Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Há 85 anos, em 3 de setembro de 1940, nascia o escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano, um dos autores mais influentes da literatura latino-americana.

Galeano se notabilizou tanto por sua aguçada capacidade analítica quanto por seu estilo literário singular, misturando características de crônicas, ensaios e poesias. Autor de mais de 40 livros, ele fez uma denúncia contundente da injustiça social e uma defesa apaixonada dos povos oprimidos.

Seu livro mais célebre, intitulado “As Veias Abertas da América Latina”, consagrou-se como uma obra de referência da literatura política e dos movimentos de resistência, denunciando a exploração brutal das nações latino-americanas pelas potências estrangeiras.

Perseguido, preso e exilado pela ditadura militar uruguaia, Galeano se tornou um alvo da Operação Condor. Ele denunciou os abusos do regime, pressionou pela punição dos militares que cometeram violações de direitos humanos e apoiou os triunfos históricos da esquerda uruguaia após a redemocratização.

A juventude de Eduardo Galeano

Eduardo Germán María Hughes Galeano nasceu em Montevidéu, capital do Uruguai, em uma família de classe média. Era o primogênito dos três filhos de Licia Esther Galeano Muñoz e de Eduardo Hughes Roosen, um funcionário do Ministério da Agricultura e Pecuária.

Sua família possuía raízes profundas na história uruguaia. O pai descendia de Leandro Gómez, comandante militar do Partido Blanco e mártir do Cerco de Paysandú. Já a mãe era descendente de Fructuoso Rivera, líder do Partido Colorado e primeiro presidente do país.

Muito influenciado pela fé católica da família, Galeano foi coroinha e nutria o sonho de ser padre. Na adolescência, no entanto, ele se afastou da religião e passou a questionar a existência de Deus. Aos 14 anos, interrompeu o ensino secundário na Erwy School, uma prestigiosa escola britânica de Montevidéu, e partiu em busca de emprego.

Galeano teve uma série de ocupações na juventude. Foi entregador, office boy, pintor de letreiros, datilógrafo e caixa de banco. Desenhista habilidoso, ele também se dedicou a produzir caricaturas e charges políticas. Vendeu sua primeira charge para o jornal “El Sol”, órgão oficial de imprensa do Partido Socialista do Uruguai.

A colaboração com o “El Sol” foi um dos fatores que o motivou a se interessar pelos debates políticos e pelas ideias socialistas. O golpe de 1954 na Guatemala, perpetrado com apoio da CIA, também o motivou a desenvolver uma visão crítica sobre o imperialismo norte-americano.

Galeano não retornou à escola para concluir sua educação formal, mas se notabilizou como autodidata. Aos 17 anos, ele já tinha lido “O Capital” e outras obras fundamentais de autores socialistas. O jovem passou a frequentar o “Café Brasileiro”, tradicional ponto de encontro de artistas e intelectuais de Montevidéu, e se aproximou de personalidades como a historiadora Vivian Trías e o líder socialista argentino Enrique Broken.

Aos 19 anos, acometido por uma crise existencial, Galeano tentou se suicidar ingerindo um frasco de medicamentos. Foi levado às pressas ao hospital e submetido a um coma induzido. Após recobrar a consciência, decidiu mudar radicalmente sua vida. Começou pelo próprio sobrenome: abandonou o uso do germânico “Hughes” e passou a ostentar o hispânico “Galeano”.

Ainda em 1959, Galeano se casou com Silvia Brando, mãe de sua primeira filha, Verônica Hughes. Seria o primeiro de três casamentos. Em 1961, ele se uniu a Graciela Berro Rovira (com quem teve Florencia e Claudio Berro). E em 1976, desposou Helena Villagra, mãe de Mariana e sua companheira até o fim da vida.

A carreira de jornalista e escritor

Decidido a se tornar um escritor, Galeano pediu demissão e se mudou para Buenos Aires no início dos anos 60. Ele trabalhou por um breve período para a revista “Che”, financiada pelo Partido Comunista da Argentina e por outras organizações socialistas locais.

De volta a Montevidéu, Galeano assumiu o cargo de editor-chefe do jornal “Marcha”, semanário progressista uruguaio fundado por Carlos Quijano. No periódico, trabalhou ao lado de nomes como Mario Vargas Llosa, Mario Benedetti, Adolfo Gilly e Alfredo Zitarrosa, entre outros. Ele também dirigiu o jornal “Época”, outro destacado veículo da mídia independente.

