Marx inconstitucional? O espectro que ronda um tribunal de Hamburgo
Para Masch, decisão contra estudos marxistas alerta para política da extrema direita em perseguir outros círculos de estudos do filósofo alemão
As teorias de Karl Marx foram dadas como “fundamentalmente incompatíveis com a ordem democrática básica livre” da Alemanha, segundo uma decisão do Tribunal Administrativo de Hamburgo publicada em julho. A afirmação, inédita no judiciário do país, surgiu no desfecho de um processo movido pela Marxistische Abendschule Hamburg (Masch), associação dedicada a cursos e debates sobre o filósofo alemão.
Apesar da avaliação desfavorável à doutrina marxista, a Masch havia obtido vitória judicial meses antes, em abril, quando a Corte proibiu o Escritório Estadual de Proteção à Constituição (LfV) de classificá-la como “extremista de esquerda”.
A Opera Mundi, a Masch destacou um contraste entre a decisão de abril e a fundamentação escrita de julho que teria gerado perplexidade: “para nós foi uma surpresa que a fundamentação escrita trouxesse essa avaliação; durante a audiência essa afirmação não apareceu em momento algum”.
A entidade deve recuperar o status de organização sem fins lucrativos, perdido em 2021 após ser citada em um relatório do serviço de inteligência interno, um órgão de vigilância alemão.
Na Alemanha, cada estado federado (Land) possui seu próprio aparato administrativo e tribunais, mas todos estão subordinados à Lei Fundamental (Grundgesetz), a Constituição nacional. Em Hamburgo, cabe ao Tribunal Administrativo Estadual (Verwaltungsgericht) julgar disputas contra órgãos locais, como o LfV. Foi nesse contexto que a Masch recorreu à Justiça para reverter a medida.
A associação critica, ainda, o que coloca como “interpretações ultrapassadas” por parte do tribunal, como a leitura feita do uso do termo “ditadura do proletariado”, argumentando que Marx e Engels, em vida, passaram a destacar a importância das lutas por eleições livres, pela legalização de partidos operários e pela conquista de direitos trabalhistas.
“Para eles, a época das revoluções feitas por uma minoria tinha ficado para trás. Nosso próprio texto de autocompreensão não faz menção a uma ‘ditadura do proletariado’, mas sim à promoção de uma ‘associação de homens livres’”, completaram.

Associação critica ‘interpretações ultrapassadas’ por parte do tribunal, como leitura de ‘ditadura do proletariado’, que pode abrir precedentes perigosos
Várhelyi Iván/Wikimedia Commons
AfD em ascensão e um ‘ponto de partida para retrocessos’
Uma reportagem do jornal alemão taz destacou a avaliação do advogado Ridvan Ciftci, responsável por defender a associação no processo, que o tribunal foi “irresponsável” ao sugerir que a teoria marxista é incompatível com a democracia alemã. Segundo ele, a leitura abre um precedente perigoso: qualquer grupo que se refira a Marx pode ser alvo de vigilância.
A própria Masch compartilha do temor: “não queremos acreditar nisso, mas pode se tornar um ponto de partida para retrocessos. A AfD, mas também o próprio Verfassungsschutz [serviço de inteligência interno da Alemanha], pode usar essa decisão contra outros círculos de leitura de Marx”.
“Nos Parlamentos regionais e no Parlamento Europeu, deputados da AfD tentam há anos deslegitimar associações de esquerda e exigir que percam a utilidade pública”, alertou ainda a organização.
O contraste é evidente — enquanto um pequeno grupo de leitura é considerado por um tribunal “fundamentalmente incompatível” com a ordem democrática, a Alternativa para a Alemanha (AfD), partido classificado como de extrema direita, vem ampliando sua presença institucional.
Nas eleições federais de fevereiro de 2025, a AfD obteve 20,8% dos votos, tornando-se a segunda maior força parlamentar no Bundestag. Em 2024, já havia conquistado 32,8% dos votos na Turíngia, sendo o partido mais votado no estado. O crescimento ocorreu mesmo após sucessivos escândalos, incluindo um encontro de dirigentes com grupos extremistas que discutiam planos de deportação em massa de migrantes e cidadãos não assimilados.
Esse contraste, apontam integrantes da Masch, mostra uma assimetria: “enquanto círculos marxistas são tratados como incompatíveis com a ordem democrática, a extrema direita avança em eleições e Parlamentos, normalizando posições que colocam em risco direitos fundamentais.”
A Constituição posta contra Marx: o caso Junge Welt
O caso de Hamburgo também chama a atenção por divergir de outra decisão judicial recente — em 2024, o jornal Junge Welt era pauta no Tribunal Administrativo de Berlim, que também discutia sua constitucionalidade.
Na época, foi decidido que a publicação deveria continuar sendo mencionada em relatórios do serviço de inteligência interno, devido aos “indícios substanciais” de sua orientação marxista-leninista. Mais importantemente foi ressaltado pelos juízes que uma transformação social radical não é, por si só, inconstitucional — posição mais flexível que a adotada em Hamburgo.
A divergência expõe uma falta de consenso sobre a relação entre marxismo e a Constituição alemã. Enquanto isso, a Masch segue insistindo em sua autodefinição: “nos vemos como um fórum onde diferentes abordagens críticas são discutidas de forma solidária”.
“Nosso objetivo é difundir e desenvolver a crítica marxista como instrumento de análise da realidade e de sua transformação. Fazemos isso sem vínculo com qualquer partido ou escola teórica específica”, explicaram, por fim.























