Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Há 50 anos, em 24 de outubro de 1975, as mulheres da Islândia protagonizavam uma greve histórica que paralisou o país e se tornou um marco da luta pela igualdade de gênero. Em um protesto contra a desigualdade salarial e a desvalorização do trabalho doméstico, as mulheres cruzaram os braços por 24 horas.

Paralização contra a desigualdade salarial e desvalorização do trabalho doméstico interrompeu atividades econômicas e serviços na Islândia

A greve geral mobilizou cerca de 90% das mulheres da Islândia, forçando a interrupção de praticamente todas as atividades econômicas e serviços do país. Voos foram cancelados e jornais deixaram de ser impressos. Bancos, comércios, fábricas e escolas foram forçados a fechar as portas.

A greve geral se estendeu ao ambiente doméstico. As mulheres se recusaram a realizar as tarefas de casa, cozinhar ou cuidar das crianças, forçando os maridos a vivenciarem o peso da dupla e da tripla jornada. Sem habilidade na cozinha, os homens esgotaram os estoques de salsichas e comidas prontas nos mercados do país.

A paralisação se tornou um divisor de águas. Apenas um ano após a greve, o Parlamento da Islândia aprovou a Lei de Igualdade de Gênero. E cinco anos depois, uma mulher foi eleita para presidir a nação.

Os obstáculos às mulheres na Islândia

Iniciando-se nos anos 60, a segunda onda do feminismo marcou um período de intensa mobilização política e social na Europa, nos Estados Unidos e em outras partes do mundo. Diferentemente da primeira onda feminista, que teve como foco o sufrágio universal e os direitos legais, a segunda onda do feminismo abordou a necessidade de inclusão das mulheres em todas as esferas da vida em sociedade.

As feministas da nova geração denunciavam que a opressão das mulheres não se limitava ao campo político, mas também ao cotidiano e à vida privada. Assim, passaram a abordar questões como os direitos reprodutivos (sobretudo o acesso à contracepção e ao aborto legal), desigualdade no mercado de trabalho, liberdade sexual, violência de gênero, etc.

Na Islândia, a despeito de alguns avanços registrados no pós-Segunda Guerra, as mulheres ainda enfrentavam muitos desafios — particularmente visíveis no campo do trabalho.

No início dos anos 70, as mulheres islandesas ganhavam, em média, 60% menos do que os homens para exercer a mesma função. Eram raras as mulheres alocadas em cargos de liderança e em muitos setores a participação feminina era completamente vetada. Sistemas corporativos de bonificação geralmente excluíam trabalhadoras de setores como o de serviços e limpeza.

Embora já respondessem por mais de um terço da força de trabalho total, as mulheres islandesas eram vistas como as únicas responsáveis por todo o trabalho doméstico e pela criação dos filhos. Havia poucas creches públicas e as vagas quase sempre eram reservadas para filhos de mães solteiras. A necessidade de cuidar das crianças impedia que muitas mulheres participassem do mercado de trabalho.

Nas universidades, somente 15% das matrículas eram ocupadas por mulheres. No corpo docente, essa proporção feminina era ainda menor. Em 1970, havia uma única mulher entre os 60 deputados que compunham o Parlamento da Islândia.

“Meias Vermelhas”

Diante desses obstáculos, as mulheres islandesas começaram a se organizar politicamente, dando origem a novos movimentos. Uma das agremiações mais ativas era o “Raudsokkahreyfingin” — ou “Movimento Meias Vermelhas”.

A organização fora inspirada pelo “Redstockings”, um movimento feminista norte-americano fundado por Ellen Willis e Shulamith Firestone. A versão islandesa, no entanto, era menos avessa às ideias do feminismo socialista e foi bastante influenciada por obras de autores como Simone de Beauvoir (O Segundo Sexo )e Friedrich Engels (A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado).

De 1970 em diante, o “Movimento das Meias Vermelhas” organizou uma série de conferências, passeatas, comícios e manifestações. O grupo também realizava pesquisas de campo para identificar as demandas e carências enfrentadas pelas mulheres, formulava propostas e projetos de lei e tentava promover suas pautas através da articulação política institucional.

A reação popular ao movimento era ambivalente. Muitas mulheres concordavam com as reivindicações do grupo, mas reprovavam as ações de teor “performático”, que buscavam causar impacto e atrair a atenção da mídia. Foi o que ocorreu, por exemplo, em 1974, quando militantes do movimento simularam o enforcamento de uma dona de casa em uma árvore de Natal.

No ano seguinte, o “Movimento das Meias Vermelhas” tentaria uma nova abordagem. O momento era propício para a mobilização feminina. A ONU havia decretado que 1975 seria o “Ano Internacional da Mulher”, com o objetivo de promover a igualdade e destacar as contribuições femininas para o desenvolvimento global. O anúncio empolgou as ativistas islandesas, que viram a oportunidade de amplificar o alcance de suas demandas.

Preparativos para a greve

Vilborg Sigurdardottir, dirigente do “Meias Vermelhas”, foi uma das militantes convidadas a integrar o comitê que estava preparando as ações relacionadas ao “Ano Internacional da Mulher”. Foi ela quem propôs a convocação de uma greve geral feminina.

A ideia era convencer o maior número possível de mulheres a cruzar os braços por 24 horas. Vilborg argumentou que essa seria a melhor maneira de demonstrar a importância das mulheres na sociedade, evidenciando explicitamente o impacto que a ausência feminina poderia causar.

A proposta era ousada: as mulheres não apenas deixariam de ir para o trabalho nesse dia. Elas também se recusariam a realizar tarefas domésticas. Não iriam cozinhar, limpar a casa nem cuidar dos filhos. Por 24 horas, os homens teriam de assumir essas obrigações, sentindo na pele o peso da dupla ou tripla jornada.

