Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Há 57 anos, em 2 de outubro de 1968, estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e alunos da Universidade Mackenzie travavam um violento confronto na Rua Maria Antônia, na região central de São Paulo.

A Batalha da Maria Antônia foi deflagrada pela oposição dos mackenzistas à ação de coleta de fundos organizada pelos uspianos em prol do 30º Congresso da UNE. O conflito foi, acima de tudo, um reflexo do clima de agitação social e da cisão ideológica no meio estudantil.

Os cursos de humanidades da USP congregavam majoritariamente jovens vinculados à esquerda, opositores ferrenhos do regime. O Mackenzie, por sua vez, embora possuísse alunos progressistas, abrigava um núcleo expressivo de estudantes reacionários ligados às organizações paramilitares de extrema-direita, incluindo o Comando de Caça aos Comunistas.

O conflito deixou um estudante morto, feriu dezenas de pessoas e serviu de pretexto para o endurecimento do regime, que no mesmo ano decretaria o AI-5.

A resistência estudantil

O movimento estudantil foi um dos primeiros alvos escolhidos pelos militares após o golpe de Estado perpetrado em 1º de abril de 1964. No mesmo dia em que ocorreu a quartelada, a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) no Rio de Janeiro foi invadida, depredada e incendiada. Meses depois, em novembro de 1964, a Lei Suplicy baniu a UNE e todas as entidades estudantis estaduais e municipais.

A ditadura impôs a criação de organizações estudantis sob seu controle direto, interferiu na gestão das universidades públicas e perseguiu os estudantes, prendendo e torturando vários dirigentes. Manifestações e atos públicos foram esmagados pelas forças policiais. Em 1966, alunos da Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro foram violentamente atacados pelos militares no chamado “Massacre da Praia Vermelha”.

Apesar da forte repressão, o movimento estudantil se consolidaria como um dos principais núcleos de resistência à ditadura militar. Várias entidades banidas pela Lei Suplicy seguiram operando clandestinamente, tentando organizar a ação dos estudantes.

Ainda em 1966, a UNE organizou seu 28º Congresso, sediado nos porões da Igreja de São Francisco de Assis, em Belo Horizonte. Durante o encontro, a organização denunciou os acordos ilegais entre Ministério da Educação (MEC) e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) que visavam articular uma reforma educacional antidemocrática e avançar a privatização das universidades públicas.

O 29º Congresso da UNE ocorreu em Valinhos, no interior de São Paulo, em agosto de 1967. Na ocasião, os estudantes elegeram a nova diretoria e Luís Travassos, militante da Ação Popular, foi eleito presidente da entidade. Os jovens discutiram a elaboração conteúdo da Carta Política da UNE e definiram as próximas ações do movimento.

A agitação estudantil chegaria ao seu ápice em 1968, ecoando o contexto de efervescência global de protestos e movimentos sociais. No Rio de Janeiro, o assassinato do estudante Edson Luís de Lima Souto provocou uma onda de manifestações. A esse evento, somou-se a indignação com a “Sexta-Feira Sangrenta”, quando a repressão policial deixou 28 mortos durante um ato no centro do Rio.

Em junho de 1968, a Passeata dos Cem Mil reuniu uma multidão na Cinelândia, representando a maior manifestação popular contra a ditadura ocorrida desde o golpe de 1964. Assustada com a dimensão do evento, a ditadura intensificou a repressão. Em agosto de 1968, a fim de sufocar um novo protesto, os militares invadiram a Universidade de Brasília (UnB).

Estudantes da USP e do Mackenzie se enfrentam na Batalha da Maria Antônia
Memorial da Democracia

A cisão entre os estudantes

Apesar da firme atuação do movimento estudantil, não havia uma posição consensual dos estudantes em relação ao regime. Em São Paulo, os alunos dos cursos de humanidades da USP eram, em sua maioria, mais vinculados à esquerda e às ideias progressistas.

A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (FFCL-USP, atual FFLCH-USP) era um importante reduto do pensamento crítico, casa de professores como Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido e Florestan Fernandes.

Os alunos da FFCL-USP eram bastante engajados na militância contra a ditadura e encamparam a defesa de bandeiras como a reforma universitária, o estabelecimento de órgãos deliberativos democráticos e a formação de assembleias com voto paritário para professores, estudantes e funcionários.

Por outro lado, existiam muitos jovens que eram apoiadores da ditadura militar, bem como organizações estudantis vinculadas à direita, tais como a União Paulista de Estudantes Secundários, o Grupo de Ação Patriótica e a Vanguarda Universitária Católica.