Em 1963, Galeano publicou seu primeiro livro, intitulado “Os Dias Seguintes”, uma narrativa ficcional que explorava temas existenciais. No mesmo ano, ele viajou para a China, a fim de observar de perto as transformações sociais e econômicas implementadas pelo governo socialista de Mao Zedong. A experiência seria relatada no livro “China 1964: Crônica de um Desafio”.

Entre 1965 e 1973, Galeano dirigiu o departamento de publicações da Universidade da República, a maior e mais importante instituição de ensino superior do Uruguai. Ele seguiu publicando livros sobre temas variados, incluindo desde análises históricas e políticas (“Guatemala, País Ocupado”) até coletâneas de contos (“Os Fantasmas do Dia de Leão e Outros Relatos”) e crônicas sobre futebol (“Sua Majestade, o Futebol”).

Em 1971, Eduardo Galeano publicou “As Veias Abertas da América Latina”, sua obra mais conhecida. O livro apresenta uma análise magistral sobre a exploração e a pilhagem que foram impostas às nações latino-americanas pelas potências coloniais europeias e pelos Estados Unidos — sempre com a colaboração servil das elites locais.

Na obra, o autor destaca as consequências diretas da “sangria contínua” das riquezas do continente e da subordinação da América Latina à lógica neocolonial do sistema imperialista: a desigualdade social, a violência no campo, a marginalização e o extermínio sistemático das comunidades indígenas.

As Veias Abertas da América Latina” se tornou um marco seminal da literatura política latino-americana e recebeu a menção honrosa na premiação da Casa de las Américas. O livro foi censurado e banido pelas ditaduras militares do Chile (1973-1990), Argentina (1976-1983) e Uruguai (1973-1985).

Eduardo Galeano em 2008
Mariela De Marchi Moyano/Wikimedia Commons

O exílio

A publicação de “As Veias Abertas da América Latina” ocorreu em um período de acirramento das disputas políticas no Uruguai, marcado pela intensificação das ações da esquerda revolucionária (sobretudo o movimento Tupamaros) e pelo aumento da repressão governamental.

Em junho de 1973, apelando para a necessidade de “restaurar a ordem”, o presidente uruguaio Juan María Bordaberry perpetrou um autogolpe, ordenando a dissolução do parlamento e suspendendo a Constituição. Teve início assim a ditadura militar uruguaia, que se estenderia por 12 anos e deixaria um legado sombrio de retrocessos, torturas e assassinatos.

Já reconhecido como um dos principais ideólogos da esquerda uruguaia, Galeano foi preso logo após o golpe. Libertado algum tempo depois, ele foi forçado a deixar o país, exilando-se na Argentina. Em Buenos Aires, o escritor fundou a revista “Crisis”, onde colaboraram grandes expoentes da intelectualidade argentina, incluindo o poeta Juan Gelman.

Em 1975, Galeano publicou a novela “A Canção de Nossa Gente”, retratando clima de opressão, medo e violência instaurado no Uruguai após a ditadura. A mesma realidade, no entanto, logo se estenderia ao país que o abrigava. Em março de 1976, a presidente argentina Isabelita Perón foi derrubada por um golpe de Estado liderado pelo general Jorge Rafael Videla.

Com a instauração de uma ditadura militar na Argentina, o regime uruguaio ganhou um fiel colaborador. Os dois países integraram o chamado “Plano Condor” — uma operação clandestina das ditaduras sul-americanas, apoiada pelo governo dos Estados Unidos, que visava o extermínio de opositores e a desarticulação das organizações de esquerda.

Galeano se converteu em um alvo prioritário do regime argentino, tendo seu nome incluído nas listas dos esquadrões da morte. O escritor partiu então para um novo exílio na Espanha, onde viveria pelos próximos nove anos.

Em 1978, o escritor publicou “Dias e Noites de Amor e Guerra”. O livro é um relato autobiográfico sobre o exílio, enriquecido com depoimentos e histórias de luta dos refugiados latino-americanos e denúncias sobre os crimes cometidos pelas ditaduras militares do continente.

