Por uma terra sem amos: 644 anos da Revolta dos Camponeses
Esquartejado na Inglaterra, padre John Ball ficou conhecido por seus sermões críticos à nobreza e liderança de uma das maiores insurreições populares da Idade Média
Há 644 anos, em 15 de julho de 1381, o padre John Ball era enforcado e esquartejado na Inglaterra. Conhecido por seus sermões criticando a nobreza e defendendo a igualdade social, John Ball foi um dos principais líderes da Revolta dos Camponeses, ao lado de Wat Tyler e John Wrawe.
A Revolta dos Camponeses é considerada uma das maiores insurreições populares ocorridas durante a Idade Média. O levante mobilizou mais de 60.000 trabalhadores rurais, que pegaram em armas para lutar contra a opressão dos grandes proprietários de terras e dos senhores feudais.
Os rebeldes exigiam o fim da servidão, a revogação das leis que impediam os aumentos salariais, a abolição dos impostos abusivos e a punição dos burocratas corruptos que extorquiam os trabalhadores.
Traídos pelo rei Ricardo II, que fingiu aceitar as reivindicações para debelar o levante, os rebeldes foram brutalmente reprimidos. Mais de 1.500 camponeses foram mortos pelas tropas reais. Embora malsucedido, o levante inspiraria outras insurreições e ajudaria a enfraquecer o regime de servidão.
A Peste Negra
Em meados do século 14, a Inglaterra sofria pressões pela mudança de sua estrutura socioeconômica. A sociedade feudal inglesa ainda era profundamente hierarquizada, com os camponeses compondo a base da pirâmide social. Parte substancial dos trabalhadores rurais ainda estava submetida ao regime de servidão, vinculados às terras de seus senhores.
A Peste Negra, entretanto, modificaria esse cenário. A pandemia causou um verdadeiro colapso demográfico no país, dizimando cerca de 50% da população inglesa. A mortalidade elevada gerou uma grave escassez de mão de obra, sobretudo na agricultura, que era a base da economia feudal.
Com menos trabalhadores disponíveis, os camponeses começaram a exigir salários mais altos e melhores condições de trabalho. A valorização da mão de obra estimulou a mobilidade social. Entre 1340 e 1380, o poder de compra real dos camponeses aumentou cerca de 40%.
Essa mudança nas relações de trabalho desafiava diretamente a ordem feudal e o sistema de servidão, dando maior poder de barganha para os camponeses — que agora podiam escolher trabalhar para os senhores que pagassem mais. Contrariados com a corrosão de seus lucros e com o enfraquecimento do controle social sobre a mão de obra, os senhores feudais pressionaram por mudanças na legislação.
Em 1351, o parlamento inglês aprovou o Estatuto dos Trabalhadores, que fixou os salários dos camponeses nos níveis anteriores à pandemia de Peste Negra. A nova lei proibiu os camponeses de recusarem ofertas de emprego ou de romper contratos de trabalho em busca de melhores oportunidades.
Também foram promulgadas as leis suntuárias, proibindo os trabalhadores de adquirirem itens de luxo, que antes eram acessíveis apenas à elite. O descumprimento da legislação era punido com prisão, multa e castigos físicos. Essas medidas causaram descontentamento generalizado entre os camponeses, sendo compreendidas como tentativas de reforçar o sistema de servidão, mantendo-os presos à terra e a restrições injustas.
A Guerra dos Cem Anos e o regime tributário
Ao mesmo tempo em que eram submetidos às investidas dos senhores feudais, os camponeses também sofriam com as consequências fiscais da Guerra dos Cem Anos.
O conflito fora iniciado em 1337, após a morte do rei francês Carlos IV, que não deixou herdeiros diretos. O rei da Inglaterra, Eduardo III, sobrinho de Carlos IV, reivindicou o direito ao trono francês, mas foi preterido em função da Lei Sálica, que excluía heranças por linha materna. A disputa dinástica foi reforçada ainda por conflitos de ordem territorial e econômica, resultando em uma guerra intermitente que se prolongaria por 116 anos.
