Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Há 121 anos, em 23 de outubro de 1904, nascia a jornalista, escritora, carnavalesca e militante comunista Eneida de Moraes. Ela foi uma das primeiras mulheres a conquistar espaço na imprensa brasileira e participou ativamente do movimento modernista no Pará.

Filiada ao Partido Comunista (PCB), Eneida atuou na mobilização da classe operária, organizando greves e manifestações. Foi também militante da Aliança Nacional Libertadora e da União Feminina do Brasil e sofreu 11 prisões durante a Era Vargas. Companheira de cela de Nise da Silveira e Olga Benário, foi imortalizada nas Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos.

Eneida se destacou por produzir obras autobiográficas e memorialistas imbuídas de análises e observações agudas sobre os problemas sociais do Brasil. Foi também uma intelectual apaixonada pelo estudo da cultura popular. Escreveu História do Carnaval Carioca, fundou o Baile do Pierrot e foi a primeira madrinha da Banda de Ipanema.

Juventude, formação e carreira jornalística

Eneida de Villas Boas Costa nasceu em Belém do Pará, primogênita dos quatro filhos de Guilherme Joaquim da Costa e Júlia Vilas Boas. Seu pai, descendente de indígenas, era um comandante de navios que enriqueceu durante o Ciclo da Borracha. A mãe era uma ex-professora primária que havia dado aulas para uma comunidade indígena de Óbidos.

Por influência da mãe, Eneida se interessou pela literatura desde muito cedo. Aos oito anos de idade, ela já havia vencido um concurso literário, publicando um conto de sua autoria na revista Tico-Tico. Cursou o ensino básico no Colégio Sion, um internato para meninas em Petrópolis. Retornou para Belém aos 14 anos, concluindo os estudos no Ginásio Paes de Carvalho.

Aos 15 anos, Eneida perdeu sua mãe, vitimada pela Gripe Espanhola. A convivência com o pai, muito rígido e autoritário, tornou-se cada vez mais difícil. A fim de obter a emancipação da tutela paterna, Eneida se matriculou na Faculdade de Odontologia. O curso, entretanto, não a interessava.

Em paralelo à graduação, Eneida se dedicou ao ofício de jornalista e escritora, redigindo artigos para as revistas A Semana e Guajarina, ambas dirigidas por Peregrino. Escrevia sobre temas variados, de literatura a análises políticas, além de redigir poemas sobre as riquezas naturais do Pará.

Em 1921, já graduada, Eneida se casou com Genaro Bayma de Moraes, futuro pai de seus dois filhos, Léa e Octávio Sérgio. Apesar da formação, ela nunca exerceu a profissão de dentista — sobretudo porque tinha horror a sangue. Seguiu trabalhando como jornalista e escritora após o casamento, fato que causaria grande incômodo a seu marido.

Eneida participou ativamente no movimento modernista de Belém, atuando na Associação dos Novos e produzindo textos influenciados pelas correntes de vanguarda. Perfilou-se ao grupo reunido em torno do Manifesto Flaminaçu, de Abguar Bastos, que conclamava os intelectuais do Norte do Brasil a produzirem uma literatura embasada na cultura local e no fabulário amazônico.

Mesmo possuindo críticas pontuais ao Movimento Pau-Brasil, Eneida também se aproximou do grupo modernista de São Paulo e chegou a publicar seus poemas na revista Antropofagia, editada por Oswald de Andrade. A partir de 1927, ela se tornou colunista da revista Belém Nova e do jornal Para Todos, ambos ligados à difusão do pensamento moderno. Também atuou como crítica literária do jornal O Estado do Pará.

Em 1929, Eneida publicou seu primeiro livro — Terra Verde, uma coletânea de poemas publicados na imprensa paraense, tendo por enfoque a exaltação das belezas naturais da Região Amazônica. No ano seguinte, a jovem escritora foi agraciada com o Prêmio Muiraquitã, em reconhecimento às suas contribuições para a literatura regional.

Com o casamento desgastado pela postura inflexível do marido, incomodado tanto pelo ofício da esposa quanto pelo teor de seus artigos sobre política e feminismo, Eneida se desquitou em 1930.

A militância no movimento comunista

No mesmo ano, a escritora se mudou para o Rio de Janeiro, integrando-se rapidamente aos círculos literários e culturais da cidade. Tornou-se assídua frequentadora da residência de Eugênia e Álvaro Moreyra e aproximou-se de intelectuais como Rachel de Queiroz, Murilo Mendes e Manuel Bandeira.

Estimulada pelo forte ambiente de agitação operária que vigorava na capital, Eneida se dedicou ao estudo do socialismo, lendo obras de Marx, Engels, Lenin e Bukharin. A experiência foi um divisor de águas, como ela mesma descreveu: “A primeira vez que li o Manifesto Comunista de Marx e Engels fui tomada de um entusiasmo tão grande que cada uma de suas palavras repercutia profundamente dentro de mim (…) Adquiri uma ideologia, tracei friamente o meu caminho e fui por ele, certa de estar certa”.

Em 1932, Eneida se filiou ao Partido Comunista do Brasil (antigo PCB). Tornou-se uma militante dedicada, atuando nas atividades de propaganda e agitação. Redigia artigos, distribuía panfletos e ajudava a organizar greves, manifestações e comícios.

A eclosão do movimento constitucionalista de 1932 em São Paulo foi interpretada por Eneida como uma oportunidade para a agitação revolucionária. A escritora se mudou para a capital paulista, onde tentou articular a insurgência operária. Foi então acusada de subversão e presa pelo DOPS. Registrada como “interna de alta periculosidade”, Eneida foi jogada na solitária e permaneceu encarcerada por três meses.

