Jorge Amado, o cronista da alma brasileira
Há 24 anos, Brasil se despedia do escritor que produziu destacadas pelo realismo, lirismo e forte compromisso social, exaltando a cultura popular, a sensibilidade e a vivacidade do povo brasileiro
Há 24 anos, em 6 de agosto de 2001, o Brasil se despedia do escritor Jorge Amado. Expoente da segunda fase do modernismo, ele produziu obras que se destacam pelo realismo, lirismo e forte compromisso social, exaltando a cultura popular, a sensibilidade e a vivacidade do povo brasileiro.
Militante comunista desde a juventude, Jorge abordou a temática da luta de classes, consolidando-se como representante máximo do romance social. Eleito deputado federal pelo PCB, ele integrou a histórica bancada comunista entre 1946 e 1948 e enfrentou prisões políticas, perseguições e o exílio.
Sua obra posterior buscou retratar as diversas facetas da cultura brasileira, abrangendo clássicos eternizados no imaginário popular — de Gabriela, Cravo e Canela a Tieta do Agreste.
Jorge Amado é um dos autores brasileiros mais lidos de todos os tempos, bem como o mais adaptado para cinema, teatro e televisão, fato que lhe valeu a alcunha de “o escritor do povo”.
Os primeiros anos
Jorge Amado nasceu em 10 de agosto de 1912, na Fazenda Auricídia, em Itabuna, no litoral sul da Bahia. Era o primogênito dos quatro filhos de João Amado de Faria e Eulália Leal, produtores de cacau.
Fugindo da epidemia de varíola e das enchentes do Rio Cachoeira, mudou-se com a família para Ilhéus, cidade que serviria de cenário e inspiração para muitos de seus futuros romances. Enviado a Salvador para concluir seus estudos em um internato jesuíta, o jovem fugiu e foi procurar o avô em Itaporanga, Sergipe.
Durante esse período, conviveu com os trabalhadores nas plantações de cacau e testemunhou os abusos dos fazendeiros. Voltou aos estudos no Ginásio Ipiranga, onde dirigiu o jornal do grêmio estudantil A Pátria, e fundou um pasquim de oposição, intitulado A Folha.
Evidenciando seu precoce talento literário, Jorge começou a escrever aos 14 anos para o Diário da Bahia e para O Imparcial. No mesmo período, publicou a poesia Poema ou Prosa na revista A Luva, satirizando a produção lírica de então.
Em 1927, ingressou na “Academia dos Rebeldes”, um círculo literário juvenil que intencionava fomentar a renovação estética da literatura baiana.
Em 1930, Jorge se mudou para o Rio de Janeiro, a fim de estudar na Faculdade de Direito da UFRJ. Durante a graduação, teve contato com a teoria política, o movimento estudantil e o ambiente de discussão sobre os problemas do país, o que o influenciou a se filiar à Juventude Comunista.
O romance social nos anos 30
Aos 18 anos, Jorge Amado publicou seu primeiro romance, O País do Carnaval, um relato crítico sobre a intelectualidade brasileira dos anos 20, onde já se evidenciam características do estilo e a abordagem de temas que acompanhariam sua produção pelo resto da vida.
Dois anos depois, ele lançou seu segundo livro, Cacau, tratando sobre a exploração inclemente dos trabalhadores nas plantações do sul da Bahia e o fenômeno da conscientização política. A obra chegou a sofrer censura, mas foi liberada graças à intervenção de Osvaldo Aranha.
Nos anos seguintes, Jorge seguiria escrevendo romances marcados pela crítica social e incentivo ao engajamento político, tais como Suor e Jubiabá.
Em 1936, quando já estava filiado ao Partido Comunista (PCB), o escritor ficou preso por dois meses, sob acusação de ter apoiado o levante contra o governo de Getúlio Vargas, coordenado por Luiz Carlos Prestes e pela Aliança Nacional Libertadora (ANL) no ano anterior.
Em 1937, l, uma aguçada crítica política denunciando a realidade dos menores abandonados na Bahia. A obra foi apreendida pela censura do Estado Novo e Jorge foi novamente preso. Seus livros foram rotulados como subversivos e queimados em fogueiras públicas nas ruas de Salvador.
Libertado em 1938, o escritor trabalhou na redação do jornal literário Dom Casmurro e colaborou com outros intelectuais de esquerda na revista Diretrizes. Com o recrudescimento da repressão anticomunista, deixou o Brasil, refugiando-se na Argentina e posteriormente no Uruguai. No exílio, publicou O Cavaleiro da Esperança, biografia poética de Luiz Carlos Prestes, e romances denunciando o coronelismo e a concentração fundiária (São Jorge dos Ilhéus e Terras do Sem-Fim).
Carreira parlamentar, exílio e sucesso internacional
De volta ao Brasil, o escritor se engajou na luta pela anistia aos presos políticos, ocasião em que conheceu Zélia Gattai, sua futura esposa. Com a redemocratização em 1945, Jorge Amado foi eleito deputado federal por São Paulo e integrou a bancada do PCB na Assembleia Nacional Constituinte, ao lado de Prestes, João Amazonas e Carlos Marighella, entre outros.
Durante seu mandato, Jorge redigiu a emenda que garantiu a liberdade religiosa, antiga reivindicação dos adeptos das religiões afro-brasileiras, então sob forte assédio do radicalismo cristão. Propôs outras 13 emendas abrangendo temas como isenção tributária para a produção livros, fim da censura prévia à imprensa e proibição do ensino religioso.

Jorge Amado fotografado por Bernard Gotfryd em 1988
Wikimedia Commons
Em 1946, Jorge publicou Seara Vermelha, obra que aborda a luta dos retirantes nordestinos por condições de vida mais dignas e analisa e as causas sociais do flagelo dos sertanejos. Dois anos depois, o escritor teve seu mandato cassado, assim como todos os outros parlamentares do PCB. O registro eleitoral do partido foi cancelado por determinação da justiça e seus militantes foram novamente submetidos à perseguição dos órgãos repressivos do governo.