Eduardo III morreu em 1377, deixando o trono para seu neto, Ricardo II, então com 10 anos de idade. O reinado de Ricardo II seria profundamente influenciado por seu tio, o poderoso João de Gante, que, na prática, exerceria o papel de regente informal da Inglaterra.
A fim de arrecadar fundos para as campanhas militares da Guerra dos Cem Anos, João de Gante recomendou a criação de uma série de tributos de capitação. Os impostos costumavam ter um valor único, independentemente da renda, o que afetava desproporcionalmente os mais pobres. Frequentemente, membros da aristocracia e do alto clero permaneciam isentos da cobrança.
Em 1377, o parlamento instituiu uma taxa de quatro moedas a ser cobrada de todos os cidadãos ingleses com mais de 14 anos. Dois anos depois, em 1379, houve a criação de um novo tributo, dessa vez proporcional à renda. E em 1381, o governo inglês impôs uma terceira capitação, também de valor único — 12 moedas por pessoa, a serem pagas por todos os ingleses com mais de 15 anos.
Para os camponeses, a cobrança de 1381 era uma afronta. A taxa era a mais recente adição a uma longa lista de 27 impostos que já tinham sido instituídos pelo Estado inglês na era medieval. A população sentia que os tributos eram mal utilizados, desviados por esquemas de corrupção ou empregados para sustentar regalias e privilégios dos aristocratas.
Indignados, os trabalhadores resolveram boicotar a coleta. Ao perceber que a campanha de capitação havia angariado uma soma muito abaixo da esperada, o conselho real instruiu as autoridades regionais e os coletores de impostos a identificarem e cobrarem os sonegadores.

O Rei Ricardo II se encontra com os rebeldes durante a Revolta dos Camponeses. Iluminura de Jean Froissart, século XV.
Biblioteca Nacional da França/Wikimedia Commons
O começo da revolta
A tentativa de coletar os impostos seria o estopim da Revolta dos Camponeses. Em maio de 1381, John Brampton, um membro do parlamento, viajou até o condado de Essex para cobrar o pagamento das taxas em aberto.
O parlamentar seria recepcionado por Thomas Baker, representante dos moradores de Fobbing, que afirmou que aldeia não daria mais um centavo ao governo. Julgando-se desrespeitado pela resposta, Brampton ordenou a prisão de Baker, mas foi confrontado pela reação dos camponeses, que atacaram e mataram três de seus oficiais.
Em seguida, os moradores de Essex se organizaram em milícias e iniciaram uma marcha rumo a Londres. A notícia do ocorrido se difundiu rapidamente pela região, inspirando movimentos análogos. John Wrawe, um ex-capelão de Essex, iniciou outra marcha com o fim de incitar a sublevação dos camponeses em Suffolk.
No condado vizinho de Kent, a prisão do camponês Robert Belling, acusado de ser um servo fugido das terras do nobre Simão de Burley, enfureceu a população. Após invadiram o Castelo de Rochester para libertar Belling, os moradores de Kent também criaram uma milícia que partiu rumo a Londres.
Um homem chamado Wat Tyler, possivelmente um artesão ou ladrilhador, seria escolhido como líder dos rebeldes de Kent. Pouco se sabe sobre a vida de Tyler antes da revolta, mas sua habilidade em mobilizar e organizar a milícia sugere que ele já possuía alguma experiência como liderança comunitária.
Sob o comando de Tyler, os combatentes de Kent tomaram a cidade de Cantuária, invadindo seu castelo e depondo o arcebispo local. Ao longo da marcha, os amotinados atacavam e destruíam as propriedades ligadas ao conselho real. E a cada cidade, a milícia angariava novos voluntários, refletindo o grande apoio popular à insurreição.
