Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Era 1999, e os Estados Unidos (e o Canadá) resolveram taxar produtos franceses típicos, como o queijo roquefort e a mostarda de Dijon, em 100%. À época, a União Europeia impedia a importação de carne de vaca norte-americana devido ao uso de hormônios nos EUA, por conta dos riscos potenciais do produto para o consumo humano.

Para os EUA, era protecionismo, já que não haveria elementos para comprovar o risco do uso dos hormônios.

O luxo francês, muitas vezes concentrado nas mãos de marcas internacionais, nutre-se — e isso nem sempre é lembrado — do trabalho de pequenos proprietários rurais, em diferentes regiões do país. Micro, pequenos e médios produtores vendem produtos a marcas famosas, muitas vezes monopolistas.

É assim com o roquefort. Um desses produtores chamava-se José Bové e criava ovelhas, cujo leite era usado na produção do queijo.

Antes, Festival de Avignon em homenagem ao Brasil

Eu estava na França, voltando do Festival de Avignon, que homenageara o Brasil, onde fiz uma cobertura para a Folha de S.Paulo. Acompanhei várias montagens na cidade interiorana que já foi, um dia, capital da Igreja Católica. Passei sobre a Ponte de Avignon, mas não dancei, como sugere a música, porque eu era muito discreto. Um dos destaques daquela cobertura foi uma apresentação de Antônio Nóbrega numa antiga pedreira, nos arredores da cidade.

Quando cheguei à França, encontrei, numa notícia de jornal, a informação de que José Bové estava preso por depredar uma lanchonete do McDonald’s na cidade de Millau, no sudoeste da França. Liguei para o jornal e sugeri uma pauta: ir até lá e entender o que tinha acontecido.

Não encontrei Bové no dia em que estive em Millau e Roquefort (há uma pequena comuna com o nome do queijo), afinal, ele continuava preso. Mas, em 12 de setembro de 1999, cinco dias após a liberação de Bové, a Folha publicou a reportagem, com fotos e textos meus, sobre o McDonald’s desmontado e a mobilização da cidade em torno da defesa do líder camponês.

Bové, já bastante conhecido na França por ter rejeitado cumprir o serviço militar nos anos 1970 e por ter atrapalhado, em 1995, com outros ambientalistas, testes nucleares franceses no Oceano Pacífico, tornaria-se então uma liderança mundial.

“Um grupo de 50 líderes agrícolas norte-americanos lançou um manifesto defendendo ‘o direito dos povos de se alimentar de acordo com a própria escolha’ e se opondo ao ‘ataque das organizações internacionais [no caso, a Organização Mundial do Comércio, que autorizara as taxas dos Estados Unidos] contra a qualidade dos alimentos’”, escrevi à época.

Contra a barreira, o mesmo manifesto conclamava os cidadãos a recusarem “carne de gado tratado com hormônio e os alimentos transgênicos”.

Bové defendia, já à época, que lutar contra os transgênicos “não é lutar contra a tecnologia”: “É lutar pelo futuro, contra um uso irresponsável da ciência. Os transgênicos representam um empobrecimento genético, uma uniformização dos alimentos, privilegiando a quantidade abandonando a qualidade”.

Estudante de filosofia de Bordeaux, em 1975 Bové mudou-se para a região do Aveyron (sudoeste da França) para criar ovelhas, depois de apoiar por três anos a resistência dos pequenos proprietários à ampliação de uma zona militar, ocupando um sítio que havia sido vendido ao governo francês.

“Não ficaria tanto tempo se não gostasse da vida que levo. Moro lá até hoje com minha mulher e duas filhas”, disse à época o ex-sem-terra.

Com o sucesso da resistência (em 1981, François Mitterrand engavetou o projeto de expansão da zona militar), Bové fundou a Confederação Camponesa.

 

José Bové, o criador de ovelhas que se tornou símbolo antiglobalização e candidato presidencial durante campanha em 2007. <br> (Foto: Guillaume Paumier / Wikimedia Commons)

José Bové, o criador de ovelhas que se tornou símbolo antiglobalização e candidato presidencial durante campanha em 2007.
(Foto: Guillaume Paumier / Wikimedia Commons)

“Um grupo de 50 líderes agrícolas norte-americanos lançou um manifesto defendendo ‘o direito dos povos de se alimentar de acordo com a própria escolha’ e se opondo ao ‘ataque das organizações internacionais [no caso, a Organização Mundial do Comércio, que autorizara as taxas dos Estados Unidos] contra a qualidade dos alimentos’”, escrevi à época. Contra a barreira, o mesmo manifesto conclamava os cidadãos a recusarem “carne de gado tratado com hormônio e os alimentos transgênicos”.

Bové defendia, já à época, que lutar contra os transgênicos “não é lutar contra a tecnologia”: “É lutar pelo futuro, contra um uso irresponsável da ciência. Os transgênicos representam um empobrecimento genético, uma uniformização dos alimentos, privilegiar a quantidade abandonando a qualidade”.

Estudante de filosofia de Bordeaux, em 1975 Bové mudou-se para a região do Aveyron (sudoeste da França) para criar ovelhas depois de apoiar por três anos a resistência dos pequenos proprietários à ampliação de uma zona militar, ocupando um sítio que havia sido vendido ao governo francês.

“Não ficaria tanto tempo se não gostasse da vida que levo. Moro lá até hoje com minha mulher e duas filhas”, disse o ex-sem-terra. Com o sucesso da resistência (em 1981, François Mitterrand engavetou o projeto de expansão da zona militar), Bové fundou a Confederação Camponesa.

Bové participou de ação contra transgênicos na França e no Brasil

Em 1998, ele participou de duas ações que destruíram campos de alimentos transgênicos na França, o que lhe rendeu uma condenação a oito meses de prisão, em regime aberto. Em 2001, no Brasil, ele repetiu a ação, representando a Via Campesina numa operação que destruiu áreas de cultivo de soja transgênica da Monsanto no Rio Grande do Sul.

Bové teve uma longa trajetória sindical e política, chegando a disputar a presidência francesa numa espécie de anticandidatura verde, tendo atingido pouco mais de 1% dos votos.

Mas voltemos a 1999: depois da prisão de Bové, os McDonald’s franceses, tomados como símbolo da globalização, viraram alvo preferencial de manifestantes contra o embargo norte-americano. Várias lojas foram ocupadas. Numa delas, em Agen, os agricultores serviram sanduíches com roquefort e patê de foie gras. Em Millau, vários bares deixaram de vender Coca-Cola e outros produtos norte-americanos, aumentando a pressão simbólica contra a taxação dos EUA.

Do ministro da Agricultura, Jean Glavany (socialista), ao presidente Jacques Chirac (de direita), o apoio ao movimento dos agricultores foi generalizado, embora a desmontagem do McDonald’s tenha sido, em geral, condenada.

Bové afirma que a escolha do McDonald’s de Millau, que estava em fase final de construção, não foi aleatória:

“O McDonald’s pressupõe uma agricultura destrutiva. Sua implantação na região de Roquefort é representativa dessa pressão destrutiva”, afirmou ele.

Sob pressão, o McDonald’s francês resolveu contemporizar. Desistiu de cobrar os supostos prejuízos causados em Millau, inicialmente estimados em 167 mil dólares da época.