W.E.B. Du Bois: uma vida dedicada à emancipação do povo negro
Militante da causa socialista e um dos principais organizadores do pan-africanismo, defendendo a luta anticolonial
Há 62 anos, em 27 de agosto de 1963, falecia o sociólogo, historiador e militante dos direitos civis W.E.B. Du Bois. Nascido nos Estados Unidos, ele foi um pioneiro da sociologia empírica, usando dados e metodologias rigorosas para desmontar cientificamente as teses racistas que justificavam a segregação e a desigualdade social.
Du Bois foi cofundador da Associação Nacional pelo Progresso de Pessoas de Cor (NAACP), a primeira grande organização nacional do movimento negro nos Estados Unidos, e teve papel fundamental na articulação da luta em prol dos direito civis da população afro-americana.
Destacou-se ainda como militante da causa socialista e foi um dos principais organizadores do pan-africanismo, defendendo a luta anticolonial e a unidade dos povos africanos. Perseguido pelo governo norte-americano, passou seus últimos anos exilado em Gana, onde contribuiu com a elaboração do projeto da “Enciclopédia Africana”.
Juventude e formação
William Edward Burghardt Du Bois nasceu em 23 de fevereiro de 1868 em Great Barrington, Massachusetts. Ele era filho de Alfred Du Bois, um imigrante haitiano, e de Mary Silvina Burghardt, descendente de uma família de negros livres com raízes holandesas, inglesas e africanas.
Alfred abandonou a família quando William tinha apenas dois anos. A mãe passou a trabalhar em empregos domésticos para sustentar a casa, contando também com a ajuda de parentes e vizinhos. Embora tivesse uma população predominantemente branca, Great Barrington era uma cidade bem mais tolerante em comparação com o Sul segregado, o que permitiu que Du Bois frequentasse escolas públicas integradas.
Du Bois foi primeiro aluno negro a obter um diploma de ensino secundário na Great Barrington High School. Uma coleta de fundos organizada por uma igreja da cidade possibilitou que o jovem desse continuidade aos estudos. Em 1885, ele se matriculou na Universidade Fisk, uma instituição de ensino aberta à comunidade afro-americana, localizada em Nashville, Tennessee.
Durante a graduação, Du Bois foi exposto ao visceral racismo sulista. O estado possuía uma legislação que promovia a segregação (as Leis de Jim Crow) e registrava recorrentes episódios de violência racial. A experiência marcaria a trajetória intelectual e política de Du Bois, levando-o a moldar sua crítica a respeito da “linha de cor” — a divisão racial em torno da qual eram estruturadas as relações sociais, econômicas e políticas no país.
Após obter seu bacharelado em Artes Liberais, Du Bois estudou Ciências Sociais no Harvard College, tornando-se o sétimo negro a ser admitido pela instituição. Interessou-se pelo estudo da sociologia e da filosofia e foi fortemente influenciado pelo pensamento de William James. Formou-se com honras em 1890 e obteve seu mestrado em História já no ano seguinte.
Agraciado com uma bolsa de estudos concedida pelo Fundo Slater Para a Educação de Libertos, Du Bois partiu para a Alemanha em 1892, a fim de estudar na Universidade Friedrich Wilhelm, em Berlim. Na instituição, teve contato com expoentes do empirismo científico e do historicismo alemão e aproximou-se do sociólogo Max Weber.
Os estudos na Alemanha ajudaram Du Bois a conceber a análise sobre a situação dos afro-americanos sob uma perspectiva global e a rejeitar hipóteses biologizantes sobre o racismo, compreendendo-o como um produto histórico da escravidão, da segregação e das condições socioeconômicas impostas.
Após retornar da Europa, Du Bois concluiu os estudos de pós-graduação. Em 1895, ele se tornou o primeiro afro-americano a concluir o doutorado em Harvard. Sua tese, intitulada “A supressão do tráfico de escravos africanos para os Estados Unidos da América”, é considerada o primeiro estudo acadêmico rigoroso sobre o comércio de escravos nos Estados Unidos.
