Crimes do império: Estados Unidos aniquilam a indústria farmacêutica do Sudão
Ataque destruiu a Fábrica Farmacêutica Al-Shifa, uma das maiores do continente africano, e milhares de sudaneses morreram devido à grave escassez de medicamentos
Há 27 anos, em 20 de agosto de 1998, os Estados Unidos lançavam um ataque com mísseis de cruzeiro contra a Fábrica Farmacêutica Al-Shifa, a maior produtora de medicamentos do Sudão. O ataque destruiu completamente as instalações e matou ou feriu 12 pessoas. As consequências, entretanto, foram bem mais severas.
Al-Shifa era uma das maiores indústrias farmacêuticas do continente africano. A instituição produzia metade dos medicamentos consumidos pelos sudaneses e exportava produtos farmacêuticos a preços acessíveis para várias nações da África e do Oriente Médio.
Com a destruição da fábrica, o Sudão enfrentou uma grave escassez de medicamentos que inviabilizou as ações assistenciais. A falta de tratamento médico e o agravamento das epidemias causaram dezenas de milhares de mortes.
O governo dos Estados Unidos justificou o ataque alegando que a Fábrica Al-Shifa produzia armas químicas — uma justificativa falsa, que foi prontamente refutada. O ataque ocorreu em meio ao ápice de um escândalo sexual envolvendo Bill Clinton e foi utilizado como parte de uma estratégia diversionista.
A crise social no Sudão
Localizado na África Setentrional, no território que abrigou o célebre Reino de Cuxe, o Sudão luta até hoje para superar os obstáculos nefastos legados por seu passado colonial. O país proclamou sua independência em 1956, emancipando-se do domínio anglo-egípcio, mas jamais conseguiu superar as graves divisões étnicas, religiosas e políticas, mergulhando em uma sucessão interminável de conflitos e guerras civis.
A instabilidade política, as sanções e intervenções estrangeiras e a dependência econômica sempre inviabilizaram a continuidade de projetos de desenvolvimento. Nos anos 90, o Sudão figurava entre as nações mais pobres do mundo, com cerca de 60% de sua população vivendo abaixo da linha da pobreza.
A crise social tinha reflexos devastadores na área da saúde. A guerra civil já havia matado mais de 1,2 milhão de pessoas. A economia estava devastada e uma crise famélica assolava as áreas rurais. Em 1990, o país possuía uma das maiores taxas de mortalidade infantil do planeta (128 mortes a cada mil nascimentos) e uma das menores expectativas de vida (em torno de 51 anos).
A rede assistencial, extremamente precária, alcançava menos de um terço da população. O abastecimento de vacinas era irregular, resultando na alta incidência de doenças como sarampo, poliomielite e tétano. Epidemias de malária, cólera e meningite grassavam soltas, agravadas pelas más condições de saneamento.
A amplitude dos desafios enfrentados pelo Sudão na área da saúde explica a enorme expectativa que foi gerada pelo anúncio de que o país abrigaria uma indústria farmacêutica de grande porte: a Fábrica Al-Shifa.
Al-Shifa: o “orgulho da África”
Uma cerimônia pomposa marcou a inauguração da Fábrica Farmacêutica Al-Shifa em junho de 1997. Chefes de Estado, embaixadores e representantes de vários países se reuniram em Cartum do Norte para prestigiar a instituição que seria apelidada de “o orgulho da África”.
Havia boas razões para justificar o apelido. Al-Shifa já nasceu como uma das maiores indústrias farmacêuticas do continente africano. Sua inauguração não apenas ajudaria a fortalecer o sistema de saúde sudanês, mas também representaria um enorme avanço rumo ao sonho da soberania científica compartilhado pelas nações do Sul Global.
A Fábrica Al-Shifa ocupava um grande complexo industrial de quatro edifícios e empregava mais de 360 funcionários. Possuía instalações modernas e equipamentos de última geração importados de países como Estados Unidos, Alemanha, Índia e Itália.
Embora fosse um empreendimento privado, Al-Shifa possuía forte subvenção do Estado sudanês. A construção da fábrica foi financiada por doações e empréstimos de vários países africanos e contou com apoio de organismos internacionais.
A criação de Al-Shifa possibilitaria que o Sudão desse um enorme passo rumo à autossuficiência na fabricação de medicamentos, com a fatia da produção nacional saltando de 3% para mais de 50% dos remédios consumidos no país.
A fábrica chegou a produzir 90% dos medicamentos utilizados para tratar as sete principais causas de óbitos no Sudão, incluindo malária e tuberculose. Antibióticos, xaropes, remédios para hipertensão, diabetes, úlceras, reumatismo — havia de tudo no catálogo de produtos da Al-Shifa.
Em média, os medicamentos da fábrica custavam um quinto do valor dos congêneres vendidos por farmacêuticas europeias e norte-americanas. O contrato com o governo sudanês previa que 15% de toda a produção da fábrica fosse distribuída gratuitamente para as famílias de baixa renda.
