O centenário do Caso Scopes e o fundamentalismo nosso de cada dia
Há 100 anos, tinha início nos EUA julgamento de caso que se tornou símbolo do embate entre pensamento científico moderno e fundamentalismo religioso
Há 100 anos, em 10 de julho de 1925, tinha início nos Estados Unidos o Julgamento de Scopes — um célebre caso jurídico que se tornou um símbolo do embate entre o pensamento científico moderno e o fundamentalismo religioso.
John Scopes, um jovem professor de biologia do Tennessee, foi acusado de violar a legislação estadual que proibia o ensino de qualquer teoria que negasse a história da criação divina do ser humano conforme descrito na Bíblia.
O julgamento atraiu atenção nacional e se tornou um verdadeiro espetáculo midiático. A despeito da condenação de Scopes, o processo expôs ao ridículo o fundamentalismo cristão e desmoralizou seus ideólogos.
O movimento fundamentalista chegou em entrar retração nos anos seguintes, mas logo começou a se reestruturar e articular sua expansão, principalmente no sul dos Estados Unidos, onde se consolidaria como uma das bases centrais para o projeto político da extrema-direita.
O Caso Scopes
Na primavera de 1925, o município de Dayton recebeu uma visita ilustre. Em maio daquele ano, na pequena cidade a 500 km de Nashville (Tennessee), chegara William Jennings Bryan. Destacado político do Partido Democrata, Bryan fora secretário de Estado entre 1913 e 1915, durante o governo Woodrow Wilson (1913-1921). Antes, por três eleições, disputara a Presidência por seu partido. Não foram, no entanto, essas as credenciais que o levaram a Dayton. Bryan havia se deslocado à cidade para ser um dos protagonistas do Caso Scopes.
Aprovada pelo Legislativo do Tennessee em março de 1925, a Lei Butler tornava o ensino da teoria evolucionista uma contravenção e, consequentemente, tornava o criacionismo obrigatório. Em maio, o professor de biologia John Scopes recusou-se a cumprir a lei, foi preso e levado a julgamento por insistir em ensinar a teoria da evolução. Em julho, a pequena Dayton virou o centro da contenda entre o pensamento científico e o pensamento mitológico.
Experiente advogado e excelente orador, o presbiteriano Bryan se oferecera para conduzir a acusação contra Scopes. Do outro lado, o renomado advogado Clarence Darrow assumiu a defesa de Scopes. Jornais e emissoras das grandes cidades, especialmente do Nordeste estadunidense, enviaram correspondentes para o que descreviam ser, quiçá, o mais bizarro dos julgamentos. Assim, Dayton se tornava palco do primeiro julgamento midiático dos Estados Unidos.
O julgamento ocorreu entre os dias 10 e 21 de julho e foi controverso e pitoresco – e não apenas pela matéria em si. A cidade e o tribunal não possuíam condições para receber um evento de tamanha magnitude: algumas sessões tiveram que ser na praça – algumas fontes atribuem ao calor, outras ao risco de o assoalho desabar, de qualquer forma, havia muito mais gente do que o edifício comportava.
Não para por aí. Vários cientistas, arrolados por Darrow como testemunhas, não puderam depor. Entre elas, Maynard Metcalf, zoólogo da Universidade Johns Hopkins e especialista em evolução; e Wilbur Nelson, geólogo do estado do Tennessee. O juiz John T. Raulston aceitou as alegações da acusação de que o julgamento não era sobre se o Gênesis ou “A origem das espécies” estava certo, e sim se o professor Scopes havia ou não infringido a Lei Butler.
Darrow, então, decidiu por uma estratégia inusitada: convocar como testemunha Bryan, o advogado de acusação. A isso seguiu-se um sistemático e humilhante interrogatório. Entre diversos questionamentos inusitados, Bryan foi incapaz de sustentar que a Terra tivesse apenas 6 mil anos; tampouco pôde explicar de onde teria vindo a esposa de Caim.
Não adiantou. Scopes foi condenado, mas logo posto em liberdade mediante pagamento da simbólica fiança com qual a American Civil Liberties Union fez questão arcar.
Por outro lado, para os fundamentalistas, o Caso Scopes foi uma vitória de Pirro. Bryan entrou em profunda depressão e morreu em Dayton no dia 26 de julho, cinco dias após o fim do julgamento. A notoriedade que o fundamentalismo ganhou veio acompanhado de ridicularização e alerta. Como consequência, a vitória no julgamento foi seguida de meio século de recolhimento.
O fundamentalismo antes do Caso Scopes
O fundamentalismo cristão é um movimento político-religioso sectário, autoritário, reacionário e com matiz teocrático. Defende que a sociedade esteja organizada segundo seus valores religiosos, que passam por uma leitura pré-moderna da Bíblia. Em linhas gerais, a doutrina possui os seguintes pilares: a inerrância da Bíblia, concepção e nascimento virginal de Cristo, a expiação vicária de Jesus Cristo, a ressureição de Cristo e a historicidade dos milagres. Seu projeto final é uma teocracia cristã universal.
