Sábado, 6 de dezembro de 2025
APOIE
Menu

Há sete anos, em 8 de outubro de 2018, o Brasil perdia uma das maiores referências da cultura afro-brasileira. Na madrugada posterior ao primeiro turno da eleição presidencial, o capoeirista, compositor e percussionista Mestre Môa do Katendê foi assassinado a facadas por um apoiador de Jair Bolsonaro.

Chegava ao fim uma vida inteiramente dedicada à valorização da identidade negra e à difusão das tradições culturais afro-baianas. Mestre Môa foi o fundador do bloco de afoxé Badauê e teve importância fundamental para o movimento em prol da reafricanização do carnaval de Salvador.

O mestre baiano ajudou a difundir a prática da capoeira Angola e da dança afro no Sudeste e Sul do Brasil. Ele foi criador do bloco Amigos de Katendê e desenvolveu importantes projetos sociais visando a integração de crianças em situação de vulnerabilidade.

Capoeira e Afoxé

Mestre Môa era o apelido de Romualdo Rosário da Costa, nascido em 29 de outubro de 1954, na cidade de Salvador, Bahia. Morador do Dique Pequeno, passou sua infância no bairro de Engenho Velho de Brotas, um núcleo histórico da comunidade negra soteropolitana, conhecido por sua efervescência cultural ao longo dos anos 70 e 80.

Môa cresceu imerso nas tradições afro-brasileiras. Ele começou a praticar capoeira aos oito anos de idade, frequentando o terreiro de sua tia, o Ilê Axé Omin Bain. Posteriormente, tornou-se discípulo de Mestre Bobó, fundador da Academia de Capoeira Angola Cinco Estrelas e organizador das alas de capoeiristas nas agremiações carnavalescas de Salvador.

A exemplo de Mestre Bobó, Môa desenvolveu um forte interesse pela dimensão musical da capoeira. Nos anos 70, ele se especializou como percussionista e compositor. Em 1976, ingressou no grupo folclórico de percussão “Viva Bahia”, fundado por Emília Biancardi. Viajou com o grupo para uma turnê na Europa, apresentando-se em Portugal, na Itália e na Alemanha. Foi também integrante da Orquestra Afro-Brasileira de Percussão.

Em 1977, Môa se consagrou como vencedor do Festival da Canção do Ilê Ayê, o primeiro bloco afro do carnaval de Salvador, apresentando a composição “Bloco Beleza”. No ano seguinte, ele fundou o Badauê, um bloco de afoxé integrado pelos moradores do Engenho Velho de Brotas. Inspirado nas tradições do candomblé, o bloco se tornou um dos grandes destaques do carnaval de Salvador, atraindo multidões em seus cortejos.

Em 1979, o bloco Badauê foi o campeão do carnaval de Salvador na categoria afoxé, desfilando com as cores azul, amarelo e branco, evocando os orixás Ogum, Oxum e Oxalá. Nesse mesmo ano, a canção “Badauê”, composta por Môa, foi gravada por Caetano Veloso no álbum “Cinema transcendental”, fazendo grande sucesso.

Mestre Môa teve papel fundamental no estímulo ao resgate das tradições afro-brasileiras e populares no carnaval de Salvador, resistindo às pressões pelo embranquecimento e pela mercantilização dos festejos, particularmente fortes durante a ditadura militar. Ele ajudou a fortalecer a estética e a sonoridade afro-baiana e a valorizar a negritude como elemento central da cultura brasileira. Essas contribuições teriam grande importância para o desenvolvimento da música baiana nos anos 80.

Amigos de Katendê, Agremiação Gunga e outros trabalhos

Em meados dos anos 80, Môa obteve o título de mestre de capoeira e se dedicou a difundir o conhecimento da cultura afro-brasileira por todo o Brasil. Ele deu aulas de capoeira Angola no Rio de Janeiro e ajudou a introduzir a dança afro no Rio Grande do Sul.

Em São Paulo, Mestre Môa fundou o bloco Amigos de Katendê, que se tornaria uma importante iniciativa para a preservação e difusão das tradições afro-brasileiras, expandindo-se posteriormente para outras cidades do país. Também deu aulas de capoeira em escolas públicas e realizou projetos em colaboração com a Fundação Nacional de Assistência Social, atendendo internos da FEBEM.

