Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Há 130 anos, o pintor Modesto Brocos ganhava a Medalha de Ouro do Salão Nacional de Belas Artes com a pintura A Redenção de Cam, hoje integrada ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.

Considerada uma das principais referências iconográficas das doutrinas racistas que vigoravam na Primeira República, a obra enaltece o projeto de branqueamento racial da população por meio da miscigenação e se converteu em um símbolo das aspirações do movimento eugenista brasileiro.

Modesto Brocos

Pintada poucos anos após a abolição da escravatura, A Redenção de Cam evidencia o esforço da elite brasileira em reafirmar sua hegemonia no ordenamento político e social do Brasil.

Buscando criar uma sociedade que emulasse a Europa e que estivesse estruturada segundo o ideário da supremacia branca, o governo brasileiro instituiu uma política nacional de branqueamento, financiando a vinda de milhões de imigrantes europeus e fomentando a miscigenação como meio de “diluir” e eliminar gradualmente a presença de negros na população.

Esse mesmo processo ocorreu em outros países da América Latina — nomeadamente na Argentina, que recebeu mais de 6 milhões de imigrantes europeus entre o fim do século 19 e o início do século 20.

O pintor espanhol Modesto Brocos foi um dos milhões de europeus que imigraram para o continente americano no século 19. Inicialmente radicado na Argentina, Modesto Brocos se mudou para o Brasil em 1872, passando a trabalhar como ilustrador.

No Rio de Janeiro, Brocos frequentou os cursos da Academia Imperial de Belas Artes, onde teve aulas com Victor Meirelles e Zeferino da Costa. Após uma série de viagens de estudos na Europa, Brocos retornou ao Brasil para assumir o cargo de professor de desenho figurado na Escola Nacional de Belas Artes, por convite de Rodolfo Bernardelli.

Religião, escravidão e a tese do branqueamento

“A Redenção de Cam” se tornaria a obra mais conhecida de Modesto Brocos. O título da pintura é uma referência ao episódio bíblico da maldição lançada por Noé sobre seu filho mais novo, Cam, e todos os seus descendentes, conforme relatado no livro de Gênesis. Punindo Cam por zombar de sua nudez e embriaguez, Noé profetizou que os descendentes de seu filho seriam “servos dos servos de seus irmãos”.

Não há nenhuma passagem da Bíblia mencionando a cor da pele de Cam e de seus descendentes. E é provável que o mito originalmente tivesse por objetivo justificar o domínio dos israelitas sobre os cananeus. Posteriormente, durante a Idade Média, a maldição de Cam foi utilizada como uma justificativa para a servidão.

Ainda no período medieval, surgiram interpretações alegando que os descendentes de Cam tiveram a pele “escurecida pelo pecado”. Aos poucos, ideólogos cristãos passaram a associar os povos de pele negra da África à descendência camita.

Tais interpretações se tornaram prevalentes após o início da expansão colonial europeia, quando foram utilizadas como justificativa moral para o comércio de africanos escravizados, base do sistema colonial.

Na argumentação dos escravagistas, o pecado de Cam seria o episódio desencadeador e permanente de uma suposta “punição divina” imposta aos povos de pele negra. A escravização dos africanos era apresentada como o cumprimento da “vontade de Deus”.

O mito da maldição de Cam teve forte influência no desenvolvimento das teorias raciais oitocentistas, mas seguiu contornos próprios no Brasil. Na Europa, a emergência de teorias antropológicas como o darwinismo social e o evolucionismo social fortaleceriam a crença em diferenças somáticas e genéticas entre brancos e negros, levando à rejeição da miscigenação e ao fortalecimento do pensamento segregacionista.

Já no Brasil, sobretudo após a década de 1870, registrou-se um forte apoio à tese do branqueamento por meio da miscigenação, que foi encampada pelo Estado e passou a influenciar as políticas de imigração.

