O Exército contra os pracinhas: a outra luta da FEB
Vinculada à luta pelos princípios democráticos, soldados da Força Expedicionária Brasileira tidos como heróis contra o nazifascismo incomodavam o regime de Vargas
Há 80 anos, em 18 de julho de 1945, uma multidão saiu às ruas do Rio de Janeiro para celebrar o retorno dos soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) após o término da Segunda Guerra Mundial. Vitoriosos na luta contra o nazifascismo, os pracinhas foram saudados pelo povo como verdadeiros heróis.
A reverência dos populares contrastava fortemente com o tratamento que os combatentes receberam do governo brasileiro do oficialato das Forças Armadas. Vinculada à luta pelos princípios democráticos e com comunistas em suas fileiras, a FEB era vista com enorme desconfiança pelo regime de Vargas e causava incômodo à cúpula do Exército
A unidade foi dissolvida imediatamente após retornar ao Brasil e seus membros receberam certificados de dispensa quando ainda estavam na Europa. De volta à terra natal, os voluntários da FEB não obtiveram nenhum tipo de assistência governamental — e até os que estavam feridos e doentes foram largados à própria sorte.
A FEB
O Brasil foi a única nação latino-americana a enviar soldados sob sua própria bandeira para lutar contra as forças nazifascistas na Segunda Guerra Mundial. A princípio, o país, então sob governo de Getúlio Vargas, tentou manter a neutralidade no conflito, em consonância com o tradicional pragmatismo de sua política externa.
Após o ingresso dos Estados Unidos no conflito, o Brasil passou a ser pressionado a auxiliar as tropas aliadas. Em 1942, após autorizar o uso das bases aéreas do Nordeste pelas Forças Armadas dos Estados Unidos, o Brasil se tornou alvo de ataques retaliatórios, tendo seus navios torpedeados por submarinos alemães.
A entrada do Brasil na guerra também foi impulsionada pela forte pressão popular. Indignada com os ataques alemães, a população saiu às ruas em peso exigindo que Vargas declarasse guerra aos nazistas. Em agosto de 1943, cumprindo a promessa de envio de uma unidade militar para auxiliar os aliados na Europa, Vargas criou a Força Expedicionária Brasileira.
A FEB congregava mais de 25 mil soldados, ditos “pracinhas”. Eles eram jovens recrutados junto às classes populares, a grande maioria sem qualquer experiência militar prévia. Eram pedreiros, carpinteiros, operários de fábricas, trabalhadores rurais e até mesmo desempregados que enxergavam no alistamento uma oportunidade de mobilidade social ou estabilidade econômica.
Outros se voluntariaram para lutar por razões ideológicas — caso de militantes egressos de organizações nacionalistas ou vinculados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB).
A FEB desembarcou na Itália em julho de 1944. Mesmo diante das dificuldades logísticas, das condições adversas e da inexperiência em conflitos militares, os pracinhas se destacaram, triunfando sobre as forças nazistas em uma série de batalhas importantes, como Castelnuovo, Monte Castello, Montese e Fornovo di Taro.
A colaboração brasileira foi fundamental para romper a Linha Gótica e garantir o avanço aliado rumo ao norte da Península Itálica. Em Fornovo di Taro, a FEB realizou uma façanha inédita, tornando-se a única força aliada que conseguiu capturar integralmente uma divisão alemã durante a Campanha da Itália.
As tensões com o governo
Após retornarem ao Brasil, os pracinhas foram recepcionados com uma grande festa. O governo decretou feriado nacional para que a população pudesse prestigiar os eventos. Várias cidades organizaram atos cívicos, paradas e festejos populares.
No Rio de Janeiro, um grande desfile reuniu milhares de pessoas. Um palanque foi montado na Avenida Rio Branco, para abrigar o presidente Getúlio Vargas e outras autoridades. Ao longo do percurso, os combatentes foram saudados com aplausos e com uma chuva de papéis picados lançados pelos moradores dos prédios.
Os atos mascaravam uma realidade bem menos glamourosa. Após as celebrações pelo retorno, os pracinhas seriam tratados com absoluto desprezo e negligência pelo governo brasileiro e pela cúpula das Forças Armadas.
O governo Vargas e o oficialato consideravam que a FEB não era politicamente confiável. Como mencionado, parte dos soldados que lutaram pela FEB eram militantes do Partido Comunista ou simpatizantes do socialismo. Outros eram admiradores de Luiz Carlos Prestes e das lideranças egressas do tenentismo.
