Um policial contra a ditadura: 50 anos do assassinato de José Ferreira de Almeida
Em 8 de agosto de 1975, tenente reformado da Polícia Militar de SP e militante do PCB era assassinado por agentes da ditadura militar
Há 50 anos, em 8 de agosto de 1975, José Ferreira de Almeida, um tenente reformado da Polícia Militar de São Paulo e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), era assassinado por agentes da ditadura militar nos porões do DOI-CODI.
José era diretor do Clube dos Oficiais da Reserva e tentava consolidar um núcleo de oposição à ditadura dentro da Polícia Militar. Sua ligação com o PCB o transformou em um dos alvos prioritários da Operação Radar, lançada pelo regime para desarticular o movimento comunista em meados dos anos 70.
Os agentes da ditadura tentaram disfarçar o assassinato de José classificando sua morte como decorrente de suicídio. Em 1996, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos reconheceu a responsabilidade do Estado pelo seu assassinato.
Quem era José Ferreira de Almeida
José Ferreira de Almeida nasceu em 16 de dezembro de 1911 na cidade de Piracaia, no interior de São Paulo. Era filho de Olympia Ferreira D’Almeida e Joaquim Josino Ferreira, um casal de trabalhadores rurais.
Ainda adolescente, José deixou sua cidade natal e se mudou para a capital paulista em busca de oportunidades. Nos anos 30, ele ingressou na Guarda Civil do Estado, uma corporação auxiliar da Força Pública, incumbida de realizar o policiamento ostensivo das áreas urbanas.
José fez carreira na Guarda Civil, onde serviu por quase quatro décadas. Com a extinção da corporação em 1970, ele foi integrado à Polícia Militar com a patente de tenente.
Em paralelo ao trabalho na Guarda Civil, José mantinha intensa atividade política desde os anos 30. Assim como muitos militares inspirados pela mobilização da Aliança Nacional Libertadora e pelas façanhas de Luiz Carlos Prestes, ele se tornou militante do Partido Comunista (PCB).
Em 1946, José ajudou a criar um núcleo comunista no interior da Guarda Civil. Sua célula operava de forma secreta, sob normas estritas de segurança, e era diretamente vinculada à Secretaria Geral do partido. Ela seguiria operante por quase 30 anos.
A criação do núcleo era uma tentativa de recompor os vínculos entre os militares e o Partido Comunista. Nos primeiros anos após sua fundação, o PCB chegou a possuir um forte setor militar (coordenado pelo comitê chamado “Antimil”), absorvendo muitos egressos do movimento tenentista.
Com o fracassado Levante da ANL em 1935, no entanto, o regime de Vargas iniciou um violento expurgo, prendendo e expulsando milhares de militares suspeitos de serem membros ou simpatizantes do Partido Comunista.
O golpe de 1964 e a caçada aos legalistas
Outro expurgo violento de militares de esquerda seria conduzido pelas Forças Armadas e pelos órgãos de segurança após o golpe militar que derrubou João Goulart em 1º de abril de 1964.
Contrariando o discurso oficial sobre a coesão dos militares em torno do golpe, havia uma significativa divisão nas Forças Armadas em relação ao governo de Goulart. Muitos militares apoiavam o projeto nacional-desenvolvimentista e se negaram a endossar a quartelada. Esses militares legalistas seriam as primeiras vítimas da ditadura.
Centenas de soldados considerados leais ao presidente deposto foram presos nas primeiras horas após o golpe. As associações militares que eram favoráveis às reformas de base sofreram intervenção e foram forçadas a fechar as portas.
Ainda em abril de 1964, a ditadura promulgou ao Ato Complementar Nº. 3, expulsando 122 oficiais considerados “não confiáveis”. A violência e a magnitude do expurgo aumentaram exponencialmente nos anos seguintes.
Estima-se que mais de 7.500 militares foram punidos por sua oposição à ditadura, sofrendo cassações, prisões, torturas e assassinatos. Um dos primeiros opositores mortos pelo regime era um militar legalista —o sargento paraense Manoel Raimundo Soares.
Diversas organizações ativas na luta armada contra a ditadura contaram com a presença significativa de militares, incluindo o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), a Ação Libertadora Nacional (ALN) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Alguns dos maiores expoentes da resistência ao regime também eram provenientes da caserna, incluindo o capitão Sérgio Macaco e o comandante Carlos Lamarca.

