Crimes da ditadura: as invasões ao campus da Universidade de Brasília
Instituição foi invadida por soldados com metralhadoras e agentes dos órgãos repressivos após alunos reivindicarem justiça pelo assassinato do estudante Edson Luís
Há 57 anos, em 29 de agosto de 1968, a Universidade de Brasília (UnB) era invadida por soldados e agentes dos órgãos repressivos da ditadura militar. O motivo da invasão foi uma manifestação de alunos que reivindicavam justiça após o assassinato do estudante secundarista Edson Luís.
Os estudantes foram brutalmente espancados e mantidos sob a mira de metralhadoras. Um dos alunos da UnB foi baleado na cabeça. Dezenas de universitários foram presos, incluindo o líder estudantil Honestino Guimarães, que foi submetido a seis dias seguidos de tortura — e posteriormente assassinado.
A incursão de 1968 foi a operação militar mais violenta dirigida contra a UnB, mas não foi a única. A universidade era um dos principais alvos dos militares e seria invadida em quatro ocasiões distintas durante o regime.
A Universidade de Brasília
Inaugurada em 21 de abril de 1962, a Universidade de Brasília não era apenas mais uma universidade federal. Perfilando-se às grandes reformas idealizadas pelo governo de João Goulart, a instituição foi planejada para ser uma ferramenta a favor do desenvolvimento nacional, apta a formular soluções que ajudassem a combater a pobreza e a desigualdade e a impulsionar a modernização do país.
Essas premissas já estavam indicadas no Plano Orientador da UnB, que assegurava que a instituição deveria estar “estruturada em bases mais flexíveis”, estabelecendo os princípios para a “renovação do ensino superior”. Em outras palavras, a UnB deveria servir de modelo à reestruturação completa do sistema universitário brasileiro, orientada sob uma perspectiva de superação dos desafios nacionais.
As mudanças começavam pela estrutura pedagógica. O modelo educacional da UnB foi desenvolvido por uma equipe de mais de 200 especialistas, liderados pelo antropólogo Darcy Ribeiro e pelo educador Anísio Teixeira. Esse modelo rompia com a abordagem rígida inspirada pela tradição francesa, instituindo mecanismos que estimulavam a interdisciplinaridade e a articulação entre diferentes áreas do conhecimento.
Na UnB, os cursos seriam divididos em duas etapas. Haveria uma formação inicial comum de dois anos, ministrada a todos os estudantes através dos institutos centrais. Após esse período, os universitários seguiriam para diferentes faculdades, a fim de concluir a formação profissional. Os institutos centrais também concentrariam as atividades de pesquisa e os cursos de pós-graduação.
O Plano Orientador também previa que a universidade fosse estabelecida como uma fundação, dotada de autonomia gerencial e orçamentária, o que a tornaria imune às interferências políticas e às amarras da burocracia ministerial — e ao mesmo tempo incentivaria a criação de um ambiente de maior liberdade intelectual e acadêmica.
Entre 1962 e 1964, a UnB foi um dos epicentros do debate intelectual e político no país, promovendo discussões avançadas em temas como reforma agrária, industrialização e estratégias de desenvolvimento. A instituição atraiu profissionais altamente qualificados, oriundos de vários países, investiu no financiamento de pesquisas inovadoras e elaborou projetos de extensão que buscavam fortalecer a conexão com a sociedade.
Essas iniciativas, entretanto, tiveram vida curta. Em 1º de abril de 1964, o presidente João Goulart foi derrubado por um golpe de Estado. Seguiu-se a instauração de uma ditadura militar que atacou e reverteu várias das conquistas obtidas no governo trabalhista e passou a impor o projeto político dos setores reacionários.
Associada ao pensamento progressista e estrategicamente localizada junto à sede do governo federal, a UnB passou a ser vista como uma ameaça potencial. A instituição se tornaria um alvo prioritário dos militares ao longo do regime.
Primeira invasão
Em 9 de abril de 1964, apenas oito dias após o golpe, a UnB sofreu sua primeira invasão. Tropas do Exército, auxiliadas por soldados da Polícia Militar de Minas Gerais, entraram no campus, acompanhadas de 14 ônibus e três ambulâncias.
Os militares pretendiam prender e interrogar 12 docentes acusados de “atividades subversivas”. Eles invadiram as salas de aula e revistaram estudantes e professores, procurando por armas e materiais de propaganda antigovernista.
A universidade permaneceu sob ocupação por duas semanas. As salas dos professores e a biblioteca foram interditados. Vários membros da comunidade acadêmica foram presos e submetidos a inquérito militar. A investigação, no entanto, seria arquivada por falta de provas.