A FEB também abrigava muitos militares que defendiam a concepção de democracia liberal — um discurso que constrangia o establishment autoritário e ditatorial do Estado Novo. Um dos jornais de trincheira publicados pelos pracinhas trazia uma provocação a Vargas já na capa, estampando a frase “Não é registrado no DIP”, em referência ao órgão oficial de censura e controle da informação.
Ainda em 1945, um grupo de 200 oficiais da FEB produziu um manifesto afirmando que a luta contra o nazifascismo na Europa era contraditória diante da persistência de um regime autoritário no Brasil. A iniciativa enfureceu Eurico Gaspar Dutra, então Ministro da Guerra do gabinete de Vargas.

Pracinhas da FEB desfilam na avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, após regressarem da Itália
Memorial da Democracia
O mal estar na caserna
Além de questionarem o regime antidemocrático e sofrerem críticas dos setores anticomunistas, os pracinhas também desagradavam a elite militar por outros motivos.
O alto comando das Forças Armadas, tradicionalmente muito elitizado, se ressentia do fato de que soldados de baixa patente, a grande maioria proveniente das classes populares, fossem tratados como heróis pela população.
Temendo os riscos no campo de batalha, os oficiais oriundos de famílias ricas e influentes articularam meios de evitar que fossem enviados para a guerra. A convocação de expedicionários sem qualquer experiência militar prévia foi motivo de chacota.
Quando os pracinhas retornaram, vitoriosos e cobertos de glória, os oficiais não conseguiam esconder o preconceito, a inveja e o incômodo. Eles também ficaram preocupados com a possibilidade de serem preteridos em favor dos combatentes da FEB nas promoções e indicações da carreira militar.
Os febianos profissionais que seguiram vinculados ao Exército foram tratados com hostilidade pelos oficiais dentro dos quartéis. Eram submetidos a boicotes e frequentemente transferidos para guarnições longínquas, em regiões isoladas
O fim da FEB
Após a vitória na Segunda Guerra Mundial, quase todas as nações aliadas criaram programas de reintegração e apoio aos veteranos. A União Soviética, por exemplo, criou pensões e programas de requalificação profissional. Os Estados Unidos aprovaram a “G.I. Bill of Rights”, uma legislação que concedia aos ex-combatentes o direito a frequentar o ensino superior gratuito, receber assistência médica e acessar linhas de crédito.
O Brasil foi uma exceção. Em 6 de julho de 1945, no mesmo período em que os pracinhas começaram a voltar para o Brasil, o governo Vargas ordenou a dissolução da FEB. Paradoxalmente, em vez de se tornar uma divisão de referência para o treinamento das tropas, a unidade mais experiente do país, partícipe do maior conflito militar da história, foi extinta.
Os combatentes da FEB que eram militares profissionais foram reintegrados ao exército, mas os voluntários civis receberam seus certificados de dispensa quando ainda estavam na Europa. Eles ganharam apenas a passagem de volta para suas cidades de origem, sendo mandados embora sem nenhum tipo de benefício ou auxílio do governo. Não foram sequer submetidos a exames médicos.
Centenas de pracinhas que voltaram mutilados, feridos, doentes, sofrendo de traumas psicológicos, sem condições físicas de exercer qualquer tipo de trabalho, foram largados à própria sorte. Não foram poucos os casos de ex-combatentes que passaram a viver nas ruas.
Os soldados profissionais reintegrados após a dissolução da FEB foram proibidos pelo alto comando de fazerem declarações políticas ou concederem entrevistas sem autorização prévia do Ministério da Guerra.
A fim de reivindicar seus direitos, os veteranos da FEB criaram várias associações, mas essas organizações também seriam boicotadas e perseguidas pelas autoridades brasileiras — sobretudo em função da forte presença de militantes comunistas em seus quadros. Isso ocorreu, por exemplo, com Sampaio de Lacerda, militante comunista que presidia o Conselho Nacional da AECB (Associações de Ex-Combatentes do Brasil), destituído em uma ação coordenada pelo Ministério da Guerra.
O Exército levou mais de uma década para erguer os primeiros monumentos em homenagem aos soldados da FEB que tombaram na luta contra o regime nazista. Preferiam reservar à glória dos bustos apenas os militares oriundos das tradicionais elites brasileiras.























