Plano Cohen: a farsa dos militares que justificou a ditadura de Vargas
Documento forjado detalhava suposta articulação comunista para tomar poder no Brasil, fazendo uso de assassinatos em massa e outras atrocidades
Há 88 anos, em 30 de setembro de 1937, o governo brasileiro anunciava publicamente a “descoberta” do Plano Cohen. Atribuído à Comintern, o documento detalhava um suposto plano dos comunistas para tomar o poder no Brasil, fazendo uso de assassinatos em massa, ataques com gás venenoso e outras atrocidades.
Era tudo mentira. O Plano Cohen foi forjado pelos próprios militares, em colaboração com líderes integralistas e membros da cúpula do governo. O objetivo era causar pavor na população e pressionar o Congresso a autorizar a decretação de estado de exceção.
O plano deu certo. O Congresso aprovou a decretação de estado de guerra e Vargas obteve apoio das Forças Armadas e da burguesia para fechar o regime. Quarenta dias depois, em 10 de novembro de 1937, Vargas dissolveu o Congresso, suspendeu as eleições e instaurou a ditadura do Estado Novo, permanecendo no poder por mais oito anos.
O governo Vargas e o anticomunismo
Alçado à chefia do poder executivo após a Revolução de 1930, Getúlio Vargas seria responsável por implementar uma série de medidas modernizantes e centralizadoras, deixando um legado ambivalente.
Vargas limitou o poder político das velhas oligarquias, implementou reformas trabalhistas e sociais, incentivou a industrialização e a diversificação da estrutura produtiva. Ao mesmo tempo, ele governou de forma autoritária, reprimindo severamente seus opositores, institucionalizando o controle sobre a imprensa e ampliando os instrumentos de repressão e vigilância.
O discurso anticomunista, em franca ascensão na década de 1930, serviria de lastro a várias medidas repressivas adotadas por Vargas. Alarmadas pela crescente organização da esquerda radical e do movimento operário, as elites passaram a financiar e promover a propaganda anticomunista e as organizações de extrema-direita, quase sempre vinculadas ao pensamento fascista.
É o caso, sobretudo, da Ação Integralista Brasileira (AIB), organização fundada por Plínio Salgado que se expandiu rapidamente no Brasil graças ao patrocínio de banqueiros e industriais. Os integralistas seguiam o modus operandi das grandes agremiações fascistas europeias, com a criação de milícias e a estratégia de infiltração nas organizações da sociedade civil.
O movimento integralista comandava uma grande estrutura editorial, publicando livros, revistas e jornais que serviam à difusão da propaganda anticomunista em larga escala. Frequentemente, essa propaganda buscava adaptar mitos conspiratórios ao contexto brasileiro.
Um dos mitos mais difundidos pelos integralistas afirmava que existia uma aliança judaico-comunista que pretendia dominar o Brasil e o resto do mundo — uma tese que unia a paranoia anticomunista às teorias da conspiração antissemitas, em especial aquelas impulsionadas por uma infame falsificação conhecida como “Os Protocolos dos Sábios de Sião”.
Vários integralistas e admiradores do regime fascista compunham a cúpula do governo Vargas e ajudaram a institucionalizar o anticomunismo. Em abril de 1935, sob o pretexto de combater a “ameaça comunista”, Vargas sancionou a Lei de Segurança Nacional (LSN), suprimindo as liberdades civis asseguradas pela Constituição de 1934, criminalizando a “incitação ao ódio entre as classes sociais” e as tentativas de “subversão da ordem política”.
A LSN possibilitou a Vargas o recrudescimento da ofensiva contra os dissidentes. Três meses após sua criação, a lei seria utilizada para banir a Aliança Nacional Libertadora (ANL), uma frente antifascista vinculada ao Partido Comunista do Brasil (antigo PCB), que fazia firme oposição aos integralistas e ao regime de Vargas.
