Otelo Saraiva de Carvalho, o arquiteto da Revolução dos Cravos
Aliado da esquerda revolucionária, 'o Libertador de Portugal' articulou o plano operacional que derrubou o regime ditatorial do país
Há quatro anos, em 25 de julho de 2021, falecia o revolucionário português Otelo Saraiva de Carvalho, alcunhado “o Libertador de Portugal”.
Otelo foi o líder do Movimento das Forças Armadas e o principal responsável pelo plano operacional que levou à deposição do regime ditatorial português, levando ao triunfo da Revolução dos Cravos.
Após a queda do Estado Novo, Otelo se aliou à esquerda revolucionária na tentativa de implementar reformas profundas, que levassem à instituição de um governo socialista em Portugal. Ele apoiou a ocupação dos latifúndios, a autogestão operária das fábricas e a nacionalização das empresas.
Incomodados com intensificação da agitação social e com o aprofundamento das reformas, a esquerda moderada e os setores conservadores das Forças Armadas atuaram para neutralizar a influência política de Otelo e das organizações revolucionárias.
Juventude e formação
Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho nasceu em 31 de agosto de 1936 em Lourenço Marques (atual Maputo), capital de Moçambique — à época, uma colônia portuguesa. Ele era filho de Fernanda Áurea Romão e de Eduardo Saraiva de Carvalho, um funcionário dos Correios, Telégrafos e Telefones de Portugal (CTT).
Em função do trabalho do pai, Otelo cresceu dividindo seu tempo entre Portugal e Moçambique, o que lhe permitiu testemunhar as enormes disparidades socioeconômicas existentes entre a metrópole e a colônia.
Em 1955, Otelo ingressou na Academia Militar de Lisboa. Concluiu o curso em 1959, na condição de aspirante a oficial, e se especializou posteriormente na Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas.
Durante uma viagem à França, Otelo fez amizade com representantes dos movimentos autonomistas africanos que lutavam contra o domínio francês. Ele se interessou pelo tema da luta anticolonial, ao mesmo tempo em que se alinhou politicamente às ideias do filósofo António Sérgio e do militar Humberto Delgado, o “general sem medo”, proeminentes figuras de oposição ao governo ditatorial de António de Oliveira Salazar.
A Guerra Colonial
Após ser promovido a alferes do Quadro Permanente do Exército em 1960, Otelo foi enviado para Angola. As tropas portuguesas tinham sido incumbidas de combater o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), a organização que liderava a guerrilha independentista na colônia.
Otelo permaneceria em Angola até 1963, testemunhando em primeira mão os horrores do colonialismo português e a repressão brutal do Estado Novo. A percepção de que se tratava de uma guerra injusta fez com que o militar se tornasse cada vez mais simpático ao movimento anticolonial — sentimento que seria intensificado após presenciar a conduta abusiva e cruel do tenente-coronel António de Spínola.
De volta a Portugal, Otelo assumiu o cargo de instrutor da Legião Portuguesa — milícia de apoio à Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), a polícia política salazarista. Ele também lecionou por dois anos na Escola Central de Sargentos em Águeda.
Em 1970, Otelo recebeu ordens para se juntar às forças coloniais na Guiné Portuguesa (atual Guiné-Bissau), onde ocuparia a chefia de imprensa da Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica. Na Guiné, ele se tornou próximo de Rafael Paula Barbosa, militante do movimento independentista e um dos organizadores do Congresso do Povo da Guiné.
A convivência com os revolucionários guineenses que lutavam contra o domínio colonial português foi crucial para consolidar a politização de Otelo e direcioná-lo ao estudo do socialismo. Ele passou a criticar abertamente a Guerra Colonial e o governo português, ao mesmo tempo em que buscava articular um movimento de oposição ao Estado Novo dentro das Forças Armadas.

