídios do Estado.
Mas o pior de tudo foi, sem dúvida, seu desprezo pela vida, porque foi sob sua responsabilidade política que aconteceram os assassinados de 50 peruanos, incluindo menores de idade, cometidos pelas forças de ordem. Não à toa – e assim passará para a história – as pessoas agora a chamam de “Dina assassina”, “Dina Balearte”.

Milhares de peruanos ocuparam ruas do país e confrontaram polícia perto do Congresso, em Lima
Juan Zapata | @_____shoe (Instagram)
O que se espera do governo de José Jerí? Há possibilidades de que ele também enfrente um impeachment?
Não se pode esperar nada novo de um governo de Jerí. É a mesma coalizão mafiosa que continua no poder. Só mudou a máscara, o fantoche de ocasião. Pior ainda, porque se Dina Boluarte de alguma forma foi “contratada” para a ocasião, por assim dizer, não é o caso de Jerí, ele é um dos seus.
Por isso a maioria dos cidadãos exige que se defina um novo presidente ou presidenta, que não seja nenhum dos congressistas que votou pelas leis pró-crime, nenhum dos congressistas que faz parte desta coalizão mafiosa. Precisamos de um governo de transição que possa assegurar uma eleição mais ou menos limpa e um combate real contra o crime.
E isso é o mínimo, mas a solução de fundo é um novo pacto social, uma nova constituição, um reset do sistema com ampla participação cidadã – que sabemos que levará seu tempo, não se resolverá apenas no marco deste processo eleitoral, mas no marco de um processo mais amplo de mobilização e organização cidadã.
Como você avalia a repressão policial contra os manifestantes? E como a população vê a acusação de estupro que pesa sobre o presidente? Isso influencia na visão das pessoas e em sua aprovação?
A primeira coisa que nós, peruanos, pensamos quando o Congresso destituiu Dina Boluarte foi: passamos de uma presidente “traidora e assassina”, para um presidente estuprador. E agora, após a brutal repressão de 15 de outubro, pensamos: passamos para um presidente estuprador e assassino.
Mais ainda depois do assassinato a sangue frio de um jovem artista por parte de um policial vestido de civil, e há vídeos para comprovar isso. Fica claro que esta coalizão mafiosa continuará recorrendo a balas para se manter no poder, lamentavelmente.
Como está posicionado o Peru no atual cenário geopolítico regional?
Creio que hoje o Peru é a melhor prova de que aos grupos de poder e às ultradireitas não lhes interessa a democracia, nem lhes interessa a vida.
Mas também é importante assinalar que há uma consciência crescente no povo peruano de que este sistema já não tem mais jeito e que é necessária uma mudança de fundo, que é necessário construir desde baixo um novo pacto social. Embora, por agora, estejamos mais num momento “destituinte”, vai se abrindo caminho de um processo constituinte popular – e não será apenas no Peru; vejamos o que está acontecendo também no Equador.
Após a declaração de Estado de emergência, quais são os próximos passos no governo peruano?
Esperemos que não se concretize, porque seria completamente inconstitucional, além de ilegítimo e ilegal. Mas se for assim, está claro que não servirá para combater a delinquência como alega o governo, e sim para incutir medo na população, para reprimir e criminalizar quem protesta. Espero que eles saibam desde já que não nos vão calar.
Então, creio que virão tempos turbulentos na América Latina, mas com eles também chegam as oportunidades de mudança.























