Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Há 14 anos, em 20 de outubro de 2011, Muammar Kadafi, chefe de Estado e de governo da Líbia, era capturado e assassinado por grupos paramilitares apoiados pelas potências ocidentais. Kadafi governava a Líbia desde 1969. Ele foi o líder da Revolução de Primeiro de Setembro, que resultou na queda do regime monárquico e na deposição da dinastia Senussi.

Inspirado no nacionalismo árabe e nas ideias socialistas, Kadafi formulou a Terceira Teoria Universal, apresentando-a como uma alternativa ao capitalismo e ao socialismo soviético. Ele promoveu reformas políticas e econômicas abrangentes que transformaram a Líbia no país com os indicadores sociais mais avançados do continente africano.

A postura anti-imperialista e as medidas econômicas implementadas pelo governo líbio fizeram com que Kadafi se tornasse um alvo das potências ocidentais. O governo dos Estados Unidos conduziu campanhas de bombardeios e acusou falsamente o país de estar produzindo armas de destruição em massa.

A repressão aos protestos da Primavera Árabe serviram de pretexto para a intervenção estrangeira em 2011. A campanha para derrubar Kadafi trouxe consequências desastrosas para a Líbia. O país foi devastado pela guerra, assistiu ao colapso de suas instituições e mergulhou em uma violenta luta de facções que segue fazendo vítimas até hoje.

Da Juventude à Revolução de Primeiro de Setembro

Nascido em 7 de junho de 1942 na aldeia de Abu Hadi, no norte da Líbia, Kadafi descendia de uma família de berberes beduínos dedicados ao pastoreio de camelos, muitos dos quais ex-integrantes do movimento anticolonial fundado por Omar Al-Mukhtar.

Tornou-se um nacionalista de tendências socialistas ainda na juventude, durante seus estudos em Saba, interessando-se igualmente pelas ideias do líder egípcio Gamal Abdel Nasser. Em 1956, ajudou a formar uma organização estudantil em Saba e convocou atos contra as agressões militares de Israel.

Em 1961, após organizar uma série de manifestações contra a monarquia e em apoio à Guerra de Independência Argelina, Kadafi foi preso e expulso de Saba. Mudou-se então para Misurata, onde concluiu os estudos secundários. Ingressou em seguida na Academia Militar de Bengazi, vislumbrando a possiblidade de articular um movimento revolucionário dentro das Forças Armadas.

Em 1964, Kadafi fundou o Movimento dos Oficiais Livres, que se organizou em um sistema de células clandestinas e logrou atrair o apoio de um grande número de militares nacionalistas. Cinco anos depois, em 1969, Kadafi liderou uma insurreição militar, ocupando quartéis e edifícios públicos.

Intitulado “Revolução de Setembro”, o levante contou com apoio expressivo da população, descontente com a crise econômica, os problemas sociais, as práticas clientelistas e a subserviência da monarquia líbia às potências ocidentais. O rei Idris I era visto como pró-sionista e conivente com a exploração da riqueza petrolífera do país por empresas dos Estados Unidos e da Europa, o que já havia suscitado uma série de motins ao longo dos anos 60.

As reformas políticas e sociais

Após a deposição dos Senussi, Kadafi, então presidente do Conselho de Comando Revolucionário, proclamou a República Árabe da Líbia e assumiu a chefia do governo. Instituiu então um sistema político inspirado nas ideias do socialismo islâmico, conservando a iniciativa privada, mas estatizando os ativos de propriedade estrangeira e setores estratégicos da economia. Toda a cadeia petrolífera foi nacionalizada e multinacionais como a British Petroleum tiveram seus bens expropriados.

Kadafi utilizou as receitas provenientes do petróleo para criar a mais abrangente rede de proteção social do continente africano. O governo líbio dobrou o salário-mínimo, introduziu o controle de preços, passou a garantir moradia gratuita para todos os habitantes, universalizou os sistemas de saúde e educação e criou programas abrangentes de distribuição de renda e segurança alimentar. Também foram abolidas as restrições sociais impostas às mulheres e instituída a igualdade formal de gênero e a paridade salarial.

Aliadas aos índices expressivos de crescimento econômico, as reformas tiveram um profundo impacto no desenvolvimento social da Líbia. Em menos de uma década a oferta de médicos foi quadruplicada e o déficit de moradias foi substancialmente diminuído. A malária foi erradicada e as camadas mais pobres da sociedade foram incorporadas ao sistema educacional.

A Líbia passou a ostentar o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da África e se tornou o país com a menor dívida pública do mundo. Também registrou um significativo aumento da participação das mulheres na vida pública e aprovou uma das legislações antirracistas mais avançadas do continente africano.

Ao mesmo tempo em que promovia a expansão da rede de proteção social, o governo líbio impôs preceitos morais islâmicos baseados na sharia, banindo, por exemplo, o consumo de bebida alcóolica, boates e jogos de azar. Kadafi também implementou algumas medidas autoritárias, banindo os sindicatos independentes e limitando o direito de greve.

No campo da política externa, a Líbia se destacou pela denúncia do imperialismo e pelas ações em prol da união das nações árabes. O governo Kadafi decretou o monopólio estatal do comércio exterior, ordenou o fechamento de todas as bases militares dos Estados Unidos e do Reino Unido e articulou a oposição dos países árabes à OTAN.

Kadafi também se aproximou dos países socialistas e passou a financiar organizações antissionistas e revolucionárias em todo o mundo — incluindo os movimentos de combate ao apartheid, a Frente Sandinista de Libertação Nacional, a Frente Popular para a Libertação da Palestina e o Partido dos Panteras Negras.

