Uma heroína nas trilhas da liberdade: a história de Harriet Tubman
Após escapar da escravidão nos EUA, Tubman lutou pela emancipação do povo negro e liderou expedições que chegaram a resgatar centenas de escravizados
Há 176 anos, em 17 de setembro de 1849, Harriet Tubman escapava da escravidão nos Estados Unidos. Tinha início, assim, a extraordinária jornada de uma das figuras mais icônicas da luta pela liberdade e emancipação do povo negro.
Harriet Tubman transformou o combate à escravidão na missão da sua vida. Ela liderou dezenas de expedições libertadoras, através das quais resgatou mais de 300 escravizados, conduzindo-os em segurança até os estados livres.
Após a eclosão da Guerra de Secessão, Harriet se ofereceu como voluntária às tropas da União. Ela socorreu os soldados feridos, atuou como espiã nos territórios confederados e se tornou a primeira mulher a organizar e liderar um ataque militar de grande escala na história dos Estados Unidos
Assumindo a dianteira no Ataque do Rio Combahee, Harriet libertou mais de 750 escravizados e destruiu os depósitos das forças confederadas. Por fim, ela se destacou no movimento sufragista, lutando em prol dos direitos políticos das mulheres.
Infância e juventude
Harriet nasceu como Araminta Ross (apelidada “Minty Ross”), por volta do ano de 1822, no condado de Dorchester, Maryland. Era filha de Ben Ross e Harriet “Rit” Green, afro-americanos escravizados nas plantações de tabaco e algodão nos arredores do Rio Blackwater. A mãe era cozinheira na casa da família Brodess e o pai era lenhador.
Três dos oito irmãos de Harriet foram vendidos ainda na infância. A menina testemunhou a firme objeção da mãe à tentativa do fazendeiro de vender seu irmão caçula — um episódio que a marcou e que forneceu seus primeiros referenciais sobre resistência à escravidão.
Por volta dos 5 ou 6 anos, Harriet foi alugada como babá para uma família branca de uma fazenda vizinha. Nessa propriedade, ela sofreu diversos abusos, sendo açoitada sempre que a criança acordava e chorava. Chegou a ser punida com chicotadas cinco vezes em um único dia.
As punições deixaram cicatrizes que Harriet carregou pelo resto da vida. “Eu conhecia suas lágrimas, suspiros e gemidos e daria cada gota de sangue em minhas veias para libertá-los”, declarou anos mais tarde, ao refletir sobre as dores coletivas dos escravizados.
Com o tempo, Harriet foi transferida para o trabalho no campo, sendo incumbida de conduzir o gado, arar a terra e ajudar no transporte da madeira. Por volta dos 13 anos, ela sofreu uma grave lesão na cabeça, ao ser atingida por um peso de ferro arremessado por um capataz.
O ataque a deixou com sequelas permanentes. Harriet passou a sofrer com enxaquecas, vertigens, desmaios e convulsões. Ela ressignificaria a experiência a partir de uma perspectiva espiritualizada, interpretando suas visões, alucinações e sonhos como revelações divinas.
Harriet era muito religiosa. Frequentava a Igreja Metodista e, embora não soubesse ler, decorou diversas passagens da Bíblia. Gostava, sobretudo, das histórias de libertação da Nova Aliança, rejeitando as defesas apologéticas da escravidão baseadas no Velho Testamento. Por volta de 1844, ela se casou com um negro livre chamado John Tubman. Foi por volta desse período que Harriet adotou o nome de sua mãe, talvez como uma homenagem ou por motivos religiosos.

Harriet Tubman
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A fuga
Em 1849, após a morte de Edward Brodess, sua viúva, Eliza, decidiu vender a propriedade e leiloar os escravizados. Desesperada com a possibilidade de se separar da família, Harriet decidiu fugir com seus irmãos, Ben e Henry. O trio partiu em 17 de setembro de 1849. Poucos dias depois, os irmãos se arrependeram da ideia e, temendo a punição caso fossem capturados, decidiram regressar.