John Ball
Um dos principais líderes da revolta foi o padre John Ball, um clérigo que pregava uma visão igualitária do cristianismo. Inspirado por interpretações da Bíblia, Ball questionava a hierarquia feudal, afirmando que todos os homens eram iguais aos olhos de Deus. Pregador carismático com ótimo domínio da retórica, ele era conhecido por suas críticas veementes à ganância dos ricos e à exploração dos camponeses.
Na obra “A Dream of John Ball”, o historiador Jean Froissart registrou um discurso do sacerdote que sintetizava suas ideias: “Os senhores feudais estão vestidos com veludo e lã, cobertos com peles de esquilo e arminho, enquanto nós andamos vestidos com tecidos grosseiros. Eles bebem vinho, têm especiarias e comem o bom pão. Nós ficamos com o centeio, as cascas, a palha e bebemos água. Eles têm abrigo e conforto em suas belas mansões e nós temos dificuldades e trabalho árduo, o vento e a chuva nos campos. E de nós deve vir, do nosso trabalho, as coisas que os mantêm no luxo.”
As críticas de John Ball o transformaram em um alvo das autoridades. Ele foi preso por diversas vezes e possivelmente foi excomungado em 1366. Não obstante, Ball seguiria como um líder extremamente popular. Foi o padre quem cunhou a célebre frase que se tornaria o lema da Revolta dos Camponeses: “Quando Adão caçava e Eva arava, quem era então o senhor feudal?”.
Ball era um seguidor do lollardismo — movimento político e religioso inspirado nas ideias do teólogo John Wycliffe. Ele acreditava que a verdadeira “Igreja de Cristo” não era Igreja institucionalizada sediada em Roma, mas sim o sentimento de comunhão dos fiéis. As críticas dos lollardos à corrupção e à riqueza do clero ressoavam com os camponeses, que também enxergavam a igreja como parte do sistema opressivo.
A marcha para Londres
As colunas rebeldes de Essex e Kent convergiram para Londres, formando um verdadeiro exército revolucionário, com dezenas de milhares de pessoas. Historiadores estimam que o movimento mobilizou cerca de 60.000 combatentes — o que o transforma no maior levante popular registrado em toda a Idade Média.
Os revolucionários exigiam o fim do regime de servidão, a revogação das leis que impediam ao aumento salarial e a abolição da cobrança dos tributos de capitação. Em algumas regiões, as exigências incluíram a redistribuição de terras controladas pela nobreza e pela Igreja. O movimento não pregava a deposição do rei, mas exigia a aplicação de pena capital a vários burocratas no entorno de Ricardo II, incluindo João de Gante.
No caminho para Londres, os rebeldes destruíram as propriedades feudais, queimaram os registros legais de terras e atacaram os mosteiros e tribunais. Eles também invadiram as prisões de Marshalsea, Fleet e Newgate e libertaram os prisioneiros.
Os rebeldes entraram em Londres em 12 de junho, sem enfrentar qualquer resistência. A população da cidade apoiava a revolta e ajudou a engrossar as fileiras revolucionárias. Os camponeses destruíram o Palácio de Savoy, a residência de João de Gante. Também atacaram o Priorado de Clerkenwell, a sede dos Cavaleiros Hospitalários.
Informado sobre a revolta, o rei Ricardo II, então com 14 anos, deixou o Castelo de Windsor e partiu com sua comitiva e com a guarda real rumo à Torre de Londres. Thomas Brinton, o Bispo de Rochester, foi enviado para tentar convencer os camponeses a abandonarem a rebelião, mas não obteve sucesso.
A revolta também se espalhou pelo restante da Inglaterra, sobretudo nos condados do Leste. Em Suffolk, John Wrawe liderou uma série de ataques contra latifundiários e instituições eclesiásticas, como a Abadia de Bury St. Edmunds. Em Norfolk, Geoffrey Litster conduziu ofensivas contra as propriedades de nobres e clérigos. Um grupo partiu para a Universidade de Cambridge, onde John Cavendish, o Chefe de Justiça do Banco do Rei, foi morto.
