Vida e legado de Irmã Dulce, a ‘santa dos pobres’
Religiosa se destacou internacionalmente por seu trabalho social; no Brasil, foi responsável por criar o maior complexo filantrópico de assistência médica
Há 111 anos, em 26 de maio de 1914, nascia Irmã Dulce, religiosa que se notabilizou internacionalmente por seu trabalho social.
Ainda na adolescência, Irmã Dulce transformou sua casa em um abrigo para atender os enfermos e a população em situação de rua. Como freira, ela foi responsável por fundar o primeiro movimento operário religioso da Bahia e uma série de instituições de acolhimento à população carente.
Irmã Dulce foi responsável por criar o maior complexo filantrópico de assistência médica do Brasil — que serviria de base para a implementação de boa parte da rede assistencial da Bahia após a criação do SUS. Durante a ditadura militar, ela foi monitorada pelo regime e deu abrigo a militantes perseguidos pelos aparelhos repressivos.
Suas obras em prol dos desfavorecidos lhe renderam a alcunha de “Anjo Bom da Bahia” e uma indicação ao Prêmio Nobel da Paz em 1988. Irmã Dulce foi canonizada pelo Papa Francisco em 2019, sob o título de “Santa Dulce dos Pobres”.
A juventude de Irmã Dulce
Batizada Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes, Irmã Dulce nasceu em Salvador, em 26 de maio de 1914.
Segunda filha do dentista Augusto Lopes Pontes e de Dulce Maria de Souza Brito, ela passou a infância no bairro do Barbalho, brincando de boneca, empinando pipa e frequentando os jogos do Esporte Clube Ypiranga, time de futebol formado por operários.
Após perder sua mãe aos sete anos de idade, Maria Rita passou a ser criada com auxílio da tia, que tinha o hábito de levá-la consigo durante as ações de caridade da igreja. Desenvolveu desde cedo a vontade de seguir a carreira religiosa e auxiliar os necessitados.
Já aos treze anos de idade, com o aval da família, ela passou a acolher os moradores de rua e doentes em sua residência. Sua casa se tornou um centro de atendimento informal e ganhou o apelido de “Portaria de São Francisco”, em função do grande número de pessoas carentes que se aglomeravam na fachada. Em 1927, Maria Rita tentou ingressar na carreira religiosa, mas foi recusada por ser muito jovem.
O Círculo Operário da Bahia
Após concluir o ensino básico, Maria Rita cursou o magistério, tornando-se professora primária. Ingressou em seguida na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, na cidade de São Cristóvão, em Sergipe.
Após seis meses de noviciado, fez sua profissão de fé e declamou seus votos perpétuos, tomando o hábito de freira e adotando o nome de Irmã Dulce, em homenagem a sua mãe. Retornou então a Salvador, onde passou a lecionar em um colégio mantido por sua congregação na Cidade Baixa, mantendo em paralelo um trabalho social direcionado às comunidades pobres da região.
Em 1936, Irmã Dulce fundou a União Operária São Francisco, primeiro movimento operário cristão da Bahia. A organização mantinha o trabalho de evangelização e prestava assistência social e apoio jurídico e sindical aos trabalhadores de Salvador. Também auxiliava na criação de cooperativas laborais e promovia atividades educativas, culturais e sociais voltadas à classe operária
No ano seguinte, com o auxílio do clérigo alemão Hildebrando Kruthanp, a organização ampliou sua atuação e foi rebatizada como Círculo Operário da Bahia (COB). Para financiar as obras, Irmã Dulce coordenou a instalação de três cinemas populares em Salvador, destinando a verba arrecadada com os ingressos era para o caixa da instituição.
O COB se tornou a mais relevante organização trabalhista da Bahia, agregando mais de 10 mil associados. Não obstante, a gestão da instituição foi algo tumultuada e a freira chegou a se desentender algumas vezes com Hildebrando Kruthanp. O frei alemão ameaçou retirar Irmã Dulce da organização como punição pela freira ter utilizado verbas da congregação em obras sociais.

Irmã Dulce, aos 20 anos de idade
Autor desconhecido/Wikimedia Commons
As Obras Sociais
Superados os desentendimentos, Irmã Dulce deu continuidade à expansão de seus trabalhos sociais. Em 1939, a freira inaugurou o Colégio Santo Antônio, dedicado a instruir os operários e seus filhos.
Com as instalações da congregação já lotadas e sem ter lugar para abrigar os doentes que recolhia na rua, Irmã Dulce liderou a invasão de cinco imóveis vazios na Ilha do Rato, em Salvador. Os proprietários solicitaram a reintegração de posse e a freira foi expulsa, iniciando uma peregrinação em busca de um novo local para hospedar os enfermos.