Com patrocínio do regime e do empresariado, também surgiram, em todo o país, instituições que buscavam difundir o pensamento anticomunista no movimento estudantil — nomeadamente a Frente da Juventude Democrática e a Cruzada Estudantil Anticomunista.

Algumas universidades particulares da capital paulista concentravam núcleos de estudantes alinhados aos valores conservadores. Era o caso, por exemplo, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, à época uma instituição muito elitizada, frequentada pelos filhos da burguesia paulistana.

O Mackenzie congregava muitos alunos progressistas, que atuaram na resistência contra a ditadura — a exemplo de Aylton Adalberto Mortati, militante do Movimento de Libertação Popular, assassinado pelo regime em 1971. Algumas organizações estudantis do Mackenzie eram próximas da UNE e engrossavam o coro dos oponentes do regime, incluindo o Centro Acadêmico João Mendes Júnior, que representa os estudantes de direito da instituição.

Não obstante, o núcleo de estudantes reacionários do Mackenzie era bastante radicalizado e histriônico, o que lhe conferia muita visibilidade. O grupo incluía, por exemplo, militantes vinculados ao Comando de Caça aos Comunistas (CCC) — uma organização paramilitar vinculada ao aparato repressivo da ditadura, responsável por conduzir assassinatos e atos de terrorismo contra opositores do regime entre as décadas de 60 e 70.

A Batalha da Maria Antônia

As provocações e tumultos entre estudantes da FFCL-USP e do Mackenzie haviam se tornado muito comuns desde o golpe de 1964. Isso ocorria porque as duas instituições possuíam instalações vizinhas na Rua Maria Antônia, na região central de São Paulo.

O estopim da batalha foi a criação de um “pedágio voluntário” pelos uspianos, que visava angariar recursos para realizar o 30º Congresso da UNE. O encontro havia sido marcado para o mês de outubro, na cidade de Ibiúna, no interior de São Paulo, visando reforçar a articulação do movimento estudantil e planejar as próximas ações contra o regime.

Irritado com a ação de coleta de dinheiro, um grupo de mackenzistas iniciou a agressão, bloqueando a rua para impedir a passagem de automóveis. Depois, começaram a agredir os uspianos, arremessando ovos, pedras e pedaços de pau.

As agressões foram piorando cada vez mais. Os alunos reacionários passaram a jogar fragmentos de tecido embebidos em ácido, causando ferimentos em alguns uspianos. Depois começaram a atacar diretamente o prédio da FFCL-USP, quebrando as vidraças e janelas da instituição.

O conflito prosseguiu no dia seguinte. Os estudantes da USP estenderam no prédio da faculdade faixas com críticas à ditadura militar e à extrema-direita. Em seguida, organizaram uma manifestação em frente à FFCL, entoando palavras de ordem contra o CCC.

Os mackenzistas reagiram com um verdadeiro bombardeio contra o prédio da USP, lançando coquetéis molotov, rojões e bombas caseiras. O ataque foi tão intenso que originou um incêndio no prédio da FFCL. Dois estudantes da USP tiveram queimaduras de terceiro grau e foram hospitalizados em estado grave.

A violência seguiu aumentando. Um grupo de mackenzistas armados começou a disparar contra os uspianos. José Guimarães, um estudante secundarista que estava participando da manifestação ao lado dos alunos da USP, foi atingido por uma bala calibre 45 na cabeça e morreu na hora.

Indignados, os uspianos reagiram aos ataques, apedrejando a fachada do Mackenzie. José Dirceu, então presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE), liderou a reação dos uspianos na Batalha da Maria Antônia, conclamando as organizações estudantis para reforçarem o contingente dos manifestantes. Os uspianos fecharam os acessos à rua instalando barricadas. Teve início uma verdadeira batalha campal.

O combate se prolongou por 22 horas, até ser interrompido pela polícia. Dezenas de pessoas ficaram feridas. Embora tenham iniciado o conflito, os mackenzistas reacionários foram protegidos pelos policiais, que se limitaram a dar ordem de prisão às lideranças estudantis da USP.

O presidente da UNE, Luís Travassos, também foi preso, mesmo não tendo participado da batalha. A FFCL foi fechada e os cursos da unidade seriam transferidos para a Cidade Universitária, no longínquo bairro do Butantã, visando desagregar o movimento estudantil e apartar os estudantes das entidades e organizações políticas sediadas no centro de São Paulo.

A batalha foi um dos pretextos utilizados para o recrudescimento do autoritarismo da ditadura militar. Meses mais tarde, os militares promulgariam o Ato Institucional Nº. 5 (AI-5), decreto que embasou a cassação dos mandatos dos parlamentares de oposição, fechou o Congresso e suspendeu as garantias constitucionais, inaugurando o período dos Anos de Chumbo.