Segunda-feira, 15 de dezembro de 2025
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A editora Unesp e o Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) lançam, nesta sexta-feira (25/07), “Dever e Poder: dívida externa e autonomia na Argentina de Alfonsín a Kirchner (1983-2007)”, um estudo de Matheus de Oliveira Pereira, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

O livro é um achado para os que buscam compreender não apenas a história recente da Argentina, mas as engrenagens de dependência e soberania que marcam a política econômica dos países latino-americanos.

O livro investiga como o país vizinho lidou com sua dívida externa em dois governos que procuraram garantir uma certa autonomia frente à pressão dos credores internacionais: o de Raúl Alfonsín (1983-1989) e o de Néstor Kirchner (2003-2007).

Em ambos os casos, havia o mesmo propósito de recuperar a soberania argentina, limitando a influência de atores externos como o Fundo Monetário Internacional (FMI), credores privados e governos, em particular os Estados Unidos de Ronald Reagan (1981-1989) e de George W. Bush (2001-2009), sobre a política nacional.

Os resultados, no entanto, foram opostos. Enquanto Alfonsín se viu forçado a abdicar de suas promessas iniciais, engolido pelas pressões financeiras; Kirchner conduziu uma das negociações de dívida soberana mais bem-sucedidas da história recente.

“É possível dizer, portanto, com uma dose de anedota, que o objetivo do estudo é entender os porquês de Kirchner ter sido capaz de cumprir uma promessa que Alfonsín não logrou manter”, afirma Pereira, também membro do INEU.

Para além da intenção

Ambos os governos enfrentaram crises econômicas e apresentaram suas propostas frente a crises internas e enfrentaram um crescimento desenfreado do endividamento. No governo Alfonsín, inclusive, o cenário parecia muito mais favorável para a liquidação da dívida.

Liderança consolidada, oriunda da União Cívica Radical (UCR), o partido político mais antigo da Argentina, Alfonsín foi o primeiro a ser eleito diretamente, derrotando o peronismo em eleições livres e contando com forte legitimidade para enfrentar a crise econômica deixada pelos militares. Sua agenda, aponta Pereira, era clara e a dívida externa era considerada “odiosa” aos olhos do direito internacional, pois havia sido contraída por uma ditadura ilegítima.

Kirchner, pelo contrário, chegou ao poder quase por acaso, após a desistência de seu principal oponente e sem capital político robusto. Ele buscava um desconto de 75% da dívida externa, que não tinha sequer respaldo jurídico equivalente.

Ao analisar esses diferentes cenários, Pereira traz um panorama da vida política e econômica da Argentina recente e, sobretudo, do contexto global em que a disputa pela autonomia se deu na América Latina entre 1983 e 2007.

‘Dever e Poder: dívida externa e autonomia na Argentina de Alfonsín a Kirchner (1983-2007)’, um estudo de Matheus de Oliveira Pereira
Reprodução / Wikimedia Commons

Ele mostra que a crise dos anos 1980, embora grave, foi regional e atingiu diversos países latino-americanos, criando um ambiente de bancarrota coletiva que limitou as possibilidades de Alfonsín. Já a crise enfrentada por Kirchner se apresentou como um colapso quase isolado, garantindo-lhe uma maior margem de manobra para negociar, sem arrastar os demais países.

Além disso, no início dos anos 2000, o cenário internacional de commodities era muito mais favorável, ampliando o espaço fiscal do governo para resistir às pressões externas. Com isso, Kirchner pode adotar uma postura de confrontação, reestruturar os pagamentos, a partir de calendários definidos internamente, livrando a Argentina da ingerência do FMI.

Alfonsín, pelo contrário, teve de abandonar as bandeiras mais radicais e adotar programas heterodoxos, vendo naufragar os esforços de cooperação multilateral e sua promessa de autonomia.