Harriet também retornou, mas não conseguia se resignar com tal decisão. No final de setembro ou início de outubro, ela voltou a fugir, dessa vez sozinha. Harriet percorreu cerca de 145 quilômetros a pé, à noite, guiada pela “Underground Railroad” — a “Ferrovia Clandestina”, uma rede de rotas secretas usadas pelos escravizados do sul para escapar rumo aos “estados livres”.
Sua jornada foi épica: partindo de Poplar Neck, em Maryland, ela seguiu para o norte, acompanhando o curso do Rio Choptank. Depois, atravessou o estado de Delaware até chegar na Pensilvânia, usando diversos disfarces e artifícios engenhosos para despistar os patrulheiros e caçadores de escravos.
A viagem demorou cerca de três semanas. Quando finalmente cruzou a Linha Mason-Dixon, que demarca a divisa com a Pensilvânia, Harriet gritou de alegria: “Olhei para as minhas mãos para ver se eu era a mesma pessoa. (…) Senti que estava no Paraíso”.
Na Filadélfia, Harriet trabalhou como doméstica e tentou economizar dinheiro. Embora estivesse em um estado livre, ela ainda corria riscos. Além do crescente agravamento das tensões raciais na Pensilvânia, o Congresso dos Estados Unidos havia aprovado a Lei dos Escravos Fugidos, que autorizava a captura de cativos foragidos, mesmo nos territórios onde a escravidão fora abolida.
As expedições de resgate
Apesar dos riscos, Harriet faria da libertação dos escravizados a grande missão de sua vida. Ainda em dezembro de 1850, ela partiu em sua primeira operação de resgate, ajudando na fuga de Kessiah, sua sobrinha.
Kessiah e seus dois filhos pequenos tinham sido colocados à venda. John Bowley, o marido da jovem, simulou ter interesse em comprá-la e conseguiu fugir com a esposa e os filhos até Baltimore. Harriet então os acolheu e os conduziu em segurança até a Filadélfia.
Em 1851, Harriet resgatou seu irmão Moses e outros dois escravizados. Meses depois, ela liderou uma nova missão, guiando 11 pessoas para a liberdade — ocasião em que foi auxiliada pelo líder abolicionista Frederick Douglass.
Nos anos seguintes, Harriet organizaria cerca 13 expedições de resgate em Maryland, garantindo a libertação de dezenas de pessoas. Entre os cativos que ela resgatou estavam seus próprios pais. Em 1857, ela organizou uma expedição para levar Ben e Rit, já idosos, até Ontário, no Canadá — então um território da coroa inglesa onde a escravidão fora banida. Era uma maneira de impedir que eles fossem recapturados com base na Lei dos Escravos Fugidos.
Harriet preferia conduzir suas missões no inverno, quando as condições meteorológicas dificultavam o trabalho das patrulhas. As fugas eram realizadas preferencialmente nas noites de sábado, visando atrasar a publicação de anúncios nos jornais, que só voltariam a operar na segunda-feira. Ela sempre andava armada com uma pistola, tanto para se proteger como para desestimular eventuais desistências — já que o retorno de um ex-cativo colocaria todo o grupo em risco.
As constantes fugas de escravizados enfureceram os fazendeiros da região. Em resposta, as patrulhas foram intensificadas e houve até oferta de recompensa pela captura dos libertadores. Harriet, no entanto, nunca foi descoberta e os escravizados que ela resgatava jamais foram recapturados — algo que a enchia de orgulho: “Fui condutora da Ferrovia Clandestina por 8 anos e posso dizer que jamais descarrilhei meu trem nem perdi um passageiro”, afirmou em uma ocasião.
Em 1858, Harriet se encontrou com o célebre líder abolicionista John Brown. Ele se preparava para conduzir o ataque ao arsenal de Harpers Ferry, o maior depósito de armas de fogo dos Estados Unidos, visando iniciar uma rebelião de escravizados em larga escala. Harriet ajudou Brown através da coleta de fundos e do recrutamento de voluntários para a ofensiva, mas não pôde tomar parte da campanha. O plano, no entanto, fracassou. John Brown foi enforcado em dezembro de 1859.