De volta à Bahia, Môa assumiu o cargo de diretor cultural e posteriormente presidente da Associação Brasileira de Capoeira Angola (ABCA). Nessa função, ele organizou iniciativas sociais voltadas a atender crianças em situação de vulnerabilidade da periferia de Salvador, além de ministrar oficinas de afoxé, capoeira, música e dança afro.

Em paralelo à atuação como diretor cultural, Mestre Môa seguiu compondo canções que evocavam a história e a cultura afro-brasileira. Ele é autor de “Embaixada Africana” (um tributo a uma das primeiras agremiações carnavalescas negras do Brasil), “Festa de Magia” (sobre a religiosidade afro-brasileira) e “Levante de Sabres Africanos” (abordando a Revolta dos Malês). Também gravou o álbum “Capoeira Angola na Porteira do Dique”, com canções de capoeira e afoxé.

Em 2003, Mestre Môa criou a Agremiação Gunga, o primeiro bloco de capoeira do Brasil, que realizou desfiles no carnaval unindo todas as vertentes. Ele também se dedicou ao artesanato, confeccionando instrumentos musicais como berimbau, caxixi e xequerê.

A arte de Mestre Môa ultrapassou as fronteiras do Brasil. Ele deu aulas de capoeira, percussão e música afro na Colômbia e no Reino Unido. Participou do Festival de Artes de Bruxelas e do Encontro Universo Negro em Barcelona. Também ajudou a articular o reconhecimento da capoeira como Patrimônio Cultural da Humanidade, título concedido pela Unesco em 2014.

Mestre Môa do Katendê.
         Via Fundação Cultural Palmares

O assassinato

Mestre Môa foi assassinado na madrugada do dia 8 de outubro de 2018, logo após o primeiro turno da eleição presidencial. Ele estava em um bar no Dique do Tororó, acompanhado por seu irmão, Reginaldo Rosário da Costa, e seu primo Germínio Pereira, quando um homem chamado Paulo Sérgio Ferreira de Santana passou na frente do estabelecimento dando gritos em apoio a Jair Bolsonaro.

O capoeirista disse ao homem que as pessoas naquele bar apoiavam o Partido dos Trabalhadores e o candidato Fernando Haddad. Paulo Sérgio reagiu de forma agressiva, dando início a uma discussão acalorada. Após a intervenção do dono do bar, o bolsonarista foi embora, mas retornou pouco tempo depois armado com um faca.

Paulo Sérgio atacou Mestre Môa pelas costas, desferindo 12 facadas. Germínio tentou defender seu primo, mas também foi esfaqueado no braço. O assassino ameaçou os demais clientes no bar e fugiu. Môa não resistiu aos ferimentos e faleceu no próprio local. Ele tinha 63 anos.

A morte de Môa insere-se em um contexto de intensificação do ódio político e de radicalização dos setores reacionários, em grande parte estimulados pela retórica agressiva dos ideólogos bolsonaristas. Um mapeamento conjunto realizado pela Agência Pública e pela Open Knowledge Brasil identificou mais de 70 ataques com motivação política durante as eleições de 2018.

Paulo Sérgio foi condenado a 22 anos de prisão em regime fechado. Mestre Môa foi sepultado no Cemitério Quinta dos Lázaros, em Salvador. Seu assassinato causou comoção e indignação. Manifestações e atos de repúdio foram organizados em várias cidades do Brasil.

Mestre Môa foi postumamente homenageado por canções de Caetano Veloso, Chico César e BaianaSystem e teve sua vida retratada nos documentários “Quem vai quebrar a máquina do mal?”, de Carlos Pronzato, e “Môa, Raiz Afro Mãe”, de Gustavo McNair. O álbum póstumo “Raiz Afro Mãe”, lançado em 2024, disponibilizou ao público composições inéditas do artista. Um instituto dedicado a preservar a obra de Môa e perpetuar seu legado social está sendo construído em Salvador pela família.