Uma tentativa fracassada de insurreição organizada pela ANL em novembro de 1935 daria a Vargas o pretexto ideal para ampliar a repressão. Logo após o levante, Vargas decretou estado de sítio, ampliando os poderes do governo para restringir liberdades civis e intensificar a censura à imprensa.
Milhares de pessoas que criticavam o governo seriam presas e torturadas, mesmo sem possuir qualquer ligação com o levante. Muitos comunistas foram assassinados pela repressão levada a cabo por Filinto Müller, o chefe da polícia política.
O Plano Cohen
A “ameaça comunista” seria instrumentalizada por Vargas mais uma vez em 1937, como um subterfúgio para estender o seu mandato. Vargas passou quatro anos no poder como presidente provisório e obteve um mandato adicional por eleição indireta do Congresso, após a promulgação da Constituição de 1934. Ele deveria, portanto, deixar o governo em 1938, quando seria realizada a 14ª eleição presidencial brasileira.
Três presidenciáveis já haviam apresentado suas candidaturas: Armando de Sales Oliveira (apoiado pela oposição liberal paulista), José Américo de Almeida (próximo de Vargas, mas de lealdade questionável) e Plínio Salgado (líder dos integralistas). Nenhuma das candidaturas agradava a Vargas e não havia a possibilidade legal de obter mais um mandato.
O presidente também se ressentia da crescente oposição que sofria no Congresso, principalmente após os parlamentares barrarem a prorrogação do estado de sítio decretado em 1936. Vargas passou a defender a ideia de que era necessário forçar uma mudança do regime político e reformar a Constituição. A solução, portanto, seria um golpe de Estado.
Vargas obteve prontamente o apoio das Forças Armadas ao seu plano golpista, cooptando-as com a promessa de mais recursos financeiros. Ele também conseguiu a adesão de Plínio Salgado, que recebeu a oferta de um ministério. Faltava, no entanto, um pretexto que justificasse o golpe.
Eurico Gaspar Dutra, o Ministro da Guerra de Vargas, foi incumbido de arrumar uma justificativa para a intervenção. A ideia era criar um fato novo, a ser apresentado como uma grave ameaça ao país, justificando a suspensão das eleições e das garantias constitucionais. Surgiu assim o “Plano Cohen”.
A criação do plano ficou a cargo de oficiais do Exército Brasileiro. O autor do texto foi o capitão Olímpio Mourão Filho, membro do serviço de inteligência do Exército e organizador das milícias integralistas. Mourão afirmou ter criado o documento como um exercício hipotético, uma simulação de revolução comunista para uso da AIB. Uma cópia desse documento foi remetida ao general Góis Monteiro, chefe do Estado-Maior do Exército, que a considerou como o subterfúgio ideal para justificar o golpe.
O “Plano Cohen” descrevia complô comunista para tomar o poder no Brasil. O texto foi falsamente atribuído à Internacional Comunista (Comintern) e descrevia uma série de ações violentas: assassinato de líderes políticos e militares, incêndio de prédios públicos, sabotagem de infraestrutura, sequestros de autoridades, uso de gás venenoso, execuções sumárias, libertação dos presos, saques e depredações.
O nome “Cohen”, de origem judaica, foi escolhido para evocar a tese da conspiração judaico-comunista, tão propalada pelos integralistas. O documento tinha diversas semelhanças com os “Protocolos dos Sábios de Sião”. “Cohen” também era uma referência a Béla Kun, líder de uma efêmera revolução comunista na Hungria, que os integralistas costumavam chamar de “Béla Cohen”.
Em posse do documento, Dutra convocou uma reunião de emergência com os altos oficiais das Forças Armadas, a fim de convencê-los sobre a necessidade de tomar medidas urgentes para garantir “a salvação da Pátria”. Góis Monteiro participou da reunião e concordou que havia a necessidade de um golpe de Estado para “preservar as instituições nacionais”.