Jorge Amado exilou-se novamente, vivendo alternadamente entre a França, a Tchecoslováquia e a União Soviética (1948-1954). Também efetuou uma série de viagens à Albânia, China, Mongólia e outras nações do bloco socialista.
Em 1951, o escritor lançou O Mundo da Paz, onde relatou suas impressões positivas sobre a vida nas nações socialistas. A obra foi proibida no Brasil e Jorge foi processado pela Lei de Segurança Nacional. No mesmo ano, ele foi condecorado pelo governo soviético com o Prêmio Stalin da Paz.
Em 1954, Jorge lançou a trilogia Os Subterrâneos da Liberdade, formado pelos volumes Os Ásperos Tempos, Agonia da Noite e A Luz no Túnel, nos quais aborda criticamente o período do Estado Novo, a luta de classes e a associação entre a burguesia brasileira e o imperialismo.
Nesse mesmo período, firmou uma sólida carreira internacional, sobretudo na União Soviética, onde seu romance Seara Vermelha tornou-se o livro estrangeiro mais lido da década de 50 e uma obra onipresente nas bibliotecas públicas do país. Tornou-se igualmente um dos autores mais lidos na Alemanha Oriental e no Leste Europeu, conquistando o público com suas denúncias das mazelas da exploração capitalista.
Perseguição e rompimento com o PCB
A identificação do escritor como comunista, seus vínculos com a União Soviética e nações socialistas e as críticas ácidas ao imperialismo norte-americano levaram a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) a monitorá-lo desde o fim da década de 1940. Em um documento produzido pela agência em 1950, Jorge Amado foi chamado de “garoto de recado dos comunistas”.
A partir de 1952, o autor passou a ser proibido de entrar em território norte-americano com base nas restrições da lei de imigração. Também foi alvo de uma campanha persecutória pela imprensa ocidental, que reverberou em grande parte da intelectualidade brasileira, levando o escritor ao isolamento no meio artístico. Entre seus críticos estava Oswald de Andrade, que definiu Jorge Amado como “um alto-falante que mecanicamente repete as lições do DIP vermelho do Kremlin”.
Em 1956, durante o 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Kruschev apresentou seu relatório atribuindo uma série de crimes a Josef Stalin.
Grande admirador do líder soviético, a quem já havia definido como “aquilo de melhor que a humanidade já produziu”, o escritor sentiu-se constrangido pelas denúncias. Aturdido pela ausência de contestação ao relatório e pela adesão do comitê central do seu partido às teses de Kruschev, Jorge Amado se desligou do PCB.
O “escritor do povo”
O rompimento com o Partido Comunista foi seguido por uma inflexão na produção literária de Jorge Amado. A partir de então, o escritor reduziu o influxo do realismo social em seus livros. A denúncia social deixaria de ser a base de suas obras, ainda que ele seguisse evocando as críticas sociais.
Jorge passou a priorizar a representação do comportamento e dos aspectos culturais do povo brasileiro, abordando temas como a miscigenação e o sincretismo religioso, com predomínio do humor e da sensualidade. O marco inicial dessa fase é Gabriela, Cravo e Canela, lançado em 1958, que mantém referências às questões sociais, mas dá ampla proeminência à crônica de costumes.
A cisão com os comunistas causou ressentimentos, que se agravaram diante das críticas ácidas à sua nova produção feitas por intelectuais do PCB (sobretudo Jacob Gorender), seguidas por respostas atravessadas de Jorge Amado, sobretudo aos editores da revista Novos Rumos.
O público geral, por outro lado, aprovou a nova fase. Evocando habilmente a influência do realismo mágico, com narrativas ricas, personagens carismáticos e tramas envolventes, Jorge Amado escreveu uma série de obras que se tornaram referências do imaginário popular.
É o caso de A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água (1959), Os Velhos Marinheiros (1961) e, sobretudo, dos romances protagonizados por figuras femininas fortes, sensuais e contestadoras dos paradigmas sociais, tais como Dona Flor e Seus Dois Maridos (1966), Tenda dos Milagres (1969), Tereza Batista Cansada de Guerra (1972) e Tieta do Agreste (1977).
A atenuação da crítica social na produção literária de Jorge Amado não fez com que o autor deixasse de ser alvo da censura e da vigilância do Estado brasileiro. Jorge Amado foi o escritor mais espionado pelos serviços de inteligência do Brasil. Os arquivos policiais mostram que o autor foi ininterruptamente monitorado entre 1936 e 1985.
O autor não voltaria a se filiar ou militar formalmente em agremiações políticas, mas criticou abertamente o golpe de 1964 e a ditadura militar e liderou manifestações contra a censura do regime, negando-se a submeter obras à apreciação prévia.
Nas décadas seguintes, produziu novos romances (Tocaia Grande, O Sumiço da Santa, A Descoberta da América pelos Turcos), fábulas e livros infantis (A Bola e o Goleiro, O Milagre dos Pássaros) e livros de memórias (O Menino Grapiúna, Navegação de Cabotagem).
Jorge Amado faleceu em Salvador, em 6 de agosto de 2001, aos 88 anos de idade. Sua obra literária abrange 49 livros, traduzidos para dezenas de línguas e publicados em mais de 80 países.
O autor agraciado em vida com o Prêmio Camões, maior honraria da literatura lusófona, outorgado em 1994. Ocupou a cadeira de número 23 da Academia Brasileira de Letras e recebeu mais de uma dezena de títulos “Doutor Honoris Causa” de universidades brasileiras e europeias.