Esses fatores possibilitaram uma diminuição sem precedentes no custo dos remédios, contribuindo para torná-los acessíveis a uma das populações mais carentes do mundo.
O Sudão, que importava quase todos os medicamentos que consumia, tornou-se um exportador de produtos farmacêuticos, passando a abastecer várias nações africanas e asiáticas.
Al-Shifa se converteu em uma das principais fornecedoras do programa “Petróleo por Alimentos”. Criado pela ONU, o programa permitia que o Iraque, então estrangulado pelas sanções norte-americanas, trocasse petróleo por comida, remédios e insumos básicos.
Além das enormes contribuições para a saúde pública dos sudaneses, a indústria também teve grande importância para a pecuária, produzindo quase todos os medicamentos veterinários utilizados pelo país.

Os escombros da Fábrica Farmacêutica Al-Shifa, destruída por bombardeios norte-americanos
Bertramz/Wikimedia Commons
O bombardeio
A inauguração da Fábrica Farmacêutica Al-Shifa ocorreu em um contexto marcado pela deterioração das relações diplomáticas entre o Sudão e os Estados Unidos. Após a chegada de Omar al-Bashir ao poder, o governo sudanês se aproximou do Iraque e passou a apoiar os movimentos revolucionários palestinos e as organizações islâmicas do Oriente Médio.
A Casa Branca respondeu às ações de Omar al-Bashir acusando o Sudão de fornecer refúgio e apoio logístico a grupos islâmicos radicais e de financiar organizações terroristas como a Al-Qaeda — uma agremiação fundamentalista que fora criada com apoio da CIA nos anos 80.
Em novembro de 1997, cinco meses após a criação de Al-Shifa, o governo norte-americano, então sob a gestão de Bill Clinton, impôs um embargo econômico contra o Sudão, banindo o comércio e as transações financeiras entre os dois países.
O embargo de Washington prejudicou a produção de remédios no Sudão, impedindo a aquisição de vários insumos. Mas o maior ataque ao sonho sudanês de obter a autossuficiência na produção de medicamentos ainda estava por vir.
No dia 20 de agosto de 1998, por volta das 19h30, o complexo da Fábrica Farmacêutica Al-Shifa foi destruído por 13 mísseis Tomahawk lançados por navios norte-americanos estacionados no Mar Vermelho. O ataque matou um funcionário da indústria e deixou outros 11 civis feridos. Uma fábrica de doces situada nos arredores do complexo também foi destruída.
O bombardeio de Al-Shifa ocorreu em paralelo a uma outra ofensiva contra supostos campos de treinamento da Al-Qaeda na província de Khost, no Afeganistão. Ao todo, 75 mísseis foram disparados, deixando mais de 30 mortos.
Os ataques foram ordenados pelo presidente Bill Clinton como parte da “Operação Alcance Infinito”. Tratava-se de uma campanha retaliatória. Duas semanas antes, em 7 de agosto de 1998, ataques terroristas simultâneos destruíram as embaixadas norte-americanas no Quênia e na Tanzânia, matando 213 pessoas. Nenhuma organização reivindicou a autoria dos ataques, mas a Casa Branca responsabilizou a Al-Qaeda.
O falso pretexto das “armas químicas”
O ataque reduziu a Fábrica Al-Shifa a escombros, causando enorme indignação e consternação entre os sudaneses. Não havia, afinal, nada que vinculasse o governo do Sudão aos ataques contra as embaixadas norte-americanas.
O governo Clinton respondeu aos questionamentos dizendo que Al-Shifa não produzia remédios. O local, segundo a Casa Branca, era uma fábrica secreta de armas químicas a serviço de Osama bin Laden e da Al-Qaeda. Os norte-americanos disseram ter “provas concretas” de que as instalações estavam servindo para a produção do gás letal VX.
A “prova” em questão era uma amostra de solo contaminado que teria sido recolhida nos arredores da fábrica. Mas quando pesquisadores sugeriram que a amostra fosse cedida para a realização de testes independentes, o governo norte-americano recusou a solicitação.
Diante da rejeição, Saleh Idris, o proprietário da fábrica destruída, tomou a iniciativa de recolher várias amostras do solo e encaminhou para análise dos pesquisadores da Universidade de Boston. Os testes não revelaram nenhuma anormalidade.
Funcionários da fábrica convidaram autoridades internacionais para averiguar os escombros. No local, os inspetores encontraram objetos e produtos de uma indústria farmacêutica convencional. As inspeções, somadas aos relatos de várias autoridades que já tinham visitado a fábrica, derrubaram as alegações de Washington de que Al-Shifa era uma “indústria farmacêutica de fachada”.