A revolta foi menos intensa no Norte e no Oeste. Houve confrontos significativos em York, Beverley e Scarborough, onde as propriedades de ricos mercadores e clérigos foram depredadas. A agitação também se estendeu a Bridgwater, onde os homens liderados por Thomas Ingleby e Adam Brugge destruíram a Casa Agostiniana e as propriedades do comerciante John Sydenham.
Negociações com Ricardo II
Em 14 de junho de 1381, após uma tentativa frustrada de negociação em Greenwich, o rei Ricardo II concordou em se encontrar com os rebeldes em Mile End, a leste de Londres. Durante o encontro, os rebeldes apresentaram suas demandas: abolição da servidão, redução dos impostos, punição dos oficiais corruptos e anistia para os rebelados.
Sob pressão, Ricardo II concordou em atender as demandas e chegou a emitir cartas autorizando a emancipação dos servos e a concessão de anistia. Não obstante, o monarca visava apenas apaziguar os rebeldes para ganhar tempo até que as tropas inglesas se reorganizassem. Boa parte dos soldados estavam alocados nas campanhas militares da França e da Alemanha, o que prejudicou a capacidade de contra-atacar a rebelião.
Enquanto o rei negociava com os camponeses em Mile End, um outro grupo de 400 rebeldes invadia a Torre de Londres. No recinto, eles se depararam com o arcebispo Simon Sudbury, que exercia o cargo de Lorde Chanceler, e Robert de Hales, o Lorde Tesoureiro. Ambos foram decapitados, assim como William Appleton, médico de João de Gante, e John Legge, Sargento Real.
Supressão da revolta
Após Ricardo II prometer que atenderia às reivindicações, os camponeses começaram a se dispersar. O grupo liderado por Wat Tyler, entretanto, permaneceu em Londres, declarando-se insatisfeito com as negociações. No dia 15 de junho, o rei partiu com uma comitiva de 200 soldados para se encontrar com os rebeldes em Smithfield, nos arredores da capital inglesa.
Diante do rei, Tyler apresentou demandas mais radicais, incluindo a redistribuição de terras e a abolição de privilégios nobiliárquicos. A negociação logo se deteriorou, evoluindo para um tumulto. Ricardo II ordenou a prisão do líder camponês. Tyler tentou resistir e foi morto a golpes de espada desferidos por Ralph Standish, um escudeiro real.
Com a morte de Wat Tyler, a revolta perdeu seu ímpeto. Aproveitando-se da desmobilização dos camponeses, o governo iniciou a repressão. Robert Knolles, Nicholas Brembre e Robert Launde foram incumbidos de restaurar o controle da capital. Milhares de soldados responderam à convocatória real e as tropas foram enviadas para esmagar o levante em Essex, Kent e outros condados rebelados.
Os líderes da revolta foram capturados e condenados à morte. Em 15 de julho de 1381, John Ball foi enforcado na presença do rei. Seu corpo foi esquartejado e as parte enviadas para serem expostas em diferentes condados, a fim de amedrontar os camponeses. O mesmo ocorreu com John Wrawe, enforcado e esquartejado em 6 de maio de 1382. Ao todo, mais de 1.500 camponeses foram executados ou mortos durante a repressão.
As promessas feitas por Ricardo II em Mile End foram todas revogadas. O parlamento decretou a nulidade das cartas de emancipação e anistia, sob argumento de que haviam sido concedidas sob coação. Durante um encontro com uma delegação que buscava confirmar a decisão, o monarca declarou: “Camponeses vocês eram e camponeses vocês são. Permanecerão na servidão. Não como antes, mas em um estado incomparavelmente pior”.
O medo de novas revoltas, no entanto, levaria o monarca a abolir o imposto de capitação. Embora malsucedida, a Revolta dos Camponeses expôs as fragilidades do sistema feudal e a insatisfação generalizada da classe trabalhadora, pavimentando o caminho para novos movimentos e ajudando a acelerar o declínio do regime de servidão na Inglaterra.