Otelo Saraiva de Carvalho em 1976
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O Movimento das Forças Armadas e a Revolução dos Cravos
Em 1973, Otelo subscreveu o abaixo-assinado de 400 oficiais portugueses com críticas dirigidas ao Congresso dos Combatentes do Ultramar. No mesmo ano, ele ajudaria a fundar o Movimento dos Capitães, iniciativa que congregava oficiais das Forças Armadas de Portugal que estavam descontentes com a Guerra Colonial e com a condução do país pelo regime ditatorial do Estado Novo.
A oposição dos militares intensificou a pressão popular sobre o regime português, que já enfrentava uma prolongada crise econômica, agravada pelo Choque do Petróleo.
Ampliado, o Movimento dos Capitães logo se converteria no Movimento das Forças Armadas (MFA), tornando-se a principal força de oposição à ditadura do Estado Novo, atraindo apoio dos movimentos de esquerda e de setores progressistas da sociedade.
Em março de 1974, o MFA organizou o Levantamento das Caldas, tentativa fracassada de deposição do governo português. Otelo assumiria então a responsabilidade de coordenar uma nova sublevação do MFA no mês seguinte, que culminaria na Revolução dos Cravos.
O militar instalou secretamente um posto de comando no Quartel da Pontinha, em Lisboa, e dividiu as operações em várias frentes, coordenando a ocupação de pontos estratégicos, como o Aeroporto de Lisboa, a RTP e a Emissora Nacional.
O levante teve início na madrugada de 25 de abril de 1974. Tropas estacionadas em todas as regiões de Portugal deram início a uma operação concertada, tomando aeroportos, equipamentos públicos e os órgãos oficiais de comunicação. Otelo também incumbiu Salgueiro Maia de atacar o Quartel do Carmo, onde estava Marcello Caetano, chefe do governo português.
O regime tentou reagir, ordenando às tropas alocadas em Braga que sufocassem o levante, mas os soldados já haviam aderido à sublevação. A população portuguesa saiu às ruas demonstrando apoio aos militares, oferecendo cravos vermelhos em sinal de agradecimento. Marcello Caetano, chefe de governo português, se rendeu ao final do dia.
O governo revolucionário
A Revolução dos Cravos marcou o início de um período de profundas transformações em Portugal. O regime do Estado Novo foi substituído por uma Junta de Salvação Nacional e as colônias portuguesas foram rapidamente encaminhadas para a independência. A revolução também abriu espaço para a legalização de partidos e sindicatos, a ampliação de serviços públicos, a libertação de presos políticos e o fim da censura.
Promovido a general, Otelo integraria a cúpula do Governo Provisório, ao lado de Francisco da Costa Gomes e Vasco Gonçalves. Ele foi nomeado Comandante-Adjunto do Comando Operacional do Continente (COPCON) — a força de segurança instituída para garantir a continuidade da transição política. Também assumiu o posto de Comandante da Região Militar de Lisboa.
O militar teve papel essencial para neutralizar as ofensivas contrarrevolucionárias. Em março de 1975, Otelo coordenaria a operação responsável por debelar uma tentativa de golpe impetrada por setores reacionários, sob a liderança de António de Spínola.
O COPCON se tornou um instrumento utilizado para apoiar os movimentos populares e as reformas sociais. Defensor da reforma agrária, Otelo ajudaria os camponeses a organizarem a ocupação terras. Ele promoveu igualmente a tomada das fábricas por trabalhadores e auxiliou na formação de comissões para resolver os problemas de moradia.
O líder do MFA pretendia que a Revolução dos Cravos se consolidasse como uma revolução socialista, promovendo uma transformação profunda na estrutura política, social e econômica do país. Entre várias outras medidas, ele defendia a instituição de modelos de democracia direta, a coletivização das terras e autogestão operária nas indústrias.
A visão política de Otelo, no entanto, logo o colocaria em conflito com os setores moderados do MFA, sobretudo o grupo liderado por Ernesto Melo Antunes. A maior parte dos militares rejeitava a ideia de um governo socialista. Pretendiam que Portugal se mantivesse como uma democracia liberal alinhada aos governos ocidentais.