Autonomia

A pesquisa, fruto da tese de doutoramento defendida no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), evidencia que a autonomia não é apenas um ideal político ou uma questão de vontade dos governantes, mas um fenômeno profundamente enraizado em estruturas econômicas, sociais e históricas.

Para explicá-lo, Pereira mobiliza um arcabouço teórico de primeira linha nas Relações Internacionais, analisando a natureza institucional e a concentração dos credores, ou seja, de quem detém a dívida, com que grau de organização e poder de barganha; a correlação de forças domésticas entre as classes dominantes locais e o capital internacional; e o espaço fiscal propriamente dito, medido pela real capacidade dos Estados de pagarem suas dívidas.

Com dados e análises detalhadas, o livro mostra como esses elementos se entrelaçam à conjuntura histórica. Quanto mais vinculadas ao capital estrangeiro estiverem as elites locais, mais dificuldades os governantes terão de sustentar suas posições autonomistas, porque terão de enfrentar uma dupla resistência, de fora e de dentro, afirma Pereira.

No governo Alfonsín, por exemplo, a coalizão interna era muito mais frágil e dependente de interesses atrelados ao mercado internacional, do que a encontrada por Kirchner. Nos anos 1980, os bancos comerciais privados se transformaram nos principais credores externos dos países, inclusive monitorando a evolução das economias latino-americanas.

Ao contar esse processo, o especialista também evidencia como o endividamento dos Estados foi crucial para o surgimento do atual capitalismo rentista, servindo de “trampolim para o empoderamento privado sobre áreas centrais da economia, como o setor bancário e fiscal”.

A expansão da dívida dos países, afirma o pesquisador, gerou uma elite rentista da qual o próprio Estado se tornou dependente, a ponto de a estabilidade financeira dela se confundir com a do governo.

Elas foram centrais na formação do atual sistema internacional de créditos, aponta Pereira, “funcionando como o mecanismo pelo qual os Estados competiam pela atração dos capitais circulantes. Essa competição, contudo, não resultou em um sistema de unidades políticas equivalentes, mas sim em hierarquias que se expressam no presente de diferentes modos”.

O resultado para os países periféricos, aponta, foi a transformação do crédito internacional “muito mais em um mecanismo de subordinação do que de desenvolvimento”, aponta.

O livro

Dividido em cinco partes, o livro começa com uma discussão teórica sobre a autonomia dos Estados e a dívida externa. Nos capítulos seguintes, apresenta o contexto de ambas as crises e, na sequência, a reação dos governos. Documentos oficiais, dados estatísticos e entrevistas com diplomatas, políticos e agentes financeiros que participaram das negociações dão consistência aos argumentos.

Aos leigos do assunto, a linguagem é didática e, como bom professor, Pereira aprofunda os conceitos com rigor, mas escapando do economês a partir de exemplos concretos da realidade. A linguagem é acessível não apenas para acadêmicos, mas a todos os interessados nas discussões sobre a economia política na América Latina.

Mais do que uma análise sobre a Argentina, “Dever e Poder” apresenta os dilemas da América Latina no sistema internacional, mostrando que as escolhas políticas não acontecem no vácuo, mas em campos de força herdadas e transformadas por ações políticas.

A pesquisa não chega aos dias atuais, mas a compreensão das tensões no país vizinho, em particular, as pressões dos Estados Unidos em diferentes contextos, nos desafia a olhar com mais profundidade o retorno do país ao FMI, após 12 anos de independência.

Durante o governo Macri, a Argentina contraiu o maior empréstimo do Fundo, na ordem de US$ 50 bilhões. Sob Javier Milei, o presidente da extrema direita que promete destruir por dentro o Estado, são mais de US$ 20 bilhões, acompanhado de um desmonte dos controles cambiais.

O livro já está à venda no site da Editora Unesp. Quem estiver em São Paulo, na próxima sexta-feira (25/05), o lançamento será na Livraria Martins Fontes da Avenida Paulista, às 19h.