José Ferreira de Almeida, tenente reformado da Polícia Militar de São Paulo e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB)
Comissão Nacional da Verdade, p. 1770
A guerra ao PCB
Após aniquilar a Guerrilha do Araguaia e neutralizar as organizações revolucionárias durante o período dos “Anos de Chumbo”, a ditadura militar voltou sua atenção ao PCB. Embora não tivesse aderido diretamente à luta armada, o partido ainda era bastante influente nas organizações de oposição ao regime e possuía presença cada vez maior junto aos quadros do MDB.
Em 1973, o Centro de Inteligência do Exército (CIE) deu início à Operação Radar, executada em colaboração com outros órgãos da repressão, como o DOI-CODI e o DOPS. O objetivo da operação era desarticular o PCB através da prisão e assassinato de seus principais dirigentes.
A operação foi planejada com base em informações obtidas através de infiltrações, delações e torturas de militantes presos. Entre 1973 e 1976, o regime militar prendeu de 700 a 1.000 militantes do PCB. Ao menos 68 membros do partido foram assassinados, incluindo um terço do seu comitê central.
José Ferreira de Almeida foi um dos alvos prioritários identificados pela ditadura. À época, o tenente reformado exercia o cargo de diretor do Clube dos Oficiais da Reserva, que funcionava com uma espécie de “sindicato informal” da categoria.
O tenente foi identificado como articulador de um grupo de policiais que fazia oposição à ditadura militar. Reuniões desse grupo teriam sido organizadas na casa de José no Jabaquara e em um outro imóvel no bairro de São Miguel Paulista, na Zona Leste de São Paulo. José também era responsável por distribuir o jornal A Voz Operária, um veículo clandestino do PCB.
A unidade chefiada por José foi descoberta através da infiltração de um sargento do DOI-CODI, em uma operação que durou dois anos. Ao todo, 63 policiais militares foram detidos, acusados de serem comunistas.
O assassinato de José Ferreira de Almeida
O tenente José Ferreira foi preso em 7 de julho de 1975. Ele havia escapado de várias operações de busca em sua residência, mas resolveu se entregar após os militares começarem a ameaçar sua filha adotiva, Nazareth.
Levado para um centro de operações do DOI-CODI, José passou por sessões de tortura que se estenderam por semanas. Ele foi brutalmente espancado, submetido a choques elétricos e ao pau de arara. Ficou incomunicável por quase um mês. Os maus-tratos foram testemunhados por Osni Geraldo Santa Rosa e Frutuoso Luiz Martins, ambos presos no mesmo local.
Em 7 de agosto de 1975, José obteve permissão para conversar com seu advogado, Luiz Eduardo Greenhalgh, famoso pela defesa de vários presos políticos do regime. Greenhalgh relatou posteriormente que seu cliente possuía diversas escoriações e marcas de tortura e que lhe confidenciou temer por sua vida.
No dia seguinte, 8 de agosto, um agente do DOI-CODI procurou a família de José Ferreira de Almeida para informar que o tenente havia cometido suicídio. Segundo os militares, José havia se enforcado amarrando o cinto do macacão nas grades de sua cela. Ele tinha 63 anos de idade.
O laudo da autópsia foi assinado por Harry Shibata e Marcos Almeida — os mesmos legistas que atestariam o falso suicídio de Vladimir Herzog, morto em condições semelhantes dois meses depois.
O velório de José Ferreira ocorreu no Hospital da Cruz Azul, pertencente à Polícia Militar. A família recebeu o corpo em um caixão lacrado. Desobedecendo às ordens da polícia, Maria Sierra, a viúva de José, abriu o caixão. O corpo do tenente estava repleto de hematomas, marcas de queimaduras e cortes, evidenciando que a “causa mortis” havia sido forjada.
Muito deprimida após a morte do marido, Maria Sierra adoeceu gravemente e faleceu dois anos depois, em 1977. O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh ingressou com uma representação no Conselho Regional de Medicina contra os legistas que assinaram o laudo de suicídio, mas o pedido foi arquivado. A solicitação de abertura de inquérito para investigar a morte junto à Auditoria Militar também foi rejeitada.
Em 1996, a filha adotiva de José, Nazareth Folli, solicitou pedido de indenização junto à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. O órgão rejeitou o pedido de indenização, mas admitiu que a morte de José ocorrera por ação de agentes do Estado. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade confirmaria essa declaração.
Passados 50 anos da morte de José Ferreira de Almeida, sua família ainda aguarda a retificação da causa de morte em seu certificado de óbito. Os responsáveis por sua prisão, tortura e assassinato nunca foram punidos. Uma rua no bairro do Jabaquara, na Zona Sul de São Paulo, foi batizada em homenagem ao tenente.























