Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Há quatro anos, em 24 de julho de 2021, a estátua do bandeirante Borba Gato, um monumento localizado no distrito de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo, era incendiada por membros do coletivo Revolução Periférica.

O incêndio do Borba Gato visava contestar a pertinência de monumentos que glorificam figuras históricas vinculadas à escravização, massacre e genocídio dos povos originários e quilombolas.

A ação reacendeu os debates sobre a memória histórica, o papel dos bandeirantes na formação do Brasil e a legitimidade dos protestos contra símbolos da violência colonial.

Borba Gato e as bandeiras

A estátua de Borba Gato é um dos vários monumentos em homenagem aos bandeirantes espalhados por São Paulo. Os bandeirantes eram sertanistas do Período Colonial, ativos entre os séculos 16 e 18, responsáveis por organizar as “bandeiras” — expedições militares que adentravam nos interiores inexplorados da colônia para buscar metais e pedras preciosas e capturar indígenas para uso como mão de obra escrava.

Conhecidos pela crueldade e brutalidade, os bandeirantes protagonizaram inúmeros massacres, estupros e atos de selvageria contra nativos, sendo responsáveis pelo extermínio de centenas de milhares de indígenas. Também integravam milícias contratadas para destruir quilombos e capturar negros escravizados que fugiam das fazendas e engenhos.

São abundantes os registros historiográficos coevos apontando a brutalidade dos bandeirantes, sobretudo aqueles produzidos por missionários das reduções jesuíticas. Apesar disso, os bandeirantes gozavam de muito prestígio no Período Colonial — reflexo do poderio econômico e militar que amealharam com suas atividades exploratórias e com o comércio de escravizados e pedras preciosas.

Manuel de Borba Gato (1649-1734) é um dos muitos bandeirantes que ascenderam ao posto de membros influentes da elite colonial. Genro de Fernão Dias Pais, alcunhado “Caçador de Esmeraldas”, ele participou da expedição rumo a Minas Gerais que procurava pelas pedras preciosas na mítica “Serra do Sabarabuçu”.

Após emboscar e assassinar um administrador da coroa portuguesa, Borba Gato se refugiou nas terras do Rio Doce. Mais tarde, ele negociaria a concessão de perdão do perdão real em troca da localização das minas de ouro. Liderou as expedições pelos territórios dos rios Grande e Sapucaí e tornou-se o primeiro povoador e descobridor de ouro na região do Rio das Velhas.

Em 1701, Borba Gato ganhou do governo paulista a posse das terras entre o Rio das Velhas e o Rio Paraopeba e das chapadas das serranias de Itatiaia. Em 1711, ele recebeu uma sesmaria em Caeté (Tombadouro).

Borba Gato foi nomeado Superintendente das Minas de Sabará, onde também ocupou o cargo de juiz ordinário. Aproveitou-se do cargo para roubar as terras dos indígenas na região do Sumidouro, ao mesmo tempo em que submetia africanos escravizados à exploração inclemente nas minas e às tarefas da administração colonial.

A estátua de Borba Gato em 2018
Gustavo Vivancos/Wikimedia Commons

A heroicização dos bandeirantes

Excetuando-se algumas pequenas elegias esporádicas, a memória do bandeirismo foi relegada ao ostracismo após o Ciclo do Ouro.

No fim do século 19, entretanto, no contexto da Proclamação da República, a elite de São Paulo deu início a um processo de valorização da figura dos bandeirantes, como parte de um movimento de afirmação da identidade paulista, em consonância com seu projeto político.

Os bandeirantes passaram a ser retratados como heróis audaciosos, destemidos e virtuosos, responsáveis por expandir as fronteiras do Brasil e consolidar o avanço da “civilização”.

A elite paulista, herdeira e descendente dos bandeirantes, seria então o grupo apto a liderar politicamente o Brasil e traçar os rumos da nação — a “locomotiva” que arrasta todos os outros vagões —, justificando assim a hegemonia das oligarquias do estado, imposta através da política do café com leite.

Os acadêmicos e genealogistas do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) foram os pioneiros da glorificação do passado paulista.

O principal responsável pela construção da mitologia heróica dos bandeirantes, entretanto, foi o historiador Afonso d’Escragnolle Taunay, diretor do Museu Paulista e autor da “História Geral das Bandeiras Paulistas” — obra monumental em 11 tomos que foi por muito tempo referência basilar sobre os bandeirantes.

Taunay também foi responsável por encomendar todas as representações iconográficas dos bandeirantes que adornam os interiores do Museu Paulista. Nas mãos de artistas como Benedito Calixto, Oscar Pereira da Silva, Henrique Bernardelli e Luigi Brizzolara, os bandeirantes ganharam características aristocráticas.

A despeito de sua origem majoritariamente mestiça, os bandeirantes passaram a ser representados com traços europeus e a pele branca. Os farrapos maltrapilhos foram substituídos por trajes de fidalgo, com chapéus de aba larga, botas de cano alto e capas majestosas.

As poses altivas evocavam a tradição retratística dos monarcas europeus, ao passo que a brutalidade, os atos bárbaros, massacres e estupros cometidos contra indígenas e negros foram totalmente omitidos das representações artísticas.

Essa imagem mítica dos bandeirantes foi incorporada ao imaginário popular por ação dos aparelhos ideológicos da elite de São Paulo, sendo retomada sempre que a afirmação da identidade paulista se fazia necessária em algum contexto histórico.

Foi o que ocorreu durante o Movimento Constitucionalista de 1932, quando as tropas que se sublevaram contra o governo de Getúlio Vargas reavivaram a propaganda baseada no mito bandeirista, ao mesmo tempo em que as oligarquias paulistas cunhavam o termo “quatrocentão”, em referência à sua ancestralidade supostamente originada no bandeirismo.

