Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Há 227 anos, em 12 de agosto de 1798, chegava ao ápice a Revolta dos Alfaiates, um dos mais importantes movimentos emancipacionistas ocorridos no Brasil durante o Período Colonial.

Também conhecida como Conjuração Baiana ou Revolta dos Búzios, a insurreição se destacou pela ampla participação das classes populares, mobilizando trabalhadores urbanos, pequenos comerciantes, militares de baixa patente e negros livres e escravizados da Bahia.

Influenciada pelas ideias iluministas e inspirada pelas revoluções francesa e haitiana, a Revolta dos Alfaiates preconizava o fim do domínio colonial português e a instalação de um regime republicano baseado no princípio da igualdade e em valores democráticos avançados. A insurreição também foi um dos primeiros movimentos a propor o fim da escravidão no Brasil.

A produção açucareira na Bahia

A segunda metade do século 18 foi marcada por uma série de mudanças significativas nas dinâmicas econômicas do Brasil Colônia. O esgotamento das reservas auríferas de Minas Gerais marcou o declínio do Ciclo do Ouro, resultando em maior pressão pela intensificação das atividades agroexportadoras tradicionais.

Esse processo foi particularmente intenso na Bahia. A capitania possuía uma economia centrada na exportação de açúcar e tabaco, produtos cultivados em grandes latifúndios que utilizavam mão de obra escravizada em larga escala.

Embora tenha se mantido como um dos principais centros econômicos da colônia, a Bahia havia testemunhado a decadência de sua produção açucareira desde o século 17, quando passou a enfrentar a concorrência do açúcar das Antilhas. Com o término do surto minerador, houve um forte estímulo à retomada da produção.

Além da pressão gerada pelo fim do Ciclo do Ouro, a produção açucareira na Bahia seria alavancada por outro acontecimento histórico. O Haiti, então o maior produtor de açúcar do mundo, estava com suas exportações comprometidas em função da Revolução Haitiana. Em busca de novos fornecedores, os países europeus abriram suas portas para o açúcar baiano.

A crise social

A fim de atender à demanda internacional, os fazendeiros passaram a ampliar as áreas voltadas ao cultivo da cana de açúcar, abandonando a produção de outros gêneros alimentícios, limitando a pecuária e avançando sobre as lavouras de subsistência.

A expansão açucareira resultou não apenas no crescimento do uso da mão de obra escravizada, mas também no aumento da brutalidade e da exploração nos engenhos, com os cativos sofrendo cobranças por produtividade e sendo submetidos a castigos cada vez mais severos.

Os escravizados não foram as únicas vítimas desse processo. A priorização das exportações resultou na diminuição da oferta de alimentos básicos no mercado interno. Produtos como a mandioca, o milho, o feijão e a carne tornaram-se cada vez mais caros e escassos.

Em Salvador, onde vivia um grande contingente de trabalhadores livres, os preços dos alimentos dispararam. A farinha de mandioca, um alimento quase onipresente nas mesas da população baiana, encareceu tanto que se tornou inacessível às camadas populares.

O desabastecimento e a escalada dos preços causaram um descontentamento generalizado. Escravizados, trabalhadores livres, artesãos, alfaiates, comerciantes e funcionários do porto — quase todos sofriam em consequência das dinâmicas excludentes da economia colonial. A miséria crescia cada vez mais e uma grave crise famélica logo se alastrou pela Bahia.

Enquanto o povo passava fome, os donos de engenho, os grandes comerciantes e os altos funcionários da metrópole portuguesa ostentavam uma vida de luxos e extravagâncias, acumulando lucros exorbitantes com a exportação do açúcar.

Para piorar, o governo colonial impunha pesados impostos sobre comerciantes e lavradores, aumentando ainda mais as tensões sociais. A população não enxergava o retorno desses impostos. Ao contrário: desde a transferência da capital de Salvador para o Rio de Janeiro, os investimentos da coroa portuguesa na Bahia minguavam cada vez mais.

A Praça da Piedade, em Salvador, onde os líderes Revolta dos Alfaiates foram executados. Gravura de Rugendas.
Wikimedia Commons

O movimento

O descontentamento popular logo se converteria em uma grande agitação social e política. Entre 1797 e 1798, vários armazéns e depósitos de Salvador foram saqueados por populares. Açougues eram invadidos e comboios transportando carnes e alimentos eram atacados. No início de 1798, os moradores da cidade incendiaram o pelourinho e a forca — símbolos da repressão associados ao governo colonial.

A capital baiana estava imersa em um estado semi-insurrecional, com a população tomada de indignação contra o governo da colônia. Fernando José de Portugal e Castro, o governador da Bahia, chegou a alertar a metrópole portuguesa sobre os riscos de um levante popular. Em resposta, Lisboa o instruiu a redobrar os cuidados com a difusão das “infames ideias francesas”.

De fato, o exemplo da Revolução Francesa teria impacto na articulação da Revolta dos Alfaiates. O porto de Salvador facilitava o intercâmbio cultural e a circulação de informações oriundas da Europa. As notícias sobre o levante que derrubou o regime absolutista na França serviriam de inspiração para diversos movimentos anticoloniais.

Os princípios iluministas de “igualdade, liberdade e fraternidade”, os textos de Jean-Jacques Rousseau e Voltaire e as ideias republicanas encontraram eco junto a setores ilustrados da população. Os levantes tributários do iluminismo, como a independência das Treze Colônias, a Revolução Haitiana e a própria Inconfidência Mineira também ajudaram a inflamar os ânimos de parte da elite intelectual da capitania.