A cisão entre os revolucionários e moderados se acentuou durante o chamado “Verão Quente” de 1975. Ao lado da esquerda radical, Otelo defendeu a criação de comitês populares e a nacionalização de vastos setores da economia. Ele recebeu apoio de organizações estudantis e sindicais, mas enfrentou forte resistência do Partido Socialista e do Partido Social-Democrata, que enxergavam sua postura como uma “ameaça à estabilidade”.
A desconfiança em relação a Otelo se agravaria ainda mais após julho de 1975, quando ele visitou Cuba, sendo recepcionado por Fidel Castro e convidado a prestigiar as celebrações do 26 de julho — o dia da tomada do Quartel Moncada, marco inicial da Revolução Cubana.
O golpe de 75
O aprofundamento das reformas em Portugal e a crescente agitação das massas começaram a incomodar os setores moderados. Alegando que o país estava caminhando para uma situação de ingovernabilidade, o Partido Socialista, o Partido Social Democrata e os militares moderados do MFA articularam um golpe para encerrar o processo revolucionário em curso. Otelo foi então afastado do comando da Região Militar de Lisboa, sendo substituído por Vasco Lourenço.
Em 25 de novembro de 1975, reagindo contra os ataques ao processo revolucionário, paraquedistas aliados ao grupo de Otelo iniciaram um levante contra o governo português, tomando várias bases militares do país. O levante fracassou. Acusado de ser o mentor intelectual da revolta, Otelo foi preso. O COPCON foi dissolvido e o grupo chefiado por António Ramalho Eanes ganhou proeminência política.
Marginalizado dentro do MFA, Otelo tentou voltar à arena pública em 1976, lançando-se como candidato à presidência de Portugal. Ele apresentou uma plataforma de governo socialista, pautada pela retomada das reformas iniciadas após a Revolução dos Cravos. Sua candidatura recebeu forte apoio da classe trabalhadora em localidades como Setúbal e Alentejo. Otelo terminou o pleito em segundo lugar, atrás de Ramalho Eanes, com 16,5% dos votos.
Em 1980, Otelo fundou o partido revolucionário Força de Unidade Popular (FUP), com o qual concorreu novamente à presidência. Ele voltou a apresentar uma plataforma centrada na construção do socialismo, mas terminou em terceiro lugar, com uma votação bem menos expressiva.
A prisão e os anos finais
O partido fundado por Otelo foi acusado de possuir vínculos estreitos com as Forças Populares 25 de Abril (FP-25) — uma organização composta por membros das Brigadas Revolucionárias, dissidentes do Partido Comunista Português (PCP) e outras organizações da esquerda radical.
O FP-25 seria responsável por empreender uma série de ações armadas que visavam a instituição de um governo revolucionário. O grupo realizou ataques a bancos, empresas, instalações militares e edifícios governamentais.
Em 1984, acusado de ser o efetivo líder do FP-25, Otelo foi preso. Embora negasse ter envolvimento direto com a organização, ele seria processado por terrorismo e condenado a 15 anos de prisão. O julgamento de Otelo foi polêmico, acusado de possuir motivação política e estar construído sobre evidências falsas. Otelo atribuiu sua prisão à colaboração de membros do PCP com o governo português.
Otelo foi libertado após cinco anos de cárcere e recebeu anistia em 1996, após uma campanha internacional denunciar sua prisão como politicamente motivada. Sua condenação seria anulada pelo Tribunal Constitucional, que julgou a sentença irregular.
Após sua libertação, Otelo dedicou-se a escrever sobre suas memórias e sobre a Revolução dos Cravos (“Alvorada em Abril”, “O Dia Inicial”). Em suas entrevistas, sempre expressava orgulho pelo papel que desempenhara no 25 de Abril, mas também frustração com a evolução da democracia portuguesa, que considerava insuficientemente transformadora.
Otelo Saraiva de Carvalho faleceu em 25 de julho de 2021, aos 84 anos. Seu funeral foi acompanhado por milhares de pessoas e pelas principais autoridades do governo português. Ele seria homenageado postumamente pelo parlamento com o título de “Libertador de Portugal”.