No dia 30 de setembro de 1937, o governo Vargas anunciou publicamente a “descoberta” do Plano Cohen. Durante um pronunciamento radiofônico no programa “Hora do Brasil”, Góis Monteiro revelou o conteúdo do documento, anunciando as “terríveis barbaridades” que os comunistas pretendiam cometer no Brasil.
A notícia caiu como uma bomba, causando espanto e terror na população. O plano dominou o noticiário pelas semanas seguintes, sendo amplamente difundido pelas rádios e jornais oficiais do governo. Intelectuais, líderes conservadores e religiosos cobravam providências imediatas.
A grande imprensa não cogitou questionar a autenticidade do documento, preferindo endossar integralmente o relato governamental através de matérias sensacionalistas, ajudando a espalhar o pânico moral.

Getúlio Vargas e oficiais militares em 1936
Arquivo Nacional/Wikimedia Commons
As consequências do plano
Um dia após a divulgação do Plano Cohen, em 1º de outubro de 1937, o Ministro da Justiça, Macedo Soares, submeteu ao Congresso um pedido de decretação de estado de guerra.
A requisição foi aprovada por ampla maioria — 138 votos favoráveis e 52 contrários na Câmara dos Deputados, 23 votos a favor e 5 contra no Senado. Os poucos parlamentares que exigiram averiguar o documento foram acusados de “antipatriotas” e recriminados por questionarem a “honestidade dos militares”.
Respaldado pelo decreto, Vargas suspendeu as liberdades civis, intensificou a censura e a repressão. Em 6 de outubro, o presidente instalou uma comissão para supervisionar o cumprimento do estado de guerra e das determinações governamentais.
Vargas ordenou a prisão de “todos os praticantes e simpatizantes de doutrinas comunistas” e mandou criar campos de concentração “destinados a receber jovens que tenham transviado de seus deveres cívicos”. Também orientou a criação de espaços para a “reeducação de filhos de comunistas presos”.
Diversas lideranças políticas da oposição foram perseguidas e os parlamentares não alinhados foram presos. O governador gaúcho José Antônio Flores da Cunha foi forçado a renunciar e a partir para o exílio no Uruguai.
No dia 1º de novembro de 1937, uma enorme marcha com mais de 50.000 integralistas saiu às ruas do Rio de Janeiro para demonstrar apoio a Vargas. O presidente assistiu ao desfile de uma sacada do Palácio do Catete e foi reverenciado com a saudação integralista de “Anauê!”.
O Plano Cohen pavimentou o caminho para o golpe de 10 de novembro de 1937, quando Vargas ordenou a dissolução do Congresso, cancelou as eleições presidenciais e outorgou uma nova Constituição, conhecida como “Polaca”, inspirada na carta magna autoritária da Polônia.
Nascia assim o Estado Novo, uma ditadura que aboliu os partidos políticos, baniu os movimentos sociais e sindicatos independentes, proibiu greves e extinguiu a autonomia dos estados. O regime ditatorial se estenderia por oito anos, até a redemocratização em 1945.
Milhares de opositores, sobretudo de esquerda, seriam presos, torturados ou exilados. Lideranças liberais e jornalistas também foram perseguidos. Até mesmo os integralistas se tornaram, posteriormente, alvos do regime, após uma tentativa fracassada de levante. O anticomunismo se consolidou como uma doutrina oficial de Estado, passando a ter enorme influência sobre a formação das Forças Armadas e os princípios basilares da política externa.
A farsa do Plano Cohen só foi admitida publicamente anos depois, em meio à crise do Estado Novo. Em 1945, o general Góis Monteiro, agora convertido em adversário de Vargas, admitiu que o documento fora forjado. Olímpio Mourão Filho confessou ser o autor do plano. Anos mais tarde, Olímpio seria um dos principais líderes do golpe de 1964, que derrubou João Goulart e instaurou uma nova ditadura.