O governo do Sudão exigiu que o Conselho de Segurança da ONU realizasse uma investigação independente nas instalações da fábrica, a fim de averiguar se o país estava produzindo armas químicas. A proposta foi vetada pelo governo norte-americano. A Casa Branca também agiu para bloquear um pedido de análise laboratorial na amostra de solo inicialmente apresentada como evidência.
Os Estados Unidos também não conseguiram apresentar nenhuma prova que vinculasse a Al-Shifa a Osama bin Laden ou qualquer membro da Al-Qaeda. Acionada na justiça por Saleh Idris, a Casa Branca teve que descongelar as contas bancárias e ativos do proprietário da fábrica.
Com suas alegações completamente desmoralizadas, o governo dos Estados Unidos foi forçado a admitir que “as provas que levaram o presidente Clinton a ordenar o ataque não eram tão sólidas quanto se imaginava”. Apesar disso, Clinton ignorou todos os pedidos de desculpas exigidos pelo Sudão.
As reações internas e o “escândalo Lewinsky”
O bombardeio da Fábrica Al-Shifa ocorreu em meio ao ápice de um escândalo sexual. O presidente Bill Clinton fora acusado de manter relações sexuais extraconjugais com Monica Lewinsky, sua estagiária de 22 anos.
A princípio, Clinton classificou a acusação como boato, mas acabou sendo desmentido pela apresentação de provas materiais. Sob forte pressão, o mandatário admitiu que havia feito sexo com Lewinsky. Ele foi então acusado de perjúrio e obstrução da justiça, por ter mentido durante as investigações.
Um novo depoimento de Clinton ao Grande Júri estava marcado para ocorrer no dia 20 de agosto de 1998 — exatamente a mesma data em que ele ordenou os bombardeios contra a Fábrica Al-Shifa e os campos do Afeganistão.
O “timing” conveniente chamou atenção de muitas pessoas. Alguns parlamentares de oposição acusaram abertamente Clinton de ordenar o ataque para criar uma distração e ao mesmo tempo apelar para o “ufanismo patriótico” contra uma “ameaça externa”. Acusavam a estratégia diversionista, mas não se incomodavam com o ataque em si.
Se o objetivo de Clinton era esse, funcionou. Os ataques geraram um “fato novo”, interrompendo a sequência interminável de manchetes, piadas e ridicularizações sobre o “Caso Lewinsky”. Até os representantes mais exaltados da oposição republicana decretaram uma trégua.
As pesquisas de opinião mostraram que entre 70% e 80% dos norte-americanos aprovaram os bombardeios de Clinton contra o que a mídia descreveu como “instalações terroristas da Al-Qaeda”.
Não houve questionamentos ao fato de que os bombardeios ocorreram sem autorização do Congresso ou declaração formal de guerra. Tampouco houve quem lembrasse que, ainda que as acusações contra o Sudão fossem verdadeiras, o caso deveria ser levado ao Conselho de Segurança da ONU. Ninguém se importou com o fato de os Estados Unidos estarem, mais uma vez, desrespeitando as convenções do direito internacional.
Consequências
A destruição da Al-Shifa causou uma escassez crítica de medicamentos no Sudão, que já sofria com a fome, com as consequências da guerra civil e com o embargo econômico. Privados da fábrica que produzia 50% dos remédios consumidos no país, os sudaneses testemunharam a intensificação de surtos e epidemias.
Poucos meses após o bombardeio, uma grave epidemia de meningite atingiu o Sudão, vitimando milhares de pessoas. Sem acesso a antibióticos, as autoridades sanitárias pouco puderam fazer. O mesmo ocorreu após as enchentes de 1999, que deixaram inúmeras pessoas feridas ou sofrendo de infecções abdominais. Não havia remédio para socorrê-las.
Estima-se que dezenas de milhares de adultos e crianças morreram em decorrência de condições como disenteria, malária e outras doenças tratáveis. O governo do Sudão chegou a pedir para o Reino Unido e outras nações ocidentais o envio emergencial de cloroquina para o tratamento da malária, mas seus pedidos foram rejeitados.
O bombardeio também interrompeu o esforço conduzido por equipes de agências humanitárias que atendiam as vítimas da crise famélica de 1998. Temendo a escalada do conflito, os voluntários deixaram o país. Mais de 70.000 pessoas morreram em decorrência da fome.
Os Estados Unidos jamais se desculparam pelo ocorrido em Al-Shifa e nunca se preocuparam em indenizar o governo sudanês pelos prejuízos causados. Ao contrário. Washington ampliou as sanções contra o país após o início do conflito de Darfur e financiou o movimento separatista dos rebeldes do sul.
Em 2011, com apoio do governo norte-americano, o Sudão do Sul proclamou sua independência. A emancipação enfraqueceu o governo de Cartum, privando-o do uso de 75% das reservas de petróleo do país. Até os dias de hoje, o Sudão não conseguiu recursos para recriar sua indústria farmacêutica.