Sua gênese combina aspectos religiosos, políticos, econômicos e sociais. Ao longo da segunda metade do século 19, diversas descobertas científicas impactaram significativamente a humanidade e derrubaram pilares das cosmologias das três religiões monoteístas. Além disso, Europa Central e Ocidental viviam processos acelerados de industrialização e urbanização, que acabaram sendo associados à laicização.
Nos Estados Unidos, porém, houve maior resistência à secularização. As principais lideranças das principais denominações lançaram o protestantismo liberal. Esses teólogos aceitavam as novidades científicas e propunham que a Bíblia fosse interpretada como uma alegoria. Além disso, reforçavam a distinção entre religião e política, entre as dimensões privada e pública da vida.
Tais termos não foram, no entanto, bem aceitos pelos setores mais conservadores, indignados com a leitura alegórica das Escrituras e com a perda de influência das igrejas na organização da sociedade. Esses setores defendem a leitura literal da Bíblia. Acreditam que ali há verdades factuais. Sobretudo, creem que as mazelas sociais decorrem do fato de que a sociedade não mais se organiza segundo a concepção do cristianismo.
William Jennings Bryan sendo interrogado por Clarence Darrow durante o Julgamento de Scopes
Fotografia de Watson Davis, 1925 Smithsonian Institution/Wikimedia Commons
Por último, mas não menos importante, o fundamentalismo tem raízes na escatologia. Um de seus pilares é que o caos social que vivemos é o prelúdio do Juízo Final, que por sua vez antecederá o retorno de Jesus. Segundo essa leitura, o distanciamento da humanidade em relação à vontade de Deus nos levará a uma desgraça tal que apenas uma intervenção divina será capaz de corrigir. Quando os hereges forem derrotados, os “verdadeiros cristãos” poderão erigir uma nova ordem capaz de receber Cristo, que construirá seu reinado.
Entre 1875 e 1910, o movimento que daria origem ao fundamentalismo se estruturou. Entre 1875 e 1897, os teólogos dessa corrente realizaram as Conferências Bíblicas do Niágara (Nova Iorque). Dominaram alguns importantes centros de formação, como o presbiteriano Seminário Teológico de Princeton (Nova Jersey). Constituíram suas próprias escolas, como interdenominacional Moody Bible Institute (Chicago, 1886) e o batista Bible Institute of Los Angeles (Biola) (1907). O Biola foi criado pelos irmãos Lyman e Milton Stewart, magnatas do petróleo e presbiterianos. A condução acadêmica ficou a cargo do teólogo batista Amzi Dixon.
Dixon convidou Reuben Torrey (congregacionalista) e Louis Mayer (presbiteriano) para que os três organizassem a coleção que daria nome e projeção internacional ao movimento. Entre 1910 e 1915, eles editaram The Fundamentals: A Testimony To The Truth (Os fundamentos: um testemunho da verdade), obra com 12 volumes e 91 artigos. Foram impressas milhões de cópias de cada um dos volumes, que foram enviadas a seminários, igrejas e Associações Cristãs de Moços (ACMs), nos Estados Unidos e no Mundo.
Assim, os fundamentalistas lançaram um desafio aos teólogos liberais e à sociedade secular. Uma das frentes abertas com o desafio era proscrever o ensinamento da teoria da evolução das escolas públicas. Foi essa cruzada que gerou a lei Butler, cuja infração por parte de um professor de ensino secundário levou ao julgamento que opôs ciência e religião.
O fundamentalismo após o Caso Scopes
Após o Caso Scopes, a história do fundamentalismo pode ser dividida em duas fases. De 25 ao final dos 70, houve um recolhimento e uma reorganização. Alguns fundamentalistas criaram suas próprias igrejas. Outros continuaram nas denominações tradicionais, disputando seu controle e lutando contra a carismatização delas. Não lograram êxito em nenhuma dessas frentes. As igrejas tipicamente fundamentalistas nunca tiveram grande importância. As direções das principais denominações continuaram sob hegemonia da teologia liberal. Finalmente, o número de pentecostais ou carismáticos dentro das igrejas tradicionais crescia numa velocidade que nem os fundamentalistas nem os conservadores não fundamentalistas conseguiam impedir.
A despeito dessas derrotas visíveis, nos bastidores, os fundamentalistas estabeleceram os pilares da ofensiva global que seria lançada no final dos anos 70, e cujos impactos sofremos até hoje. Essa preparação foi um trabalho de pinça, articulando trabalho de base e costuras por cima.