Essa seria a primeira de 11 prisões políticas que Eneida sofreu ao longo da Era Vargas. Apesar da perseguição, ela prosseguiu com as atividades políticas. Em 1934, ingressou na Aliança Nacional Libertadora (ANL), a combativa frente antifascista ligada ao PCB e liderada por Luiz Carlos Prestes. Também foi militante da União Feminina do Brasil, outra entidade ligada à esquerda revolucionária, onde atuou na produção de panfletos e jornais.

Em novembro de 1935, militares ligados à ANL organizaram um levante contra o governo de Getúlio Vargas, iniciando sublevações nos quartéis de Natal, Recife e Rio de Janeiro. O movimento foi rapidamente debelado, mas ensejou uma violenta onda de repressão contra a esquerda radical, resultando em milhares de prisões.

Investigada pela Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo, Eneida foi novamente presa em janeiro de 1936. Ela ficou detida no Pavilhão dos Primários por um ano e meio. Na prisão, conviveu com militantes como Maria Werneck de Castro, Nise da Silveira e Olga Benário Prestes. Um dos contos escritos por Eneida durante o cárcere foi incluso em uma antologia organizada por Graciliano Ramos. O autor, também preso após o Levante de 1935, incluiu Eneida em suas célebres Memórias do Cárcere.

Eneida foi uma das centenas de pessoas beneficiadas pela contexto da Macedada — a libertação dos presos políticos determinada pelo ministro da Justiça José Macedo Soares em junho de 1937. A escritora retomou então sua colaboração com jornais e revistas e auxiliou as tentativas de reorganização do movimento comunista, desarticulado pelas ações policiais do Estado Novo.

Em 1947, Eneida se tornou colunista do periódico O Momento Feminino, um marco da imprensa feminista brasileira. Ela escreveu artigos exortando a solidariedade com as lutas das mulheres da classe trabalhadora, criticando a ausência de perspectiva de classe no feminismo liberal e denunciando a “americanização” das organizações feministas brasileiras.

Ainda em 1947, Eneida se tornou uma das fundadoras da União Brasileira de Escritores (UBE) e tomou parte do Primeiro Congresso de Escritores. Organizou conferências e palestras, ministrou cursos de literatura infanto-juvenil e ajudou a promover novos talentos.

Eneida de Moraes Acervo do Grupo de Estudo Eneida de Moraes.
O Liberal

A carreira literária

A proscrição do registro do PCB e a cassação dos mandatos parlamentares comunistas durante o governo de Eurico Gaspar Dutra desatou mais uma onda de repressão à esquerda radical. Eneida partiu então para o exílio na França, onde trabalhou como correspondente para os periódicos Manchete e Diário Carioca e escreveu o livro “Paris e outros Sonhos”.

Retornando ao Brasil em 1951, Eneida passou a trabalhar para o Diário de Notícias, assinando a coluna Encontro Matinal, que manteria até o fim da vida. A escritora fez incursões pela literatura infantil e escreveu a obra Sujinho de Terra, premiada pela Prefeitura do Distrito Federal.

Sua produção literária nesse período foi marcada por crônicas de caráter autobiográfico e memorialista, pontuadas por análises fundamentadas no marxismo. Em 1954, Eneida lançou Cão da Madrugada, uma coletânea de crônicas com observações agudas sobre as contradições e desigualdades da sociedade brasileira.

A temática social também era o tema central de Aruanda, publicado em 1957, um livro de memórias onde Eneida registra passagens e reflexões sobre sua trajetória política e literária, centrando-se na experiência no cárcere e os anos turbulentos do Estado Novo.

A série autobiográfica e memorialista de Eneida é complementada pelo livro Banho de Cheiro, de 1962. Combinando lirismo e crítica social, a autora traz relatos que remontam à sua infância em Belém, celebra as tradições e a cultura popular da Região Norte e busca evidenciar a construção da história a partir da perspectiva dos personagens marginalizados.

Eneida também se dedicou a pesquisar profundamente a cultura popular, o folclore nacional, os festejos e celebrações regionais. Em 1958, ela publicou História do Carnaval Carioca, um estudo abrangente sobre as origens, significados e variações das brincadeiras carnavalescas. O livro permanece até hoje como uma referência basilar para as pesquisas sobre o carnaval e as festas populares.

História do Carnaval Carioca inspirou o desfile da Acadêmicos do Salgueiro no carnaval de 1965, levando a escola a se sagrar como campeã. Eneida também foi a fundadora do famoso Baile do Pierrot e a primeira madrinha da Banda de Ipanema.

A escritora permaneceu intelectualmente ativa até o fim da vida, publicando obras sobre temas diversos, como Romancistas Também Personagens e Molière Narrado para Crianças. Manteve-se leal ao ideário comunista, mantendo-se no PCB a despeito das sucessivas crises que o partido atravessou desde o fim dos anos 50.

Eneida de Moraes faleceu em 27 de abril de 1971, aos 66 anos, vitimada pelo câncer. Seu corpo foi velado no Salão Nobre do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro e posteriormente trasladado para Belém do Pará.

A intelectual paraense foi postumamente homenageada pela Acadêmicos do Salgueiro, com o enredo Eneida, Amor e Fantasia, apresentado no carnaval de 1973. Também foi tema de dois desfiles da Paraíso do Tuiuti.