O reitor Anísio Teixeira e o vice-reitor Almir de Castro foram demitidos. A reitoria foi entregue a Zeferino Vaz, então diretor da Faculdade de Medicina da USP, conhecido pela postura anticomunista e pelo apoio entusiasmado que dera à derrubada de Goulart.
Considerado personagem central no desenvolvimento do sistema educacional brasileiro e expoente do movimento da “Nova Escola”, Anísio Teixeira enfrentaria perseguição sistemática da ditadura. Ele desapareceu após ser preso pelos militares em 11 de março de 1971. Foi encontrado morto três dias depois, jogado no fosso de um elevador.
O caso foi oficialmente registrado como acidente, mas o corpo de Anísio não apresentava hematomas, traumas ou ferimentos que corroborassem tal hipótese.

Agentes da ditadura militar reprimem estudantes da UnB
Arquivo Central/AtoM/UnB
Segunda invasão
Mesmo após a imposição de uma reitoria alinhada, o governo militar seguiu punindo a UnB, enxergando-a como um “reduto de atividades subversivas”. A instituição sofreu sucessivos cortes no seu orçamento, sendo forçada a reduzir os investimentos em pesquisas e as atividades de extensão.
Zeferino Vaz permaneceu no comando na UnB até agosto de 1965, quando deixou o cargo para se dedicar à implantação da Unicamp. Ele foi substituído por Laerte Ramos de Carvalho, que recebeu dos militares a missão de expurgar os opositores do regime.
O novo reitor adotou medidas autoritárias, agravando o clima de tensão na UnB. Em setembro de 1965, Laerte ordenou a demissão de três professores muito influentes e estimados na universidade — Ernani Maria Fiori, Edna Soter de Oliveira e Roberto Décio de Las Casas.
A demissão arbitrária indignou a comunidade acadêmica. Em resposta, os professores decretaram uma paralisação de 24 horas em 8 de setembro. Três dias depois, em solidariedade aos docentes, os estudantes entraram em greve.
Alegando que a universidade estava sob “ameaça de depredação”, Laerte solicitou o envio de tropas ao campus. Em 11 de outubro de 1965, a UnB sofreria sua segunda invasão. Os militares cercaram todas as entradas do campus, impedindo a entrada de estudantes e professores.
Na semana seguinte, dando continuidade ao expurgo, o reitor anunciou a demissão de outros 15 professores. Dentre os punidos, estava o renomado jurista Sepúlveda Pertence, futuro ministro do Supremo Tribunal Federal. Laerte argumentou que os docentes desligados estavam fomentando o “ambiente de perturbação” na UnB.
Fartos do autoritarismo da reitoria, os educadores reagiram: 223 dos 305 professores da universidade pediram demissão. De um dia para o outro, a UnB perdeu 73% de seu corpo docente — incluindo quase todos os intelectuais que Darcy Ribeiro havia chamado para ajudá-lo a implementar a instituição.
Os protestos estudantis de 1968
Apesar das constantes intimidações e ataques, a comunidade acadêmica da UnB prosseguiu resistindo ao regime. Em Brasília e no restante do país, era o movimento estudantil que assumia cada vez mais o papel de insuflar a oposição à ditadura.
Os conflitos entre estudantes e militares chegaram ao ápice em 1968. Em março daquele ano, a Polícia Militar do Rio de Janeiro havia assassinado o estudante secundarista Edson Luís Lima Souto, que participava de um protesto contra o fechamento do restaurante Calabouço.
O assassinato causou uma onda de manifestações pelo país. O cortejo fúnebre de Edson e sua missa de sétimo dia se converteram em atos políticos contra o regime, atraindo dezenas de milhares de pessoas. Em 26 de junho de 1968, um ato organizado pelos estudantes reuniu mais de 100.000 manifestantes no centro do Rio de Janeiro.
Os protestos chegaram ao Distrito Federal. Respondendo às convocatórias da Federação dos Estudantes Universitários de Brasília (FEUB) e da União Nacional dos Estudantes (UNE), os alunos da UnB se engajaram em assembleias, ocupações e atos públicos.
A terceira invasão
No dia 29 de agosto de 1968, cerca de 3.000 estudantes compareceram a uma manifestação organizada para exigir justiça pela morte de Edson Luís. O ato ocorreu em uma praça localizada no campus principal da UnB, entre a Faculdade de Educação e a quadra de basquete.