Carreira acadêmica
Em 1894, Du Bois começou a lecionar na Universidade de Wilberforce, em Ohio, uma das mais antigas instituições de ensino superior voltadas à comunidade negra. Dois anos depois, casou-se com Nina Gomer, uma de suas alunas. O casal teve dois filhos — Burghardt, falecido ainda na infância, e Yolande.
Ainda em 1896, Du Bois iniciou um projeto pioneiro vinculado à Universidade da Pensilvânia, baseado em pesquisas de campo junto aos bairros negros da Filadélfia. O estudo serviria de base para o livro “O Negro da Filadélfia”. Considerada a primeira pesquisa sociológica de base empírica feita nos Estados Unidos, a obra desafiou as narrativas racistas ao demonstrar que as condições socioeconômicas dos afro-americanos estavam diretamente vinculadas a fatores históricos e estruturais.
De 1897 a 1910, Du Bois lecionou história e economia na Universidade de Atlanta, outra histórica instituição negra. Ele dirigiu um importante programa de estudos sociológicos, produzindo uma série de monografias sobre a comunidade afro-americana, abordando temas como trabalho, educação, saúde, moradia, além de organizar as chamadas “conferências anuais sobre os problemas negros”.
Esses estudos eram baseados em estatísticas, questionários, entrevistas, ajudando a estabelecer uma metodologia de análise das questões sociais permeadas pelo rigor científico. Assim, além de ajudar a desmontar as teorias raciais pseudocientíficas, o trabalho de Du Bois teve importância fundamental para a consolidação da antropologia urbana e da sociologia aplicada.
Em paralelo aos aportes acadêmicos, Du Bois se tornou cada vez mais engajado nas discussões e debates políticos. Em 1900, ele participou da Primeira Conferência Pan-Africana, ocasião em que proferiu um potente discurso denunciando a exploração imperialista europeia e exortando o direito à autodeterminação das nações subjugadas pelo colonialismo.
O sociólogo também foi um opositor da estratégia de acomodação elaborada pelo líder afro-americano Booker Washington. A proposta, conhecida como “Compromisso de Atlanta”, preconizava que os negros deveriam aceitar a segregação em troca de oportunidades de educação técnica e industrial. Du Bois rejeitou veementemente essa ideia, argumentando que a luta por direitos iguais era condição fundamental para garantir a emancipação do povo negro.
Os ensaios de Du Bois acerca do “Compromisso de Atlanta” seriam compilados na obra “As Almas do Povo Negro”, onde o autor aprofunda as críticas à “linha de cor”. No livro, Du Bois introduz o conceito de “dupla consciência”, descrevendo a experiência de sempre enxergar a si mesmo através dos olhos de uma sociedade racista que despreza a negritude. A obra é um marco fundamental do movimento negro nos Estados Unidos e teve enorme influência sobre a produção intelectual ulterior.
NAACP e a militância no movimento negro
Em 1905, Du Bois ajudou a fundar o “Movimento Niágara”, uma organização voltada a promover defesa dos direitos do povo negro. A iniciativa teve curta duração, mas ajudou a pavimentar o caminho para a Associação Nacional pelo Progresso de Pessoas de Cor (NAACP), inaugurada quatro anos depois.
A NAACP se consolidaria como a primeira grande organização nacional a lutar sistematicamente pelos direitos civis dos afro-americanos e pela superação do regime segregacionista. Ela atuava tanto na mobilização das massas quanto na articulação política e na produção intelectual, viabilizando uma série de conquistas históricas para o povo negro.
Du Bois se desligou da universidade para chefiar o setor de pesquisas e publicações da organização. Ele também assumiu a edição da revista “The Crisis”, o periódico oficial da NAACP, que se tornaria um dos instrumentos mais poderosos de mobilização da comunidade negra nos Estados Unidos, atingindo uma tiragem superior a 100.000 exemplares.

W.E.B. Du Bois, fotografado por James E. Purdy
Wikimedia Commons
À frente da revista, Du Bois combateu o movimento eugênico e denunciou os linchamentos, massacres e ataques cometidos por milícias supremacistas. Ele também exortou a ação da comunidade negra, convocando a realização de atos e manifestações. Em 1917, Du Bois organizou a icônica Parada Silenciosa de Nova York, onde milhares de afro-americanos marcharam em protesto contra os motins raciais de East St. Louis.