A princípio, as demais organizações do comitê consideraram a ideia “muito radical”. As militantes do “Meias Vermelhas”, no entanto, prosseguiram com a campanha e angariaram apoio de vários sindicatos e associações femininas. Em junho de 1975, convencido do apoio popular à ideia, o comitê aprovou a proposta.

A mobilização se estendeu por meses e envolveu centenas de mulheres em todo o país. Além do “Movimento das Meias Vermelhas”, participaram da iniciativa a Federação das Associações de Mulheres, a Associação dos Direitos da Mulher Islandesa e a Associação Estudantil Feminina, além de sindicatos, partidos políticos e movimentos sociais.

As militantes espalharam cartazes e distribuíram mais de 50.000 panfletos, entregues nas ruas e pelos correios. Várias reuniões comunitárias foram organizadas, além de mutirões que abordavam trabalhadoras nas saídas das fábricas e pontos comerciais.

A convocação para a greve geral desagradou os setores conservadores, que reagiram acusando o movimento de incitar a divisão da sociedade. Boatos afirmando que as mulheres seriam demitidas caso aderissem à mobilização foram difundidos. E não foram poucas as piadas e comentários depreciativos e sarcásticos na imprensa.

A paralisação

Percebendo que a palavra “greve” assustava as mulheres mais conservadoras, as organizadoras do movimento passaram a se referir à paralisação como “Dia de Folga”. Na prática, o que se viu foi a maior greve geral da história da Islândia.

A paralisação foi marcada para 24 de outubro de 1975. O sucesso da iniciativa surpreendeu até mesmo as organizadoras mais otimistas. Cerca de 90% das mulheres da Islândia aderiram ao movimento grevista. Mesmo nas comunidades rurais mais afastadas a adesão foi expressiva.

O movimento parou a Islândia. Bancos, fábricas, lojas e comércios foram forçados a fechar as portas ou a operar com capacidade muito reduzida. As creches e escolas infantis ficaram fechadas, pois a maior parte dos funcionários eram mulheres. Das peixarias até os teatros, nada funcionava.

As gráficas também não operaram. Sem a força feminina nas linhas de produção, os jornais diários não podiam ser impressos. Muitos voos foram cancelados, em função da ausência das comissárias de bordo. E nos escritórios das grandes empresas, eram os gerentes que estavam atendendo os telefonemas e fazendo agendamentos no lugar das secretárias.

Sem creches, escolas e babás, os homens foram forçados a levar os filhos para o trabalho. E ao voltar para casa, tiveram de executar as tarefas domésticas. Extenuados pela experiência, eles batizariam a data da greve como “a Sexta-Feira Longa”.

Nos supermercados, havia filas enormes de homens em busca de alimentos prontos para driblar a falta de familiaridade com o fogão. As salsichas, única “refeição” que muitos sabiam preparar, rapidamente se esgotaram em todo o país.

Enquanto os homens conheciam em primeira mão a dupla e a tripla jornada, as mulheres se reuniam em dezenas de comícios e manifestações. O maior deles ocorreu na capital islandesa, Reykjavík, reunindo mais de 25.000 pessoas — mais da metade da população feminina da cidade.

No palco montado na praça Laekjartor, houve apresentações artísticas e discursos inflamados em prol da igualdade de gênero e da emancipação feminina.

Deputadas, comerciantes, donas de casa e trabalhadoras tiveram acesso à palavra. Um dos discursos mais aplaudidos foi feito por Adalheidur Bjarnfredsdottir, uma empregada doméstica de 54 anos: “As mulheres estão acordando. Elas sabem que os homens governam o mundo desde tempos ancestrais. E como tem sido esse mundo?”.

Comício das mulheres grevistas em Reykjavík. Arquivos da História das Mulheres da Islândia
Via Mídia Ninja

Consequências

A greve geral das mulheres de 1975 foi um divisor de águas na história da Islândia. A paralisação trouxe uma atenção sem precedentes às questões de gênero e teve ampla repercussão internacional.

Pela primeira vez, muitos homens islandeses reconheceram o valor do trabalho doméstico, até então amplamente invisibilizado. As organizações feministas foram fortalecidas e a pressão por reformas finalmente começou a dar resultado.

Em 1976, o Parlamento da Islândia aprovou a Lei de Igualdade de Gênero, proibindo a discriminação salarial no mercado de trabalho e formalizando a igualdade jurídica entre homens e mulheres. A lei foi um marco importante, embora sua implementação tenha enfrentado desafios devido à resistência cultural e à lentidão nas mudanças estruturais.

A paralisação também pavimentou o caminho para o ingresso das mulheres na política. Em 1980, Vigdís Finnbogadóttir, uma mãe solteira que participou da greve, foi eleita presidente da Islândia. Primeira mulher a ser eleita como chefe de Estado de uma nação europeia, ela permaneceu no cargo por 16 anos, reelegendo-se por dois pleitos consecutivos.

As mulheres islandesas também avançaram no parlamento, passando a compor listas eleitorais exclusivamente femininas. Em 1983, foi fundada a “Aliança das Mulheres”, que rapidamente se converteu em um dos partidos políticos mais importantes do país.

A Islândia possui hoje um dos maiores percentuais de presença feminina no parlamento, com as mulheres ocupando quase metade dos assentos (30 de 63 vagas). Desde 2009, o país lidera o Índice Global de Desigualdade de Gênero do Fórum Econômico Mundial, sendo apontado como a nação com maior igualdade formal entre homens e mulheres.

A greve geral das mulheres é periodicamente rememorada no país. O evento inspirou atos relacionados em 1985, 2005, 2010, 2016 e 2018. A paralisação de 1975, no entanto, permanece até hoje como a maior e mais abrangente greve da história da Islândia.