Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Há 151 anos, em 31 de outubro de 1874, tinha início a Revolta do Quebra-Quilos, um dos principais levantes populares ocorridos no Nordeste do Brasil durante o Segundo Reinado.

A revolta surgiu em função do descontentamento da população com a adoção do sistema métrico decimal, que foi imposto através de multas, taxas, cobranças e prisões.

Acreditando que o novo sistema fora criado para facilitar fraudes e explorar a população, os rebeldes invadiram feiras e mercados para destruir as balanças. Depois, passaram a atacar as prefeituras e Câmaras Municipais e a invadir as cadeias para libertar os prisioneiros.

O movimento se estendeu por meses e se espalhou por dezenas de cidades da Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Alagoas e Piauí. Em 1876, os levantes chegaram a Minas Gerais.

Movimento surgiu após a população se mostrar aborrecida com a adoção do sistema métrico decimal exigido em multas, taxas, cobranças e prisões

A adoção do sistema métrico

O reinado de Dom Pedro II foi caracterizado por múltiplas tentativas de implementar um processo de modernização conservadora. O governo imperial ansiava por ver país na órbita das “nações avançadas” da Europa, mas, ao mesmo tempo, pretendia manter inalteradas as estruturas sociais e políticas herdadas do período colonial.

Assim, o Brasil seria um dos primeiros países do continente a construir ferrovias e redes de telégrafos, mas também seria o último a abolir a escravidão. Dentre os projetos que compunham o arcabouço da “modernização conservadora” do Império estava a adoção do sistema métrico decimal — um sistema de medidas que havia surgido na Revolução Francesa e que, aos poucos, se espalhava pelo mundo.

A ideia de um padrão de medidas universal era uma reivindicação antiga que visava facilitar a integração do comércio, a produção da indústria e até a realização de pesquisas científicas. A sua implementação, no entanto, foi bastante atribulada em todo o mundo. Em muitos locais, a imposição do sistema francês era interpretada como um apagamento das tradições nacionais.

Houve também muita resistência e desconfiança dos camponeses e pequenos comerciantes, tanto pelo apego às tradições quanto pela crença de que a medida visava, de alguma forma, prejudicá-los. Países como México e Colômbia registraram violentos levantes populares contra a adoção do novo sistema de medidas. E, ainda hoje, há três nações que seguem se recusando a adotar o padrão métrico internacional: Estados Unidos, Libéria e Mianmar.

No Brasil, a rejeição ao sistema decimal foi particularmente forte no Nordeste, refletindo o contexto de crise que a região atravessava. A economia regional, centrada na cana-de-açúcar, no algodão e na pecuária, vivia um momento de declínio e a pobreza estava em ascensão.

Com o fim da Guerra de Secessão nos Estados Unidos, houve a retomada da produção de algodão nos estados do Sul, diminuindo a demanda pelas exportações do Nordeste. O cultivo da cana-de-açúcar enfrentava a crescente concorrência das ilhas do Caribe, enquanto a pecuária extensiva sofria com a falta de pastos durante as secas periódicas. As estiagens de 1872 e 1873 haviam dizimado rebanhos e forçado os camponeses a migrarem para as vilas em busca de trabalho.

As queixas do povo

A lei que estabelecia o uso do sistema métrico francês no Brasil foi sancionada em 1862, prevendo um prazo de dez anos para a adaptação. O governo determinou a criação de cursos sobre o sistema decimal nas escolas de instrução primária e editou livros e panfletos sobre o assunto, mas havia uma barreira intransponível para a difusão dessas informações: 82% da população brasileira era analfabeta. A maioria das cidades não possuía sequer escolas de ensino básico.

Quando o novo sistema entrou em vigor em setembro de 1872, a população foi pega de surpresa. Acostumados durante a vida inteira a usar medidas como o palmo, a braça, a légua, o grão, o quartilho e a onça, os populares agora eram forçados a adotar o uso do centímetro, do metro, do litro, do grama e do quilograma. A adesão era obrigatória. Quem se recusasse a utilizar o novo sistema poderia ser punido com multa ou até prisão.

A imposição das novas medidas causou enorme descontentamento popular. O sistema decimal, além de parecer confuso para quem não o conhecia, foi interpretado como uma tentativa do governo de enganar a população e facilitar esquemas fraudulentos. Nas feiras e nos mercados, o cenário era de brigas e desentendimentos.

Camponeses, comerciantes e fregueses acreditavam que estavam sendo prejudicados pelas novas medidas. Pensavam que a conversão de preços não acompanhava a mudança no volume dos produtos comercializados. Muitos achavam que as balanças poderiam estar adulteradas. Multiplicavam-se as denúncias de corrupção contra fiscais e agentes de coletoria, acusados de manipular registros e marcações.

Além da desconfiança, a população se queixava do ônus gerado pela decisão. Com o novo sistema, os comerciantes eram obrigados a comprar ou alugar novas balanças, pesos e vasilhas de medidas certificadas. Esse custo foi repassado aos fregueses, resultando no encarecimento dos produtos.

A criação de novos impostos completava o quadro. O governo imperial havia autorizado a instituição do “imposto de chão”, cobrado dos feirantes que expunham seus produtos no chão da feira. As províncias aproveitaram a ocasião para impor novas taxas incidindo sobre o funcionamento de matadouros, o comércio de gado, a fabricação de rapadura, o uso de bancas nas feiras, etc.