Mesmo derrotada na guerra civil, a elite paulista seguiu cultuando o mito dos bandeirantes, homenageando os sertanistas com uma profusão de monumentos e com nomes de avenidas, ruas, praças e até mesmo do Palácio do Governo.

O monumento

Um novo ciclo de valorização do mito bandeirista ocorreu por ocasião das celebrações do Quarto Centenário da Cidade de São Paulo, em 1954. O “revival” prolongou-se até a década seguinte, quando se celebrou igualmente o aniversário de 400 anos da antiga cidade de Santo Amaro — incorporada como um distrito da capital paulista em 1935.

Para celebrar o evento, o escultor Júlio Guerra concebeu a estátua de Borba Gato, localizada em uma praça na confluência das avenidas Santo Amaro e Adolfo Pinheiro. A obra levou sete anos para ser concluída. Possui dez metros de altura (treze metros considerando-se o pedestal) e pesa 20 toneladas.

Sua estrutura interna é mantida por trilhos de bonde reaproveitados e a superfície consiste num mosaico de pedras coloridas de basalto e mármore aplicadas sobre argamassa.

O monumento foi inaugurado em 27 de janeiro de 1963, com uma procissão de romeiros vindos de Pirapora, apresentação de carros de boi e populares fantasiados de bandeirantes, indígenas e damas antigas.

A enorme estátua se tornou um marco urbano do bairro de Santo Amaro, mas divide opiniões desde sua inauguração. A princípio, as reclamações eram enfocadas nas suas características estéticas. Alguns consideram a obra visualmente desagradável, inexpressiva e demasiado rígida. Outros manifestam insatisfação com o aspecto “kitsch” sugerido pelo mosaico de pedras coloridas da sua superfície, que tornariam a obra “brega”.

Críticas mais pertinentes, entretanto, têm surgido nas últimas décadas, abordando a própria temática do monumento. Esses questionamentos se apoiam nos movimentos de valorização da cultura afro-brasileira e indígena e na crescente oposição ao ufanismo historiográfico que glorifica e exalta figuras controversas da história brasileira.

Ecoam ainda iniciativas similares dos movimentos antirracistas e anticoloniais, que se ergueram em todo mundo nos últimos anos, exigindo o fim da glorificação de personalidades ligadas à opressão racista e ao genocídio indígena.

O incêndio

Em 2008, um grupo de moradores de São Paulo questionou a pertinência da homenagem e propôs um projeto de lei para remover o monumento, mas não obteve sucesso. Nos anos seguintes, a estátua foi alvo de manifestações e intervenções que visavam evocar a reflexão sobre o tema.

Em 2016, o Borba Gato ganhou as manchetes após ser submetido a um banho de tinta vermelha simbolizando sangue. Voltou a ser pichado em 2020 e foi adornado com representações de caveiras.

A ação de 2021, entretanto, foi de longe a mais assertiva. Apoiando-se em pneus, manifestantes de um grupo identificado como “Coletivo Revolução Periférica” escalaram o monumento e atearam fogo na estrutura, fazendo com que as chamas engolissem a parte inferior da estátua.

O incêndio foi debelado pelo Corpo de Bombeiros por volta das 14h, tempo suficiente para que obra fosse chamuscada. A estrutura do monumento não sofreu danos.

A ação gerou indignação nos veículos da grande imprensa, que reduziram o protesto à categoria de vandalismo gratuito. Alguns colunistas chegaram a retratar a ação como um “ato de terrorismo”. Deputados de direita fizeram discursos inflamados exigindo punição severa aos responsáveis. E até mesmo algumas figuras ligadas à esquerda ecoaram críticas relacionadas à necessidade de preservação do patrimônio histórico.

As reações conservadoras são um tanto cínicas. Para a direita, destruir monumentos nunca foi um problema. O Monumento Eldorado Memória, projetado por Oscar Niemeyer para homenagear os 21 sem-terra mortos durante o Massacre de Eldorado do Carajás, foi destruído apenas duas semanas depois de sua inauguração. Nunca foi reerguido.

O Memorial 9 de Novembro, também de Oscar Niemeyer, construído em memória de três trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional assassinados pelo Exército Brasileiro durante a Greve dos Operários de 1988, foi destruído no dia seguinte à sua inauguração.

A indignação é seletiva. Somente se manifesta quando os alvos dos protestos são os símbolos que glorificam a elite. A destruição dos raros monumentos erguidos em memória da classe trabalhadora nunca suscitou indignação ou falsas preocupações com a “preservação da história” — e muito menos punição aos responsáveis pelos atos.

Já no caso do Borba Gato, a punição foi severa. Paulo Galo, militante do movimento dos trabalhadores de aplicativos, foi preso, processado e condenado a três anos de prisão, convertidos em serviços comunitários. Sua esposa, Géssica de Paula, também foi detida.

A diferença de tratamento mostra uma dinâmica mais complexa do que o simples debate sobre a questão patrimonial. Não é por acaso que um ataque a uma estátua de concreto gerou mais indignação nos setores conservadores e obteve mais destaque na grande imprensa do que os assassinatos de indígenas e jovens negros reportados no mesmo período.

A questão de fundo é o incômodo gerado pela contestação da hegemonia absoluta de uma elite que escraviza, tortura e mata e depois manipula a história a seu bel prazer, financiando e erguendo monumentos que refletem exclusivamente a sua versão dos fatos, transformando genocidas em heróis e a barbaridade em valores morais. Para a elite brasileira, Borba Gato segue sendo um espelho.