Os fundamentalistas se infiltraram pelo país abrindo escolas dominicais e seminários e controlando igrejas pequenas. Sobretudo, a Bob Jones University, criada em 27, tornou-se o grande celeiro de docentes fundamentalistas. Com as centenas de professores formados todos os anos pela BJU, o fundamentalismo foi se arraigando especialmente pelo Sul.
Nesse período também foi sacramentada a relação com o sionismo. Desde o final do século 19, já havia alguma proximidade entre o fundamentalismo e o sionismo. Contudo, a criação do Estado de Israel foi interpretada com o mais concreto dos sinais da aproximação da vinda de Cristo, afinal, segundo a escatologia que está nas bases do fundamentalismo, o retorno dos judeus à Jerusalém é uma etapa da construção do novo reino de Deus.
Nesse período também se firmou a associação entre os fundamentalistas e a direita secular. Novamente, não foi nessa fase que foram lançados os primeiros gestos. Desde sua origem, os fundamentalistas eram de direita, se colocando contra a luta sindical, contra o Evangelho Social – corrente que denunciava as mazelas sociais advindas da sociedade urbano-industrial – e, sobretudo, contra o comunismo. Também não era nova a aliança entre o fundamentalismo e o grande capital, haja vista que “Os fundamentos” foram custeados por magnatas do petróleo. Entretanto, no pós-Segunda Guerra, essa aliança mudou de patamar.
Já nos anos 50, entre os aparelhos de guerra ideológica lançados para fazer a Guerra Fria Cultural, foram criadas duas instituições nas quais os fundamentalistas eram centrais. Em 1951, foi criada a Associação de Homens de Negócio do Evangelho Pleno, cuja função era articular empresários e gestores em torno de um projeto global de evangelização. Em 1954, foi criada a Foundation for Religious Action in the Social and Civil Order (Frasco). A Frasco era um era um esforço que articulava evangélicos, católicos e judeus e que combinava propaganda religiosa e anticomunista. Além de grandes lideranças fundamentalistas, contava com executivos do primeiro escalão do governo e de grandes empresas.
A partir dos anos 60, uma série de questões sociais serviram de pretexto para mobilizar os fundamentalistas e acabaram lhes dando visibilidade. Não deixa de ser curioso que apenas uma dessas questões, justamente a primeira, tocava direta e abertamente em aspectos religiosos. Em 63, a Suprema Corte entendeu que a leitura da Bíblia nas escolas públicas era inconstitucional. Em 64, a Lei dos Direitos Civis proibiu a segregação em espaços públicos. Em 72, a Emenda dos Direitos Iguais proibiu a discriminação em função do sexo. Em 73, a Suprema Corte decidiu pela legalidade do aborto. Em 78, o governo anunciou que iria cortar o repasse às instituições de ensino particulares que não tivessem cota para negros.
O potencial aglutinador e mobilizador que busca pelo controle sobre os corpos femininos e pela submissão das mulheres é amplamente conhecido. No entanto, foi a combinação da primeira lei citada com as duas iniciativas antirracistas que acabou por precipitar a ira dos fundamentalistas e evidenciar, para eles e para a direita secular, seu poder político e social.
Com a proibição da leitura de Bíblia nas escolas públicas, as escolas fundamentalistas passaram a ser a única opção para esse segmento. O fim da segregação transformou essas escolas em alternativa para os conservadores não fundamentalistas. Quando o governo anunciou sua intenção de cortar o repasse às instituições particulares que não tivessem cotas raciais, ameaçou destruir esse universo particular baseado no racismo e no fundamentalismo.
Com as mobilizações contra as medidas anteriores, os fundamentalistas acumularam força. Agora, porém, sua demonstração foi tão poderosa que o governo recuou e desistiu da medida.
Algumas lideranças da direita secular, que consideravam que o governo Reagan não era suficientemente à direita quanto gostariam, perceberam que para imprimir as transformações políticas, sociais e econômicas desejadas era imprescindível selar uma aliança com os fundamentalistas.
A partir dos anos 80, a agenda fundamentalista foi um dos principais pilares do neoconservadorismo, que, por seu turno, era o sócio minoritário da contrarrevolução neoliberal. Assim, o avanço da agenda de desmonte dos serviços públicos e da segurança laboral foi acompanhado de perto pelo enraizamento das teses fundamentalistas.
Quando veio a crise de 2008, o capital decidiu dobrar a aposta nas duas frentes. Hoje, o fundamentalismo é um dos pilares evidentes da extrema direita. Cem anos depois do Caso Scopes, o fundamentalismo é um dos principais instrumentos usados pelo capital, que para viabilizar o aprofundamento das medidas neoliberais não se importa em alimentar ambições teocráticas.