Harriet prosseguiu com as expedições de libertação pela Ferrovia Clandestina até o início da década de 1860, conseguindo resgatar mais de 300 escravizados. Ela acolheu boa parte de seus amigos e familiares em sua propriedade em Auburn, no estado de Nova York, comprada com auxílio do senador abolicionista William Seward.
A Guerra Civil
Em 1861, eclodiu nos Estados Unidos a Guerra de Secessão, opondo os estados livres do Norte (a União) aos estados escravagistas do Sul (os Confederados). A guerra foi motivada pela resistência dos Confederados ao avanço do movimento abolicionista e pela rejeição ao modelo econômico que beneficiava os estados setentrionais.
Harriet se ofereceu como voluntária para ajudar o Exército da União em Hilton Head, na Carolina do Sul. Ela auxiliava nas tarefas comuns e também serviu como enfermeira, atendendo soldados e escravizados fugidos. Seu conhecimento sobre ervas e plantas medicinais ajudou a salvar muitas vidas nos acampamentos e hospitais de campanha.
A partir de 1862, Harriet atuou como espiã e batedora para o coronel James Montgomery. Ela se infiltrava nos territórios confederados, disfarçada como escravizada ou lavadeira. Iniciava então o mapeamento das rotas e dos depósitos de suprimentos e munições. As informações coletadas por Harriet foram essenciais para o planejamento das ofensivas que permitiram a tomada de Jacksonville.
Em junho de 1863, Harriet liderou, ao lado do coronel Montgomery, o Ataque do Rio Combahee, na Carolina do Sul, uma das operações militares mais emblemáticas da Guerra de Secessão. Ela guiou as embarcações da União por um labirinto de pântanos e minas aquáticas, viabilizando um ataque em larga escala aos latifúndios e aos depósitos confederados.
Harriet foi a primeira mulher a planejar e dirigir uma ação bélica de grande porte na história dos Estados Unidos. Sua incursão resultou na libertação de mais 750 escravizados, além da destruição de plantações e arsenais inimigos, enfraquecendo as forças confederadas.
Por mais de dois anos, Harriet seguiu atuando no Exército da União, socorrendo os soldados feridos e recepcionando os ex-escravizados. Ela chegou a participar da campanha do coronel Robert Gould Shaw e o acompanhou na Batalha do Forte Wagner. Apesar de sua enorme contribuição no conflito, Harriet nunca recebeu o pagamento de salário regular, tampouco teve direito à pensão que era paga aos veteranos.
Os últimos anos
Após a guerra, Harriet voltou para sua casa em Auburn, onde viveu até o fim da vida. Ela voltou a se casar em 1869, unindo-se ao veterano Nelson Davis, e adotou uma criança chamada Gertie.
Harriet sofreu uma série de intempéries nas últimas décadas de vida. Ela teve seu braço quebrado em um ataque racista, durante uma viagem de trem a Nova York, após se recusar a deixar o vagão onde estava. Depois, foi vítima de uma fraude que resultou no roubo de todas as suas economias. Em 1888, ficou viúva, perdendo o marido para a tuberculose.
Apesar das dificuldades financeiras, Harriet permaneceu politicamente ativa. Ela se aproximou do movimento sufragista, participando de convenções em Nova York, Boston e Washington. Discursou ao lado de líderes como Susan Anthony e Emily Howland, reivindicando o voto feminino e exortando a participação de mulheres negras na política.
Em 1903, Harriet doou parte de seu terreno em Auburn à Igreja Episcopal Metodista, mediante a promessa que o espaço seria utilizado para a construção de um asilo. A ação daria origem à Casa Harriet Tubman para Idosos, um dos primeiros espaços destinados a acolher pessoas negras abandonadas ou em situação de vulnerabilidade.
Harriet Tubman faleceu em 10 de março de 1913, com aproximadamente 91 anos de idade. Ela é celebrada como uma das maiores heroínas do movimento negro e foi homenageada através de monumentos, obras de arte, músicas filmes e documentários.