Decidido a esmagar a manifestação, o regime militar ordenou a execução de mandados de prisão contra sete líderes estudantis: Honestino Guimarães, Lenine Bueno Monteiro, Mauro Burlamaqui, Nilson Curado, Paulo Cassis, Paulo Speller e Samuel Babá. Eles eram acusados de operar ilegalmente a FEUB e a UNE, entidades banidas pelo regime.
A terceira invasão da UnB começou por volta das 10h da manhã. Ela seria a mais violenta de todas. A operação mobilizou centenas de soldados do Exército, policiais militares e civis e agentes do DOPS. Mais de 50 viaturas e caminhões de choque foram despachados para cercar o campus e bloquear as saídas, impedindo que os universitários fugissem.
Portando metralhadores, fuzis e granadas, os agentes invadiram e depredaram várias salas de aula. Os manifestantes foram brutalmente agredidos e atacados com bombas de gás lacrimogênio e de efeito moral.
Vários tiros foram disparados durante a ação. Waldemar Alves da Silva Filho, um estudante de engenharia, foi baleado na cabeça. Ele foi levado ao hospital em estado grave e passou meses internado. Conseguiu sobreviver, mas ficou com sequelas cognitivas e perdeu parte da visão.
Cerca de 500 pessoas foram detidas na quadra de basquete, que foi convertida em uma espécie de campo de concentração improvisado. Os alunos ficaram cercados sob a mira de metralhadoras enquanto agentes conduziam uma triagem. Ao todo, 60 estudantes foram presos. Um caminhão da Novacap foi usado para transportá-los para a delegacia.
Honestino Guimarães, militante da Ação Popular Marxista Leninista e presidente da FEUB, foi um dos universitários presos. Ele foi espancado e arrastado sangrando até a viatura. Ficou incomunicável por seis dias, período em que foi barbaramente torturado.
Libertado após um mês, Honestino seguiu atuando clandestinamente no movimento estudantil e chegou a assumir a presidência da UNE em 1971. Dois anos depois, em outubro de 1973, ele foi capturado e assassinado por agentes da ditadura. Seu corpo nunca foi encontrado.
A quarta invasão
Após a invasão, a UnB foi colocada sob rígido enquadramento, ao mesmo tempo em que as organizações estudantis eram desarticuladas pela violenta repressão da ditadura, intensificada após a promulgação do AI-5.
O reitorado de Amadeu Cury implementou uma tentativa de distensão e trouxe iniciativas pontuais para a consolidação acadêmica. Contudo, o longo período de cortes orçamentários e a restrição de investimentos conduziram a UnB ao sucateamento, com falta de professores e laboratórios ociosos.
O descontentamento dos estudantes e professores se agravou após a nomeação do capitão José Carlos de Almeida Azevedo como novo reitor. Ligado ao Gabinete Militar da Presidência, ele faria uma gestão marcada pelo recrudescimento do autoritarismo e pela perseguição contra os estudantes.
Em maio de 1977, o reitor havia ordenado a suspensão de 16 universitários que realizaram um ato público relembrando o assassinato de Edson Luís e reivindicando a concessão de anistia aos presos políticos. José Carlos também impediu a realização de eventos que pretendiam impulsionar a reorganização dos estudantes.
Em protesto contra as ações arbitrárias do reitor, estudantes e professores da UnB entraram em greve no fim do maio. José Carlos respondeu convocando as forças de segurança para debelar o movimento.
Em 6 de junho de 1977, a UnB sofreria sua quarta invasão. Soldados da PM e fuzileiros navais tomaram o campus e atacaram os estudantes com bombas de gás lacrimogêneo e golpes de cassetete.
Apesar da repressão, a greve continuou. A ocupação militar se estendeu por três meses. Agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI) foram mobilizados em operações de infiltração, a fim de identificar e neutralizar as lideranças. Dezenas de estudantes foram presos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Ao todo, 64 alunos foram suspensos e 34 foram expulsos.
A invasão teve grande repercussão nacional, pois ocorreu em um contexto de crescente pressão pela abertura política. A brutalidade policial sensibilizou os movimentos democráticos, ao mesmo tempo em que inflamou o ânimo de luta dos jovens universitários, contribuindo para a rearticulação do movimento estudantil.
A invasão de 1977 foi a última intervenção militar direta na UnB. A crescente pressão pela abertura política, a reconstrução da UNE e o fortalecimento do movimento sindical, abrindo uma nova frente de combate à ditadura, desestimularam novas ações autoritárias do regime.
Em maio de 1984, o professor Cristovam Buarque se tornou o primeiro reitor a ser escolhido pela comunidade universitária através de eleições diretas paritárias, consolidando o processo de redemocratização na instituição.























