O Povo Tabom: a herança afro-brasileira em Gana
Bairro da capital Acra, Jamestown recebeu negros escravizados que foram expulsos da Bahia e deportados para a África após o Levante dos Malês
O turista brasileiro que visitar Jamestown, um antigo de bairro de Acra, a capital de Gana, certamente vai se sentir familiarizado com muita coisa. Dos grafites evocando a bandeira verde-amarela até um centro cultural especializado, o bairro está repleto de referências ao Brasil.
Jamestown, afinal, foi o primeiro lugar onde se estabeleceu o povo Tabom — uma comunidade afro-brasileira, formada por negros escravizados e libertos que foram expulsos da Bahia e deportados para a África após o Levante dos Malês.
Os Tabom mantém fortes vínculos com a cultura brasileira na música, na culinária, nas práticas religiosas e até em seus sobrenomes, evidenciando o fenômeno da construção de uma identidade como meio de resistir à violência e fragmentação associadas à escravidão e à diáspora.
O Levante dos Malês
Em janeiro de 1835, a cidade de Salvador serviu de palco à maior insurreição de escravizados da história do Brasil: o Levante dos Malês. A revolta, que visava derrubar o regime escravagista do império e encerrar a imposição da fé cristã, mobilizou centenas de negros escravizados e libertos, sobretudo africanos das etnias Yorubá e Hauçá, seguidores do islã.
Liderados por Pacífico Licutan, Manuel Calafate e Luís Sanim, os rebeldes invadiram a Câmara Municipal, tomaram os edifícios do Terreiro de Jesus e atacaram as guarnições militares, mas logo foram subjugados pelas tropas do império e submetidos a um massacre brutal.
Os líderes do levante foram fuzilados ou condenados a penas de até 1.200 açoites. Mais de 500 pessoas acusadas de apoiar a revolta foram condenadas ao degredo na África — incluindo muitos negros libertos nascidos no Brasil, que passaram a ser vistos com suspeição, como potenciais articuladores de novas revoltas.
Outros decidiram partir para a África voluntariamente, para fugir do ambiente hostil e da perseguição que se estabeleceu na Bahia após o levante. Em agosto de 1836, a primeira leva de deportados desembarcou em Acra, capital de Gana, na região chamada de “Costa do Ouro”.
A chegada a Gana
Embora boa parte dos deportados fossem africanos, a comunidade foi desde o início identificada como brasileira. Os africanos não formavam um grupo homogêneo, agregando pessoas de diversas etnias, línguas e crenças.
A história pregressa no Brasil, o contato com as tradições afro-brasileiras e a língua portuguesa eram os elementos que os uniam — e que se tornaram, consequentemente, os elementos definidores da identidade do grupo.
Os afro-brasileiros foram bem acolhidos pelo povo Ga — então o grupo étnico predominante na região de Acra. Kwaku Ankrah, o chefe regional dos Gas, determinou a distribuição de terras agricultáveis para os deportados, assegurou a liberdade de culto e garantiu que o grupo fosse posto sob proteção dos holandeses, que então ocupavam o Forte Crevecoeur.
O nome “Tabom”, atribuído ao grupo, deriva das primeiras interações com os habitantes locais. Como os novos moradores não falavam as língua nativa, eles frequentemente respondiam apenas “tá bom, tá bom” quando eram questionados sobre alguma coisa. A expressão era ouvida com tanta frequência que os Gas começaram a chamá-los de “povo Tabom”.
Inicialmente assentada na região de Jamestown, o distrito mais antigo de Acra, a comunidade Tabom se expandiu ao longo do século 19, com a chegada de novas levas de afro-brasileiros. A maioria veio por vontade própria — ex-escravizados que conquistaram a alforria e negros libertos, que buscavam na África a oportunidade de prosperar, negada pelo regime escravagista e racista que governava o Brasil.

Rei, rainha e corte dos Tabom
Moisés Nazário/Wikimedia Commons
As contribuições e o legado cultural
Os afro-brasileiros deram importantes contribuições para o desenvolvimento regional. Muitos Tabons tinham habilidades profissionais valorizadas e acabaram por desenvolver carreiras como alfaiates, carpinteiros, pedreiros, ferreiros, ourives, arquitetos, etc.
