Sábado, 6 de dezembro de 2025
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A história recente do Chile tema presentado mudanças tão abruptas que, em certas ocasiões, parece que o país salta com facilidade de um extremo a outro. A voz do povo escutada nas ruas e nas redes sociais afirma que “o roteirista do Chile está cada dia mais criativo”.

A evolução da trama se dá tanto no âmbito do esporte, onde o campeão das Copas Américas de 2015 e 2016 termina na lanterna das Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2026, quanto no da política, onde uma revolta social em 2019 que nasceu do desejo de acabar com a Constituição neoliberal imposta durante a ditadura de Augusto Pinochet em 1980, passou por dois processos constituintes frustrados, em 2022 e 2023, e desemboca em uma eleição presidencial, este ano, com três candidatos pinochetistas entre os quatro primeiros colocados nas pesquisas.

As duas principais figuras dessa corrida ao Palácio de La Moneda, cujo primeiro turno será realizado no dia 16 de novembro, são Jeannette Jara, do Partido Comunista (PC), que até o início do ano era a ministra do Trabalho do governo de centro-esquerda de Gabriel Boric, e José Antonio Kast, do Partido Republicano (PR), representante da extrema direita, irmão de um ex-ministro de Pinochet e filho de um antigo militante da Juventude Hitlerista na Alemanha.

Nas primeiras semanas de campanha eleitoral, o debate público tem sido dominado pelo balanço dos quatro anos de governo de Boric e uma cobertura da mídia hegemônica local que enfatiza assuntos ligados à questão da segurança pública e da imigração, que encaixam melhor com o discurso da direita.

Essa situação favorece não apenas a Kast como também a Evelyn Matthei, da União Democrata Independente (UDI), e Johannes Kaiser, do Partido Nacional Libertário (PNL), ambos também representantes da extrema direita e que aparecem em terceiro e quarto lugar nas pesquisas, respectivamente.

O sociólogo Alexis Cortés, da Universidade Alberto Hurtado, acredita que a defesa do governo Boric, do qual ela foi ministra, será um dos desafios que Jara deverá enfrentar na campanha.

O acadêmico frisou que a atual administração “apesar de ter diminuído bastante sua impopularidade nos últimos meses, ainda é desaprovada”.

“O discurso (de Jara) sobre a desaprovação é de que Boric recebeu do governo de (Sebastián) Piñera o que vocês chamam no Brasil de ‘abacaxi’, aqui no Chile seria uma ‘batata quente’, mas quer dizer que o antecessor entregou o país em péssima situação econômica, e ainda teve que lidar com um Congresso onde não tinha maioria para aprovar seus projetos”, acrescentou Cortés.

Jeannett Jara foi ministra do Trabalho do governo de Gabriel Boric e é a candidata governista nas eleições presidenciais deste ano
Partido Comunista do Chile / X

Comunista moderada parecida a Bachelet

A opção da esquerda nas eleições do Chile é Jeannette Jara, uma mulher de origem popular, com uma trajetória de superação, o que lhe permite gerar identificação com parte significativa do eleitorado feminino.

Apesar de ser uma histórica militante comunista, seu estilo é mais moderado e marca distância de figuras históricas do seu próprio partido, como o ex-prefeito de Recoleta, Daniel Jadue, e inclusive gera uma relação incômoda em alguns setores comunistas, por suas declarações críticas sobre Cuba e Venezuela.

Essa situação que cria um constrangimento especialmente no caso cubano, já que uma grande quantidade de militantes comunistas sobreviveu à ditadura de Pinochet (1973-1990) graças ao asilo concedido por Havana. Dias atrás, porém, durante um evento de campanha, Jara disse que o sistema político de Cuba “claramente não é uma democracia”.

O estilo de Jara também costuma ser comparado ao da ex-presidenta Michelle Bachelet, que governos o Chile durante dois mandatos não consecutivos: o primeiro entre 2006 e 2010, o segundo entre 2014 e 2018. A associação com a ex-mandatária se dá tanto pelo aspecto físico como por seu caráter conciliador e negociador.

O sociólogo Alexis Cortés, que foi membro da Comissão de Especialistas que assessorou o segundo processo constituinte chileno, em 2023, acredita que as chances da candidata governista se ampliaram devido a que “o eleitorado comunista e o eleitorado de Jeannette não são necessariamente os mesmos, ela consegue obter votos em setores sociais que vão muito além do eleitorado histórico do PC, por isso venceu as prévias”.

Em junho passado, Jara disputou e venceu as prévias da coalizão governista, com 60% dos votos, superando Carolina Tohá, do Partido Pela Democracia, que obteve 28%.

“Atualmente, o apoio a Jara inclui também muitos setores ligados ao Partido Socialista, alguns grupos democratas cristãos e até de partidos que estão à esquerda do governo de Boric”, acrescenta Cortés.