João Batista de Lacerda, diretor do Museu Nacional, foi um dos maiores defensores da tese do branqueamento, propondo que por meio de casamentos inter-raciais seria possível embranquecer toda a população brasileira em três gerações — o espaço equivalente a um século.

 “A Redenção de Cam”, de Modesto Brocos (1895)
Acervo do Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro

A Redenção de Cam

“A Redenção de Cam” é um produto da forte presença da tese do branqueamento no imaginário social do Brasil no fim do século 19. Na obra, Modesto Brocos vislumbra a reversão da maldição de Cam como uma alegoria para exaltar o branqueamento.

Se a pele negra era uma consequência da maldição, o branqueamento através da miscigenação seria um caminho para a redenção. A proposta, portanto, é de que a purificação do povo negro somente seria obtida através de sua extinção.

A cena é ambientada em frente a uma pobre habitação de pau a pique, onde estão retratadas quatro pessoas, simbolizando três gerações de uma mesma família. Em pé no canto direito está a avó negra. Ao centro, a mãe mestiça sentada com a criança branca em seu colo. À esquerda, o pai, também branco, sentado no degrau da porta, observando o filho com olhar oblíquo e ar de satisfação.

A matriarca, com semblante emocionado, ergue as mãos aos céus, em gesto de agradecimento pela “redenção”: o nascimento do neto branco, que, ao seu ver, estaria liberto dos estigmas e das consequências nefastas da escravidão.

A composição hierática, a postura das personagens e elementos como o manto azul da mãe com o filho no colo remetem à iconografia tradicional da Virgem Maria com o Menino Jesus, estabelecendo nuances de sacralização diretamente relacionados à cor da pele — quanto mais escura, mais profana, quanto mais clara, mais sagrada.

O bebê, o personagem mais branco do quadro, evoca a figura de Jesus Cristo, “redentor” da humanidade, reforçando o simbolismo do branqueamento como a “salvação” de um povo. Ele observa a avó e estende a mão em sua direção, num gesto ambíguo que parece sugerir uma benção.

A obra foi premiada com a medalha de ouro no Salão Nacional de Belas Artes de 1895 e recebeu fartos elogios da crítica, de Artur de Azevedo a Coelho Neto. O poeta Olavo Bilac, membro da Sociedade Eugênica de São Paulo, exaltou a obra em um texto laudatório da moral racista da época: “Vede a aurora-criança, como sorri e fulgura, no colo da mulata – aurora filha do dilúvio, neta da noite. Cam está redimido! Está gorada a praga de Noé!”.

Em 1911, a tela foi usada para ilustrar o artigo Sobre os Mestiços no Brasil, escrito por João Batista de Lacerda e apresentado durante o I Congresso Universal das Raças, em Londres. Defendendo a miscigenação como estratégia de branqueamento, Lacerda descreveu a pintura como um exemplo do “negro passando a branco, na terceira geração, por efeito do cruzamento de raças”, e fez um prognóstico da sua tese, especulando que em cem anos a população negra estaria extinta e os mestiços representariam, se muito, 3% da população brasileira.

A Redenção de Cam se tornou um dos maiores símbolos do movimento eugênico brasileiro, evidenciando o pensamento racista e elitista que caracterizou o processo pós-abolicionista da Primeira República — enxergando a Europa como modelo e símbolo do progresso e o negro como o atraso, o passado a ser esquecido, apagado e reconstruído.

O autor da obra, por sua vez, seria responsável por conceber outro manifesto eugenista bem conhecido. Em 1930, Modesto Brocos publicou o livro Viagem a Marte, um romance de ficção científica que retrata o planeta vermelho como uma “utopia eugênica”, onde os brancos detém o poder e mantém uma política de reprodução controlada. No livro, o autor propõe ideias como políticas de esterilização forçada e o assassinato em massa de bebês considerados imperfeitos. E assevera ter a esperança de que “tais ideias possam ser aproveitadas um dia”.