Ex-escravizados familiarizados com as técnicas empregadas nas lavouras do Brasil ajudaram a melhorar a produtividade da agricultura e introduziram novos cultivos, plantando manga, mandioca, feijão, etc. Outros ajudaram a solucionar o problema da falta de água, cavando poços e construindo sistemas de captação.
Os Tabons também se destacavam pelo domínio de técnicas alternativas de construção, erguendo edifícios de pedra que contrastavam com a arquitetura tradicional da região.
Os Tabons se firmaram como uma comunidade próspera durante o período da colonização inglesa e seus descendentes tornaram-se comerciantes, profissionais liberais, militares e burocratas. Mesmo sendo uma comunidade numericamente reduzida, os descendentes dos afro-brasileiros obtiveram destaque em diversas áreas.
Miguel Augustus Francisco Ribeiro, por exemplo, é um dos mais importantes diplomatas ganeses. Kankam da Costa ocupou o cargo de vice-ministro da Defesa. Tom Ribeiro se consolidou como um dos cineastas mais premiados do país. Kasula da Costa foi um destacado jogador de futebol na seleção nacional de Gana. E Azumah Nelson foi tricampeão mundial de boxe e recebeu o honroso epíteto de “o maior boxeador africano de todos os tempos”.
Integrados à população local, os Tabons abandonaram progressivamente o uso da língua portuguesa, mas a influência afro-brasileira se mantém bastante perceptível — desde as tradições religiosas e a culinária até os nomes das ruas.
Sobrenomes como Ribeiro, Lima, Moura, Vieira, Da Costa e Peregrino são comuns entre os Tabons. Comidas como a feijoada, o cozido, a cocada e o acarajé continuam sendo apreciadas e muitas músicas tradicionais ainda possuem trechos cantados em português.
A visita de Lula a Gana em 2005 — a primeira visita de um chefe de Estado brasileiro à nação africana — fomentou um movimento de valorização da herança afro-brasileira dos Tabons. Na ocasião, um sobrado de Acra construído no século 19 pelos primeiros afro-brasileiros foi reformado e transformado na “Casa Brasil”, um museu dedicado à história dos afro-brasileiros em Gana.
Lula foi recepcionado pela comunidade com uma grande festa e recebeu um “batakari” (bata de cor branca bordada à mão), uma estola kente e um par de sandálias — presentes tradicionalmente ofertados aos chefes do povo Tabom.
Outras comunidades afro-brasileiras
Os Tabons não são a única comunidade de afro-brasileiros na África. Estima-se que entre 3.000 e 8.000 pessoas deixaram o Brasil e se estabeleceram na África Ocidental ao longo do século 19, criando outras comunidades na Nigéria, no Benim e no Togo.
Os afro-brasileiros estabelecidos nessas regiões são chamados de “Agudás” ou “Amarôs”. Além de carregarem sobrenomes como Almeida, Rocha, Souza e Silva, os Agudás mantêm tradições como o culto a Nosso Senhor do Bonfim e as celebrações do Carnaval e do Bumba Meu Boi (onde é chamado de “Burrinha”).
A influência afro-brasileira também é visível na arquitetura. Em Benim, há exemplares de mesquitas inspiradas nas igrejas barrocas de Salvador. Em Lagos, capital da Nigéria, existe todo um “Bairro Brasileiro”, repleto de edificações históricas que evocam as construções do Brasil Colônia.
A exemplo dos Tabons, os afro-brasileiros também se integraram plenamente nas sociedades onde se estabeleceram ao longo da África Ocidental. No Togo, chegaram ao topo da hierarquia política. O afro-brasileiro Sylvanus Olympio, um dos líderes do movimento nacionalista togolês, tornou-se o primeiro presidente do Togo em 1961. Mas seu mandato foi curto: ele foi assassinado dois anos depois, vitimado por um golpe de Estado perpetrado com auxílio da França.