Fundada em 1797 pelo francês Antoine Larcher, a Sociedade Maçônica Cavaleiros da Luz, a primeira loja maçônica da Bahia, se tornaria um importante espaço de articulação da intelectualidade anticolonial, de difusão das ideias revolucionárias e de concertação do movimento insurrecional. Membro da loja, o médico e filósofo Cipriano Barata seria um dos grandes ideólogos da conjuração.

A Revolta dos Alfaiates

A revolta começou a ser planejada secretamente no início de 1798. Ao contrário do que ocorreu na Inconfidência Mineira, onde os conspiradores eram quase todos membros da elite, a Conjuração Baiana foi caracterizada pela forte presença das camadas populares.

Os rebeldes que apoiaram o movimento eram, em sua maioria, pequenos comerciantes, alfaiates, meeiros, sapateiros, soldados, artesãos, negros libertos e escravizados. Por esse motivo, o levante também ficaria conhecido como Revolta dos Alfaiates.

A forte presença popular explica as pautas avançadas do movimento emancipacionista. Além de reivindicarem o fim do domínio colonial português e o estabelecimento de um governo republicano independente, os rebeldes defendiam o fim da escravidão e a libertação imediata de todos os cativos.

O movimento preconizava a criação de um regime democrático organizado a partir do princípio da igualdade — uma proposta que desafiava frontalmente a estrutura econômica e social da colônia. Os insurgentes também exigiam a redução dos impostos, a abertura dos portos e o reajuste dos salários dos soldados.

A articulação do movimento era feita através de cooptação boca a boca, da organização de reuniões secretas e da difusão de panfletos e folhetos. Além dos escritos de Cipriano Barata, os rebeldes compartilhavam textos de Luís Gonzaga das Virgens, um soldado negro que há anos se dedicava à pregação revolucionária.

Também se destacaram como lideranças do movimento o soldado e marceneiro Lucas Dantas do Amorim Torres e os alfaiates João de Deus Nascimento e Manuel Faustino dos Santos Lira — todos negros e oriundos das classes populares.

No dia 12 de agosto de 1798, visando dar início à fase insurrecional, os rebeldes afixaram vários panfletos nos muros das casas, igrejas e edifícios públicos de Salvador, conclamando o povo a se rebelar contra o domínio de Portugal. “Animai-vos, Povo Bahiense, que está por chegar o tempo feliz da nossa liberdade: o tempo em que todos seremos irmãos, o tempo em que todos seremos iguais”, dizia o manifesto.

Um outro folheto espalhado pela cidade, intitulado “Aviso ao Clero e ao Povo Bahiense,” detalhava o programa a ser implementado após a Proclamação da República, asseverando que “o povo será livre do despotismo do rei tirano” e que “homens brancos, pardos e pretos contribuirão para a Liberdade Popular”.

A repressão

Logo após apreenderem os panfletos, as autoridades coloniais deram início à repressão contra o movimento. O governador Fernando José de Portugal e Castro ordenou a abertura de uma investigação para identificar os responsáveis pelos folhetos.

A primeira pessoa a ser presa foi o escrevente Domingos da Silva Lisboa, que se tornou suspeito com base na comparação caligráfica. Os panfletos, entretanto, seguiram sendo fabricados e distribuídos. As autoridades desconfiaram do soldado Luís Gonzaga das Virgens, que tinha o hábito de enviar ofícios com reivindicações à coroa.

Luís Gonzaga foi preso e em sua casa foram encontradas vários folhetos, comprovando sua ligação com o movimento rebelde. Uma tentativa de libertar o soldado fracassou e possibilitou que novas prisões fossem efetuadas.

Dezenas de casas foram invadidas e vários suspeitos foram barbaramente torturados para que delatassem os nomes de outros participantes. Ao todo, 49 pessoas foram presas.

A devassa judicial teve início em novembro de 1799, quando 34 réus foram indiciados por traição e sedição. Os rebeldes brancos e oriundos das classes dominantes receberam sentenças brandas ou escaparam da punição. É o caso de Cipriano Barata, Muniz Barreto, Hermógenes de Aguilar Pantoja e de outros membros da maçonaria.

Os demais insurgentes foram punidos com rigor. Luís Gonzaga das Virgens, Lucas Dantas, Manuel Faustino e João de Deus Nascimento foram todos condenados à morte. Os quatro conjurados negros foram enforcados na Praça da Piedade no dia 8 de novembro de 1799.

Após a execução, os rebeldes tiveram seus corpos esquartejados. As cabeças e membros foram espalhados por vários pontos de Salvador, para intimidar a população. A sentença ainda determinava que seus nomes e memórias fossem considerados malditos até a terceira geração.

Outros conjurados foram condenados a penas de 500 chibatadas, prisão e degredo para os domínios não portugueses no continente africano. Dois rebeldes negros empregados no serviço militar também foram vendidos como escravos.

Embora tenha sido derrotada, a Revolta dos Alfaiates se tornaria um marco da resistência popular, notabilizando-se pela ampla participação dos trabalhadores comuns e por ter sido um dos primeiros movimentos a reivindicar a abolição da escravatura.

Acima de tudo, os conjurados buscavam mobilizar a população na luta por uma profunda transformação da ordem social e pela superação do regime colonial opressivo, advogando a criação de um novo sistema pautado por valores democráticos e pelo princípio da igualdade.

Essa característica também fez com que a historiografia oficial relegasse a Revolta dos Alfaiates e seus protagonistas negros ao esquecimento, preferindo exaltar a memória da Inconfidência Mineira e de outros movimentos liderados pela elite, que tinham a manutenção da ordem social como pressuposto básico nos planos de emancipação política.