Ao mesmo tempo em que intensificava sua atuação no movimento negro, Du Bois também se aproximava das ideias socialistas. Ele se filiou ao Partido Socialista da América em 1912 e caminhou progressivamente para uma postura cada vez mais crítica ao capitalismo.
Du Bois defendia a ideia de que a riqueza gerada pela escravidão serviu de base ao desenvolvimento do capitalismo moderno, particularmente nos Estados Unidos e na Europa. Ele também argumentava que o racismo era uma construção ideológica criada e perpetuada para justificar a exploração econômica dos povos negros e legitimar a manutenção das hierarquias sociais.
Pan-Africanismo
Em 1919, após o término da Primeira Guerra Mundial, Du Bois viajou para a Europa, a fim de participar do Primeiro Congresso Pan Africano. Na ocasião, ele entrevistou soldados afro-americanos que atuaram no conflito e coletou depoimentos sobre abusos e discriminação, dando início a um movimento de denúncia sobre o racismo nas Forças Armadas.
No ano seguinte, Du Bois publicou “Darkwater: Voices from Within the Veil”, uma obra que condensa autobiografia, ensaios políticos, poesias e ficções alegóricas com reflexões sobre raça, classe, imperialismo e a condição feminina. No livro, o autor reforça sua posição como socialista e reafirma o argumento de que o capitalismo é um sistema inseparável do racismo e do imperialismo.
Em 1921, Du Bois ajudou a organizar o Segundo Congresso Pan-Africano, do qual participaram 26 delegações oriundas da África, América, Europa e Ásia. A defesa da igualdade racial feita pelo sociólogo durante o congresso foi criticada por Marcus Garvey, líder de um movimento que incentivava a a colonização da África por afro-americanos e defendia a separação racial. Du Bois respondeu aos ataques reafirmando que a África deveria ser governada por africanos e descreveu Garvey como “o inimigo mais perigoso da raça negra na América e no mundo”.
Em 1923, Du Bois participou do Terceiro Congresso Pan-Africano, consolidando sua posição como um dos grandes líderes do movimento. Após o congresso, ele viajou para a África pela primeira vez, visitando Libéria, Serra Leoa e Senegal. As viagens enriqueceram sua compreensão sobre as condições africanas, fortalecendo sua defesa do direito à autodeterminação dos povos do continente.
Du Bois também se ocupou de apoiar a cultura afro-americana, incentivando o público a consumir as obras criadas por escritores, artistas e intelectuais negros. Ele ajudou a promover o movimento do “Renascimento do Harlem” e defendeu a criação de uma “economia autônoma” no setor cultural, estruturada em cooperativas e sociedades de auxílio mútuo.
Retorno a Atlanta
Malgrado sua enorme contribuição para o movimento negro, Du Bois entrou em atritos constantes com a direção da NAACP. Em 1933, ele renunciou ao cargo de editor do “The Crisis”, motivado por conflitos com o presidente Walter White.
A tensão chegou ao ápice em 1934, após Du Bois dar uma declaração dizendo que a doutrina “separados, mas iguais” seria tolerável em contrapartida à concessão da autogestão negra. A NAACP exigiu uma retratação imediata. Du Bois se recusou e pediu seu desligamento da organização.
O sociólogo voltou a lecionar na Universidade de Atlanta, onde produziu uma série de ensaios e artigos influenciados pela teoria marxista e defendeu o socialismo como uma alternativa factível para a superação do racismo. Ao mesmo tempo, ele criticava o Partido Comunista dos Estados Unidos e o movimento sindical pela falta de engajamento nas lutas do movimento negro.
Em 1935, Du Bois publicou “A Reconstrução Negra na América”, uma de suas obras mais admiradas. O livro traz uma interpretação marxista sobre a era da Reconstrução, iniciada nos Estados Unidos após término da Guerra Civil.