Foi também durante o exílio que Galeano escreveu “Memória do Fogo”, uma trilogia monumental composta pelos volumes “Os Nascimentos” (1982), “As Caras e as Máscaras” (1984) e “O Século do Vento” (1986). A trilogia busca recontar a história da América Latina desde os tempos pré-colombianos até os dias de hoje, fazendo uso de uma abordagem imbuída de lirismo e inspiração poética, abrangendo fatos históricos, mitos e lendas.

A redemocratização e o retorno ao Uruguai

Pressionados pela crise econômica e pela crescente perda de apoio popular, os militares uruguaios deram início ao processo de redemocratização em 1984, formalizado com a assinatura do Pacto do Clube Naval. O acordo previa a concessão de anistia, libertação dos presos políticos e o retorno das eleições livres.

Galeano retornou ao Uruguai em 1985. Ele imediatamente se juntou aos movimentos de apoio à redemocratização e contribuiu para o ressurgimento da mídia independente. Ao lado de Mario Benedetti e Hugo Alfaro, ele fundou o jornal “Brecha”, que se tornaria um dos periódicos mais influentes da esquerda uruguaia.

O escritor também integrou a Comissão Nacional do Referendo, uma iniciativa que visava revogar a anistia que fora concedida aos agentes da ditadura militar acusados de violação dos direitos humanos. A consulta popular foi realizada em abril de 1989, mas a maioria dos eleitores votou a favor da confirmação da lei da anistia, impossibilitando a punição dos assassinos e torturadores.

Ainda em 1989, Galeano publicou “O Livro dos Abraços”, uma coleção de contos curtos, poemas e reflexões celebrando a humanidade, a resistência e a memória. Também desse ano é a obra “Nós Dizemos Não”, um compilado de artigos sobre os problemas políticos, econômicos e sociais da América Latina e o incessante assédio do imperialismo sobre o continente.

As últimas décadas

Ao longo dos anos 90, Galeano seguiu explorando os temas centrais de sua obra: o colonialismo, a exploração econômica, a desigualdade social e a resistência dos povos latino-americanos.

Destaca-se no período o livro “De Pernas pro ar: a Escola do Mundo ao Avesso”, onde o autor argumenta que o poder econômico está conduzindo a sociedade a abdicar de valores como justiça, igualdade e verdade, legitimando a opressão, exploração e desumanização dos mais vulneráveis.

Em 1995, Galeano publicou “Futebol ao Sol e à Sombra”, versando sobre a história e o impacto social e cultural do esporte na América Latina, mas também criticando sua mercantilização e conversão em um espetáculo voltado ao consumo e ao lucro.

O escritor celebrou com entusiasmo a vitória de Tabaré Vázquez na eleição presidencial de 2004. Candidato da Frente Ampla, Vázquez encerrou a centenária alternância entre Blancos e Colorados no comando do país, tornando-se o primeiro presidente da esquerda a assumir o governo uruguaio.

Galeano também participou ativamente da campanha de Pepe Mujica à presidência em 2009 e colaborou com o ex-guerrilheiro na publicação do livro “Memórias do Calabouço”, relatando as experiências dos prisioneiros políticos durante a ditadura.

O autor uruguaio foi um firme defensor da Revolução Cubana e apoiou os governos de esquerda e centro-esquerda que emergiram na América Latina durante a “onda rosa”. Ele foi integrante do comitê consultivo da TeleSUR, defendendo a criação de alternativas à mídia hegemônica, e ajudou a articular o movimento internacional em prol da soberania de Porto Rico.

Em 2008, Galeano lançou “Espelhos: Uma História Quase Universal”, onde realiza uma análise sobre a história da humanidade sob a ótica dos personagens marginalizados e esquecidos. Três anos depois, em 2011, publicou “Os Filhos dos Dias”, uma coleção de 366 textos curtos narrando momentos históricos, curiosidades e reflexões sobre a condição humana.

Eduardo Galeano faleceu em 13 de abril de 2015, em Montevidéu, aos 74 anos de idade, vitimado pelo câncer. Sua morte causou comoção mundial. Milhares de pessoas compareceram ao funeral do escritor sediado no Palácio Legislativo de Montevidéu.

O uruguaio deixou um legado monumental para a literatura de resistência. Ele ajudou a difundir a análise histórica feita sob a perspectiva dos povos excluídos e forneceu os referenciais para a compreensão das dinâmicas de exploração que há séculos afligem os povos latino-americanos.