O povo se recusava a usar o novo sistema e as multas e prisões corriam soltas. Em vários vilarejos do interior nordestino, as cadeias estavam lotadas de pessoas presas por dívidas fiscais. Lavradores, pequenos comerciantes, artesãos e até setores da elite local estavam fartos dos abusos.

A Revolta do Quebra-Quilos

A insatisfação generalizada desencadeou uma revolta popular. A insurreição teve início em Fagundes, um povoado nos arredores de Campina Grande, no Agreste paraibano. No dia 31 de outubro de 1874, um grupo de revoltosos invadiu a feira da cidade e começou a quebrar as balanças e a inutilizar os pesos e recipientes de medidas.

Os protestos em Campina Grande continuaram nos dias seguintes e chegaram a um novo patamar em 14 de novembro de 1874, quando um negro livre chamado João Vieira da Silva, o João Carga d’Água, conclamou os populares à rebelião. A polícia foi chamada para debelar a manifestação e João incitou o povo à resistência, jogando tijolos de rapadura contra os policiais.

A ação foi descrita por Geraldo Irinêo Joffily no livro “O quebra-quilo. A revolta dos matutos contra os doutores”: “Os feirantes procuraram abrigo por trás dos garajaus de rapadura. Foi aí que o negro João Carga d’Água, muito conhecido de todos, jogou o primeiro tijolo de rapadura contra os da polícia, sendo imitado por muitos, já que milhares de rapaduras de mais de meio quilo estavam empilhadas sobre esteiras no pátio da feira; um rebolo de rapadura acertou em cheio a cabeça do delegado, que ficou desacordado por muito tempo, enquanto os soldados eram surrados pelas mulheres”.

Logo, uma multidão participava do protesto. As balanças foram partidas a machadadas e os pesos de ferro foram jogados em um açude da cidade. O levante não se limitou à feira. Comandados por Manuel de Barros Souza e Alexandre Viveiros, colunas de populares avançaram até a cadeia da cidade, onde libertaram todos os presos. Depois, incendiaram o cartório local, depredaram os prédios do governo e destruíram os arquivos da prefeitura.

Nas portas dos prédios públicos, os insurgentes colaram cópias de um “Manifesto da Sedição do Quebra-Quilos”: “É preciso um dilúvio de sangue para que desapareçam eternamente desta terra os ladrões”, asseverava o documento. Cançonetas e cordéis foram criados para exortar o povo à mobilização. “O quilo é roubo! Quem pesa com quilo rouba o povo”, repetiam aos gritos os manifestantes.

A notícia do levante viajou a galope e inspirou ações análogas nas cidades vizinhas. Revoltas eclodiram por toda a província da Paraíba: Ingá, Cabaceiras, Pilar, Areia, Alagoa Grande, Alagoa Nova, Bananeiras, São João do Cariri. Por toda parte, os rebeldes atacavam feiras e mercados, invadiam os prédios públicos e destruíam os arquivos e documentos.

A Revolta do Quebra-Quilos se estendeu por meses e ultrapassou as divisas paraibanas, se expandindo para as províncias de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Alagoas e Piauí. Mais de 70 cidades registraram rebeliões populares. No ano seguinte, o levante chegou ao norte de Minas Gerais, onde vários vilarejos também se insurgiram.

Preocupadas com a crescente agitação social, as elites locais demandaram uma rígida resposta do governo. Na imprensa, os rebeldes eram tratados como “matutos fanáticos e ignorantes” que ameaçavam a paz e a segurança pública.

Membros do 89º 89º Batalhão de Comando, a unidade responsável pelo Massacre de Al-Dawayima
wikimedia

A repressão

A reação do governo imperial foi violenta. Tropas numerosas, armadas com fuzis e canhões, foram despachadas até os povoados rebelados para esmagar o movimento. Na Paraíba, as operações ficaram a cargo do coronel Severiano da Fonseca, irmão do marechal Deodoro da Fonseca, o futuro proclamador da República.

A repressão desatou atos de punição coletiva, resultando no assassinato não apenas dos rebeldes, mas até de pessoas que eram apontadas como meros simpatizantes da causa. Seguiram-se as prisões em massa, com centenas de pessoas enviadas acorrentadas para o Rio de Janeiro.

O capitão José Longuinho da Costa Leite ficaria conhecido por submeter os insurgentes a torturas cruéis. Ele foi o inventor dos chamados “coletes de ouro”. Faixas de couro cru eram costuradas ao redor do corpo dos prisioneiros, após ficarem mergulhadas em água por horas. Quando secavam, as faixas encolhiam e iam comprimindo o tórax das vítimas, causando asfixia, dores lancinantes e, em muitos casos, uma morte lenta e agoniante.

Um decreto imperial assinado em setembro de 1875 concedeu anistia aos envolvidos na Revolta dos Quebra-Quilos, permitindo a libertação dos sobreviventes. Apesar da brutalidade da repressão, a população seguiu se recusando a usar as novas medidas.

Foi somente a partir da Era Vargas que o processo de transição para o sistema métrico decimal começou a se consolidar, em resposta às exigências da industrialização. Ainda assim, em muitas localidades do Brasil, medidas como “palmo”, “légua” e “braça” seguem em uso informal até hoje.