Resolveu então transformar o antigo galinheiro do Convento de Santo Antônio em um albergue. Nos anos seguintes, o local seria submetido a uma série de reformas e ampliações, passando a ocupar uma ala inteira da edificação. O albergue posteriormente se transformou no Hospital Santo Antônio — complexo médico, social e educacional voltado ao atendimento gratuito da população carente.
Em maio de 1959, o hospital foi incorporado às Obras Sociais Irmã Dulce (OSID), que se converteria na maior organização filantrópica do Brasil e principal local de atendimento médico para a população de baixa renda no estado da Bahia.
As Obras Sociais Irmã Dulce preencheram uma importante lacuna existente na rede pública de atendimento médico nas décadas que antecederam a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), passando a contar com a subvenção do erário para prestar serviços.
A ditadura militar
Após o golpe militar de 1964, os repasses para a organização de Irmã Dulce foram severamente restringidos, levando à deterioração do atendimento. A freira não tinha vínculos políticos ou partidários e manteve-se neutra em relação ao regime militar.
Mesmo assim, ela passou a ser monitorada pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) — o órgão de inteligência e repressão do regime. Os agentes da ditadura desconfiavam de uma possível “infiltração comunista” nas organizações eclesiásticas da Bahia e de vínculos entre a freira e os representantes da Teologia da Libertação.
A desconfiança dos militares se intensificou após Irmã Dulce convidar o médico comunista Gerson Mascarenhas para dirigir o hospital de sua instituição. Gerson foi preso por duas vezes pelo regime militar e a freira pressionou energicamente pela sua libertação nas duas ocasiões.
Os hospitais de Irmã Dulce prestavam secretamente atendimento médico aos opositores da ditadura, que corriam risco de prisão caso buscassem os demais hospitais de Salvador. A freira também deu guarida a Luciano Oliveira da Silva, militante do PCdoB procurado pelo regime, em seus hospitais.
Ao mesmo tempo, Irmã Dulce pressionava as autoridades do regime militar a liberarem verbas para suas obras sociais. Em determinada ocasião, insinuou ao general João Figueiredo que ele iria para o inferno caso não liberasse verbas construir um novo hospital.
Indicação ao Nobel e criação do CESA
Em 1980, durante a primeira visita do Papa João Paulo II ao Brasil, Irmã Dulce foi convidada a subir no altar para receber uma benção especial e ganhou do chefe de Estado do Vaticano um rosário. Irmã Dulce foi indicada para o Prêmio Nobel de Paz em 1988 e recebeu expressivo apoio internacional, mas não foi laureada com o título.
Após a criação do SUS, a rede assistencial das Obras Sociais Irmã Dulce, responsável por mais de 3,5 milhões de atendimentos ambulatoriais, foi oficialmente integrada à rede pública.
O complexo inclui especialização geriátrica, cirúrgica, hospital infantil, centro de atendimento e tratamento de alcoolismo, clínica feminina, unidade de coleta e transfusão de sangue, laboratórios e um centro de reabilitação e prevenção de deficiências.
Irmã Dulce também criou o Centro Educacional Santo Antônio (CESA), dedicado a abrigar crianças abandonadas ou órfãs e a oferecer cursos profissionalizantes.
Já muito debilitada e sofrendo com problemas respiratórios, Irmã Dulce foi internada em novembro de 1990 e recebeu pessoalmente no ano seguinte a benção e a extrema unção do Papa João Paulo II, por ocasião de sua segunda visita ao Brasil.
Morte e canonização
Irmã Dulce faleceu em Salvador em 13 de março de 1992, aos 77 anos de idade. Milhares de pessoas foram às ruas para acompanhar seu cortejo fúnebre e prestigiar seu velório.
Oito anos após seu falecimento, Irmã Dulce foi distinguida por João Paulo II com o título de Serva de Deus. Ela foi beatificada em maio de 2011, após o reconhecimento de um milagre pelo Vaticano — uma alegada intercessão religiosa na recuperação de uma mulher sergipana, desenganada pelos médicos após sofrer uma hemorragia durante o parto.
Um segundo milagre lhe foi atribuído pelo Vaticano em 2019 — a cura de uma pessoa cega —, oficializando o processo de canonização. Foi canonizada pelo Papa Francisco em 13 de outubro de 2019, recebendo o título de “Santa Dulce dos Pobres”.
A cerimônia realizada no Vaticano na ocasião reuniu mais de 50 mil pessoas. A litúrgica de Irmã Dulce é celebrada no dia 13 de agosto.