: Muammar Kadafi em 1970.
                 Fotografia de Stevan Kragujevic Wikimedia Commons

Terceira Teoria Universal e atritos com ocidente

Em 1973, Kadafi lançou a “Revolução Popular”, com o fim de expurgar a influência contrarrevolucionária e aprofundar as reformas em curso no país. Foram instalados os Congressos Populares de Base, um sistema de democracia direta e autogestão, onde o povo tomava decisões autônomas em nível regional, sem a intermediação do governo.

Esse sistema de participação popular era alicerçado pela chamada “Terceira Teoria Universal” — doutrina política cunhada por Kadafi que previa uma alternativa ao capitalismo e ao socialismo soviético, formulada a partir da junção de princípios do socialismo islâmico, do titoísmo, do pan-africanismo e do pan-arabismo. Os fundamentos da teoria foram detalhados e explicados em seu “Livro Verde”, publicado em 1975.

A “Terceira Teoria Universal” serviu de base para a implementação da “Jamahiriya”, ou “Estado de Massas”, proclamado em 1977. O período foi marcado pelo aprofundamento das reformas de inspiração socialista, com comitês populares assumindo o controle das empresas, aumento das restrições à iniciativa privada e programas mais abrangentes de desapropriação e redistribuição da riqueza.

Kadafi também iniciou as obras do Grande Rio Artificial — maior projeto de irrigação do mundo, constituído por uma rede de tubagens que retira água dos aquíferos do deserto do Saara.

Incomodado com as reformas políticas e com as nacionalizações levadas a cabo por Kadafi, o governo dos Estados Unidos incluiu a Líbia em sua lista de “patrocinadores do terrorismo internacional”, aplicando uma série de sanções econômicas contra o país, sendo imitado por seus aliados europeus.

Em 1982, Ronald Reagan impôs o embargo ao petróleo líbio e agiu para isolar o país diplomaticamente, convencendo nove nações africanas a romperem relações com Trípoli. Em 1986, após conduzir uma série de provocações militares no Golfo de Sidra, os Estados Unidos responsabilizaram a Líbia pelo atentado à discoteca de Berlim e iniciaram uma campanha de bombardeios contra o país, em conjunto com Reino Unido e Israel.

Visando atenuar os efeitos devastadores das sanções internacionais, Kadafi flexibilizou as restrições à atuação do setor privado. Em 1991, entretanto, a ONU ampliou ainda mais as sanções contra a Líbia, após Kadafi se negar a extraditar dois cidadãos líbios acusados de envolvimento no atentado de Lockerbie.

Na década seguinte, Kadafi tentou superar o isolamento econômico do país ampliando os vínculos diplomáticos com a África e países do Sul Global. Mesmo negando envolvimento no atentado de Lockerbie, o governo líbio concordou em indenizar as famílias das vítimas. Também abandonou o programa de armas nucleares, numa tentativa de convencer as potências ocidentais a levantarem as sanções.

O país conseguiu reverter as restrições mais prejudiciais, mas seguiu sendo ameaçado de invasão por George W. Bush, que alegou que Kadafi estaria fabricando armas de destruição em massa. Kadafi respondeu às acusações convidando inspetores da ONU a visitarem as instalações militares do país.

Captura e assassinato

O mandatário líbio voltou a irritar o Ocidente quando anunciou a intenção de articular a criação do “dinar de ouro” — uma nova moeda internacional que seria utilizada nas transações internacionais entre os países produtores de petróleo da África e do Oriente Médio, abolindo o uso de petrodólares na região.

Pouco tempo depois, em fevereiro de 2011, seu governo virou alvo da “Primavera Árabe”, testemunhando a eclosão de uma grande onda protestos violentos exigindo sua deposição. Em paralelo aos protestos, a mídia ocidental iniciou uma intensa campanha de vilificação, retratando Kadafi como um ditador brutal, excêntrico e pervertido.

Kadafi foi acusado de manter um harém com escravas sexuais e de utilizar estupros em massa como arma contra opositores. Essas alegações foram amplamente difundidas na imprensa internacional. Após a queda de Kadafi, no entanto, a Anistia Internacional admitiu que não possuía evidências de um harém ou do uso de estupros como arma de guerra. Cherif Bassiouni, inspetor da ONU que investigou as denúncias, também afirmou que tais alegações eram boatos.

De toda forma, a campanha de satanização contra o governo de Kadafi cumpriu o propósito de neutralizar as críticas à intervenção estrangeira no país. A França e outros países passaram a fornecer armas a grupos terroristas e milícias armadas, mergulhando a Líbia em uma sangrenta guerra civil. Os Estados Unidos, então sob o governo de Barack Obama, acusaram Kadafi de cometer “crimes contra a humanidade”.

Em agosto de 2011, a Corte Penal Internacional emitiu um mandado de prisão contra Kadafi. Alegando razões humanitárias, Estados Unidos e seus aliados da OTAN atacaram a Líbia, submetendo o país a uma violenta campanha de bombardeios que devastou suas principais cidades, sobretudo a capital, Trípoli.

Em 20 de outubro de 2011, após 8 meses de conflito, Kadafi foi capturado e assassinado por milícias de opositores, apoiadas pelas potências ocidentais. A intervenção do Ocidente deixou dezenas de milhares de civis mortos, fez colapsar as instituições e destruiu toda a infraestrutura do país — outrora o mais próspero da África.

A Líbia vive desde então mergulhada em uma guerra civil e sofre com múltiplos conflitos e disputas entre facções. O país enfrenta um cenário de completa anomia política e ausência do Estado de direito, registrando-se até mesmo o retorno de práticas que haviam sido banidas há décadas, como a venda de subsaarianos escravizados.