Na obra, Du Bois rejeita a interpretação tradicional que responsabilizava os afro-americanos pelo caos no país, retratando a Reconstrução como uma ousada tentativa de instituir uma democracia multirracial, com os negros desempenhando um papel heroico e ativo e as elites brancas atuando como sabotadoras.
Atuação internacional
Em 1940, Du Bois lançou “Crepúsculo do Amanhecer”, uma combinação de autobiografia, ensaio sociológico e análise histórica. No livro, o autor apresenta a ideia de “raça” como um construto social que foi utilizado para justificar a opressão e a desigualdade e demonstra como esse conceito moldou a sua vida e a dos afro-americanos.
Demitido da Universidade de Atlanta em 1943, Du Bois retornou à NAACP, assumindo a direção do Departamento de Pesquisas Especiais. Ele representou a organização durante a conferência fundadora da ONU, sediada em São Francisco, onde defendeu vigorosamente o fim do colonialismo.
Ainda em 1945, Du Bois participou do Quinto Congresso Pan-Africano, ao lado de nomes como Kwame Nkrumah e Jomo Kenyatta. O congresso teve grande importância para a difusão das ideias anticoloniais e impulsionou a criação de movimentos de libertação em todo o continente. No mesmo ano, Du Bois publicou “Cor e Democracia”, aprofundando suas críticas à colonização.
Em 1947, Du Bois redigiu uma petição direcionada à ONU, onde acusava o governo norte-americano de ser cúmplice das violações de direitos humanos cometidas contra a população negra. As críticas ao governo norte-americano e o alinhamento com o movimento socialista resultaram em pressões crescentes sobre a NAACP. Em 1948, Du Bois foi forçado a deixar a organização.
Nos anos seguintes, o sociólogo participou de uma série de conferências pela paz. Em Paris, fez um famoso discurso onde traçou paralelos entre a perseguição aos judeus no Gueto de Varsóvia e a opressão contra os afro-americanos nos Estados Unidos. Casou-se pela segunda vez no início dos anos 50, unindo-se à escritora Shirley Graham.
A perseguição nos anos finais
Com um discurso cada vez mais alinhado ao pensamento socialista e às lutas anticoloniais, Du Bois acabou sofrendo um gradual isolamento dentro do movimento negro e tornou-se alvo do governo norte-americano.
Em 1951, o sociólogo foi indiciado como “agente estrangeiro” e acusado de promover “propaganda soviética”. O motivo foi sua nomeação ao cargo de presidente do Centro de Informação pela Paz (PIC), que reivindicava o banimento das armas nucleares.
O caso foi arquivado após Albert Einstein se oferecer para depor em favor de Du Bois. As autoridades norte-americanas, no entanto, seguiram tentando neutralizar suas atividades políticas. Entre 1952 e 1958, ele teve seu passaporte retido, sendo proibido de deixar o país.
Após recuperar o documento, Du Bois partiu em viagem rumo à União Soviética e à China, onde se encontrou com líderes como Nikita Kruschev e Mao Zedong.
Em 1961, aos 93 anos, Du Bois ingressou no Partido Comunista dos Estados Unidos. A filiação era um ato de protesto a uma decisão da Suprema Corte, que havia tornado obrigatório o registro público de comunistas no país.
Em seguida, Du Bois aceitou o convite feito pelo presidente de Gana, Kwame Nkrumah, para se mudar para Acra e assumir o comando da “Enciclopédia Africana”, um projeto de documentação da história e das manifestações culturais do continente. Na mesma época, anunciou a intenção de renunciar à cidadania norte-americana.
Du Bois faleceu em Acra, em 27 de agosto de 1963, aos 95 anos — um dia antes da célebre marcha de Martin Luther King sobre Washington. Sua morte causou grande comoção e o cortejo fúnebre atraiu milhares de pessoas às ruas de Acra. Uma grande homenagem ao líder afro-americano também foi realizada na China. Sua antiga residência em Gana foi transformada no Centro Memorial W.E.B. Du Bois para a Cultura Pan-Africana.