Ademais, o sociólogo lembra que mesmo a militância comunista de Jara é menos problemática do que foi para outros representantes do partido no passado., “O Partido Comunista chileno está no seu melhor momento histórico, ao menos em termos eleitorais, e não só pela vitória nas prévias deste ano, já em 2023, na eleição para o segundo processo constituinte, o PC foi o partido mais votado do espectro progressista”.

Na pesquisa mais recente sobre o primeiro turno, publicada no último sábado (27/09) pela consultora Cadem, Jara aparecia em primeiro lugar, com 26% das intenções de voto.

Para Cortés, o desafio da candidata será romper essa margem já conquistada e angariar mais votos em setores indecisos e despolitizados, que deverão votar pela de forma inédita, em um país que terá sua primeira experiência de voto obrigatório desde o fim da ditadura.

Nesse sentido, o sociólogo acredita que a origem popular e a trajetória de superação de Jara podem jogar um papel fundamental, já que boa parte desse eleitorado que não votava nos anos de voto facultativo pertence às classes mais baixas.

“Jara está estável na primeira posição, mas precisa dar um salto, romper a bolha do setor progressista, e para isso dependerá de uma campanha que saiba falar e convencer esse eleitorado que nunca votou e que agora será obrigado a ir às urnas”, analisou Cortés.

Sociólogo Alexis Cortés considera que Jeannette Jara tem estilo parecido ao da ex-presidente chilena Michelle Bachelet
Universidade Alberto Hurtado

Os ‘alemães’

Curiosamente, os três candidatos que aparecem logo atrás nas pesquisas de Jara se assemelham em dois fatores: todos são de extrema direita e possuem origem e sobrenome alemães.

Na pesquisa Cadem, José Antonio Kast aparece com 23% das preferências. Evelyn Matthei tem 17% e Johannes Kaiser tem 11%. Os três somados reúnem 51% do eleitorado, o que talvez explique o fato de Kast liderar em todas as simulações de segundo turno contra Jara.

O que está mais próximo de uma vaga no segundo turno é Kast, que já disputou essa mesma instancia contra Gabriel Boric, em dezembro de 2021, quando foi derrotado por quase um milhão de votos de diferença – 55% para o atual presidente contra 44% para o candidato extremista, em números percentuais.

Kast é abertamente pinochetista, negacionista dos crimes da ditadura e defende o alinhamento do Chile com a política de Donald Trump nos Estados Unidos – e em menor escala com a de Javier Milei na Argentina. Também é um aliado político da família Bolsonaro, e costuma participar dos eventos da Conferência Política de Ação Conservadora (CPAC). Em seu discurso, ele critica fortemente o BRICS e qualificou a recente participação de Boric na cúpula da entidade, no Rio de Janeiro, como um “risco à segurança nacional e o posicionamento internacional do Chile”. Costuma fazer campanha exibindo um escudo similar ao do personagem de quadrinhos Capitão América, mas se autodenominando “Capitão Chile”.

Matthei é a candidata do setor mais à direita do que pode ser chamado de “direita tradicional chilena”, embora seu partido, à UDI, possa ser qualificado, também, como uma “extrema direita tradicional”, defensora do pinochetismo e negacionista dos crimes da ditadura desde a sua fundação. Ela própria é filha de um dos membros da junta militar de Pinochet, o brigadeiro Fernando Matthei. Contudo, em comparação com os demais “alemães”, é vista como a mais moderada.

Kaiser é um deputado que se tornou conhecido por fazer palestras e publicar mensagens nas redes sociais reivindicando os crimes da ditadura de Pinochet, junto com mensagens carregadas de misoginia e defesa do ultraliberalismo, o que lhe conferiu uma imagem de figura próxima ao presidente argentino Javier Milei – inclusive, o partido que criou agregou a alcunha de “libertário” para fortalecer essa associação. Durante a campanha deste ano, repercutiu dentro e fora do país uma declaração sua dizendo que ele apoiaria um novo golpe de Estado no país, mesmo que ele levasse a uma matança de opositores similar ao de 1973.

Segundo o sociólogo Alexis Cortés, “a candidatura de Kaiser é funcional à de Kast, porque ajuda o segundo a se mostrar como mais moderado e diminuir os seus níveis de rejeição, já que existe um candidato que consegue ser ainda mais extremo”

“Por outro lado, isso pode reduzir suas chances no primeiro turno, tirar do Kast alguns votos que deveriam ir naturalmente para ele já nesta instância, algo que poderia ser um risco caso a candidatura de Matthei cresça e ameace o seu segundo lugar, algo que ainda não aconteceu”, complementa o analista político.

Outro elemento que dá a entender que Kast e Kaiser podem estar “jogando juntos neste primeiro turno é que, segundo Cortés, “curiosamente, a campanha Kast não está abordando nenhum tema de valores neste primeiro turno, o que dá a sensação de que estaria se moderando, mas não é isso, simplemente não está mostrando seu lado mais radical e está deixando esse trabalho para o Kaiser”.