Mártires da liberdade: a Revolta dos Escravizados de Curaçau
Há 230 anos, em 19 de setembro de 1795, tropas coloniais holandesas capturavam líderes negros Tula e Bastian Karpata, pondo fim à Revolta dos Escravizados de Curaçau
Há 230 anos, em 19 de setembro de 1795, as tropas coloniais holandesas capturavam os líderes negros Tula e Bastian Karpata, pondo fim à Revolta dos Escravizados de Curaçau.
Influenciada pela Revolução Haitiana, a revolta em Curaçau foi o maior levante de escravizados ocorrido nas Antilhas Holandesas. Um exército rebelde com mais de 2.000 guerrilheiros percorreu toda a ilha, fazenda por fazenda, libertando os cativos e incendiando as casas dos colonizadores.
O movimento foi traído e violentamente esmagado por uma expedição militar. Tula os outros líderes foram cruelmente torturados e executados. Cerca de 300 pessoas foram mortas na repressão.
A escravidão em Curaçau
Habitada pelo povo Aruaque, a ilha de Curaçau foi submetida ao domínio espanhol a partir de 1499. A princípio, os europeus consideraram que o solo local não era adequado ao cultivo em larga escala. Eles voltaram sua atenção para a exploração da mão de obra nativa, escravizando e deportando os indígenas para a ilha de Hispaniola, onde foram forçados a trabalhar nas minas e plantações.
Embora tenham introduzido a criação de gado e o cultivo de alguns gêneros, os espanhóis enxergavam Curaçau como um “território inútil” e não se preocuparam em fortificar as ilha. Em 1634, Curaçau foi capturada pelos holandeses. Os novos colonizadores incentivaram a produção de algodão, tabaco e outros produtos nas regiões de Hato, Savonet e San Juan, mas a principal atividade econômica da colônia ainda era o comércio de mão de obra escrava.
Sob administração da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais (WIC), Curaçau se converteu em um entreposto para o comércio transatlântico de escravizados. A localização estratégica no Mar do Caribe e a presença de um porto natural impulsionaram o uso da ilha como centro de distribuição dos cativos. Boa parte dos mais de 500.000 africanos escravizados pelos holandeses passaram pela ilha antes de serem enviados para as colônias europeias na América Central e do Sul.
A mão de obra escrava também era fartamente empregada na própria ilha, tanto na produção de sal, quanto nas lavouras, na construção civil e nos trabalhos domésticos. O censo de 1789 registrava que quase 80% da população de Curaçau era negra. Dos 21.000 habitantes da ilha, 13.000 (62%) eram escravizados e outros 3.700 (18%) eram negros livres.
A resistência negra
As condições de vida da população negra eram terríveis. Os escravizados enfrentavam jornadas de até 16 horas por dia, trabalhando de sol a sol nas salinas escaldantes. Recebiam quantidades mínimas de alimentos, geralmente farinha de milho e peixe seco, e eram confinados em senzalas insalubres.
As punições eram sádicas, com açoites e abusos de todo tipo, e a letalidade era extremamente elevada. Cerca de um terço dos escravizados morria nos primeiros anos após a chegada à ilha, em função dos maus-tratos, doenças ou suicídio.
Reagindo à opressão do sistema escravagista, os negros de Curaçau organizaram diversos movimentos de resistência. Desde o início da colonização, os cativos fugiam da escravidão nas minas e fazendas e montavam comunidades autônomas nas terras altas de Christoffel, semelhantes aos quilombos brasileiros.
As insurreições também eram comuns. Em 1716, uma escravizada chamada Maria liderou um grupo de 80 rebeldes em um ataque contra os funcionários brancos do governo colonial. Os insurgentes foram capturados e sentenciados à morte. Maria foi queimada viva na fogueira.
Em julho de 1750, outra grande rebelião eclodiu na ilha, envolvendo cerca de 100 escravizados, muitos dos quais provenientes dos povos Ashanti e Fanti. A revolta foi esmagada pelos soldados holandeses, resultando em mais de 60 mortes. Duas décadas depois, em 1774, dezenas de rebeldes organizaram uma fuga em massa das plantações de De Fuijk, mas também foram interceptados e reprimidos pelas tropas coloniais.
O maior levante de escravizados já visto na ilha e nos territórios das Antilhas Holandesas, no entanto, teria lugar no fim do século 18, alimentado em parte pela difusão dos princípios iluministas e pelo exemplo de outros movimentos revolucionários — sobretudo a Revolução Haitiana, a maior insurreição de escravizados já registrada nas Américas.
Em 1793, o Haiti se tornou o primeiro país do continente americano a abolir a escravidão — uma façanha que inspiraria uma série de revoltas e movimentos em prol da liberdade. A abolição no Haiti seria apoiada por uma decisão do governo jacobino da Revolução Francesa, que em 1794 declarou a ilegalidade da escravidão em todos os territórios pertencentes ao país.
Essa decisão também resultaria na integração de Curaçau ao chamado “Atlântico Revolucionário”. Isso porque, em janeiro de 1795, a França invadiu os Países Baixos, absorvendo a República Batava como estado satélite. Os defensores das ideias abolicionistas passaram então a defender que a emancipação dos escravizados deveria também ser estendida às colônias holandesas, incluindo a ilha de Curaçau.

Monumento relembrando a Revolta de 1795 em Curaçau
Charles Hoffman/Wikicommons
A Revolta de 1795
O levante de 1795 teve início na Plantação Knip — um latifúndio de 850 hectares na região de Bandabou, pertencente ao colono holandês Caspar Lodewijk Van Uytrecht. A fazenda abrigava mais de 400 escravizados, submetidos a condições degradantes, castigos violentos e jornadas exaustivas. Os cativos não tinham permissão sequer para o descanso dominical, um direito reconhecido pelo código legal holandês.
Fartos dos abusos constantes, os escravizados começaram os preparativos para a insurreição com várias semanas de antecedência. O líder do movimento era Tula, um homem africano de notável carisma e sabedoria. Ele havia sido informado sobre a revolta dos escravizados no Haiti e estava ciente de que os Países Baixos e suas colônias agora faziam parte dos domínios da França revolucionária.
Assim, Tula acreditava possuir uma base legal para exigir a abolição da escravatura em Curaçau, sob os mesmos argumentos que foram usados no Haiti. Ele estabeleceu aliança com outros líderes negros, incluindo Bastian Karpata, Louis Mercier e Pedro Wakao, e deu início à articulação do movimento revolucionário e à formação do exército rebelde.
A revolta eclodiu em 17 de agosto de 1795. Liderando um grupo de 50 pessoas, Tula foi ao encontro do proprietário da fazenda, Van Uytrecht, e declarou que os trabalhadores não tolerariam mais a escravidão.
Os rebeldes explicaram que a decisão estava fundamentada nos códigos legais franceses, que haviam reconhecido a abolição da escravatura. Sem condições de impedir a insurreição, Van Uytrecht recomendou ao grupo que se dirigisse a Willemstad, para falar com o governador Johannes de Veer.
Os insurgentes partiram em marcha até a Plantação Lagún, onde libertaram outros 22 escravizados e incendiaram as casas dos colonos. Em seguida, dirigiram-se à plantação de açúcar de Santa Cruz, unindo-se a um segundo grupo de insurgentes, esse liderado por Bastian Karpata.
Os rebeldes prosseguiram a marcha pela ilha, indo de plantação em plantação para libertar os escravizados. Passaram por Porto Mari, San Nicolas, Santa Martha e San Juan. A cada nova missão, agregavam mais e mais seguidores. No segundo dia do levante, Tula já comandava um exército de 2.000 insurgentes.
Um terceiro destacamento de rebeldes, sob o comando de Louis Mercier, organizou uma nova ofensiva na região de Santa Cruz. Eles capturaram o comandante Van der Grijp e seus soldados e confiscaram armas, canhões e suprimentos.
Mercier liderou a tomada da região de Fontein, assegurando o controle das estradas para Willemstad. Em seguida, uniu suas tropas às forças comandadas por Tula e partiram para a bem sucedida captura de Bandabou.
A supressão da revolta
Uma primeira expedição enviada pelo tenente R.G. Plegher para debelar o movimento foi subjugada pelo exército revolucionário. O governador mandou então alguns emissários para tentar uma rendição negociada, incluindo o padre Jacobus Schink.
Tula recebeu o sacerdote e fez questão de explicar o motivo da insurreição: “Eles nos tratam muito mal. Não queremos prejudicar ninguém, só queremos liberdade. Todos na Terra não são descendentes de Adão e Eva? Eu estou errado por querer libertar meus irmãos? Padre, até os animais merecem tratamento melhor”, argumentou.
As negociações não avançaram e o governo holandês enviou uma grande expedição, com mais de 200 soldados, auxiliados por milícias civis. Capitaneadas pelo Barão Van Westerholt, as forças coloniais iniciaram um ataque sangrento aos rebeldes. A primeira grande batalha deixou nove rebeldes mortos e outros 12 feridos.
Um grupo de insurgentes conseguiu se refugiar nas montanhas, organizando uma guerrilha de resistência. Não demorou para que fossem subjugados pelas tropas holandesas, mais numerosas e bem equipadas.
Em 19 de setembro de 1795, Tula e Bastian Karpata foram capturados. Eles haviam sido traídos pelo escravizado Caspar Lodewijk, que os entregou para as tropas coloniais. Com a prisão de Louis Mercier, derrotado na ofensiva a Knip, a rebelião chegou ao fim.
A repressão foi brutal, marcada por uma série de massacres que deixaram mais de 300 mortos. Tula foi submetido aos castigos mais cruéis. Ele foi torturado por duas semanas inteiras e queimado com ferros quentes.
Em 3 de outubro de 1795, Tula foi esquartejado vivo na roda de despedaçamento. Karpata, Mercier e Wakao também foram executados. Seus corpos foram desmembrados e as partes expostas publicamente para aterrorizar os escravizados.
Para tentar apaziguar os ânimos, o governo holandês concedeu alguns direitos limitados aos escravizados — proibiu as punições excessivas, concedeu dias de folga e o direito a casamento. A escravidão, no entanto, ainda persistiria por muitas décadas, até ser abolida pela monarquia holandesa em 1863.
Embora derrotada, a Revolta dos Escravizados tornou-se um poderoso símbolo da resistência ao sistema escravagista e às atrocidades do regime colonial. Tula foi proclamado Herói Nacional de Curaçau e homenageado com um monumento erguido próximo ao local de sua execução. A data do início da revolta, 17 de agosto, é celebrada na ilha como Dia de Luta pela Liberdade.























