Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Há 48 anos, em 22 de setembro de 1977, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) servia de palco a um dos episódios mais emblemáticos da repressão da ditadura militar brasileira ao movimento estudantil.

Naquela noite, centenas de policiais invadiram o campus da universidade e atacaram violentamente os discentes que participavam do 3º Encontro Nacional dos Estudantes. A ofensiva buscava impedir a reorganização da União Nacional dos Estudantes (UNE), que havia sido fechada por determinação do regime.

Estudantes, professores e funcionários da universidade foram espancados e atacados com gás lacrimogêneo e bombas de fósforo branco. Mais de 1.500 estudantes foram detidos e dezenas ficaram feridos. Dezesseis alunos tiveram de ser hospitalizados, quatro dos quais com queimaduras graves. A ação foi coordenada pelo coronel Erasmo Dias, homenageado pela gestão Tarcísio de Freitas em 2023.

A ditadura contra os estudantes

Desde o golpe de 1964 e a subsequente instauração da ditadura militar brasileira, o movimento estudantil se converteu em um dos principais núcleos de oposição ao regime — sobretudo após a extinção dos partidos políticos e a desarticulação do movimento operário.

Em retaliação, a ditadura decretou o fechamento da União Nacional dos Estudantes (UNE), interveio nas universidades e passou a reprimir severamente as organizações estudantis. Atuando clandestinamente, a UNE denunciou os acordos ilegais entre Ministério da Educação (MEC) e o governo dos Estados Unidos (os Acordos MEC-USAID), iniciando uma onda de manifestações que varreu o país.

No Rio de Janeiro, os protestos atingiram o ápice em 1968, após a polícia fluminense reprimir brutalmente um ato contra o fechamento do restaurante Calabouço, executando a tiros o estudante secundarista Edson Luís Lima Souto. Organizada pelos estudantes cariocas em desagravo à violência policial, a Passeata dos Cem Mil contou com ampla adesão popular, alarmando a cúpula militar.

A ditadura respondeu intensificando a repressão. Em agosto de 1968, ocorreu a invasão à Universidade de Brasília. Dois meses depois, membros do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e estudantes reacionários da Universidade Mackenzie atacaram a Faculdade de Filosofia da USP, reduto da esquerda universitária paulistana. Posteriormente, a polícia reprimiu o 30º Congresso da UNE, realizado clandestinamente em Ibiúna, prendendo cerca de 800 estudantes.

Em dezembro de 1968, o regime militar promulgou o AI-5, suspendendo os direitos políticos e as garantias constitucionais, inaugurando o período mais repressivo do regime — os “Anos de Chumbo”, marcados pelo uso recorrente de tortura, desaparecimentos e assassinatos de opositores. Finalmente, em fevereiro de 1969, os militares baixaram o Decreto Nº. 477, proibindo as atividades políticas nas universidades.

A reorganização do movimento estudantil

Reagindo ao recrudescimento da repressão, os estudantes também se radicalizaram, registrando-se a adesão de muitos jovens aos movimentos de luta armada. A violência do regime, entretanto, logo sufocou o movimento estudantil e o privou de suas lideranças.

Em março de 1973, Alexandre Vannucchi Leme, estudante da USP e militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), foi morto pelo DOI-Codi de São Paulo. Sete meses depois, o presidente da UNE, Honestino Guimarães, também foi assassinado pelo regime.

Invasão à PUC-SP. Via Jornal da PUC

Invasão à PUC-SP. Via Jornal da PUC

O movimento estudantil ensaiaria sua reorganização a partir de 1974, quando a ARENA sofreu uma derrota fragorosa nas eleições parlamentares. A distensão das medidas restritivas instituída pelo general Ernesto Geisel permitiu aos estudantes reconquistarem espaços de atuação, ocupando os diretórios acadêmicos e promovendo debates políticos e atividades de mobilização.

Em 1975, os estudantes da USP articularam a refundação de seu DCE, logrando neutralizar a tutela do regime. O processo de rearticulação do movimento estudantil chegou ao ápice em 1977, quando, pela primeira vez desde a Passeata dos Cem Mil, os estudantes voltaram a realizar protestos de rua.

Em 29 de abril, seis estudantes foram presos no ABC Paulista por distribuírem panfletos convocando a população a realizar um protesto no Dia do Trabalhador. O movimento estudantil respondeu convocando uma greve que mobilizou 80 mil estudantes. Manifestações contra as prisões também foram organizadas pelos alunos da USP, Unicamp e UFSCar.

Em agosto de 1977, durante um ato organizado pela Faculdade de Direito no Largo São Francisco, Goffredo da Silva Telles, professor da USP, leu a “Carta aos Brasileiros” questionando a legitimidade da ditadura. O manifesto ganhou a adesão de acadêmicos e intelectuais de todo o Brasil.

As mudanças na PUC-SP

A intervenção direta da ditadura militar sobre as universidades públicas acabou transformando algumas instituições privadas em redutos alternativos do pensamento progressista, uma vez que ainda resguardavam um certo grau de autonomia.

Foi esse o caso da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ao longo dos anos 70, a PUC registraria o crescimento das tendências políticas de esquerda em suas organizações estudantis, em paralelo com o declínio das agremiações conservadoras. Assim, a rearticulação do movimento estudantil teria na universidade um espaço privilegiado.

O alinhamento da PUC às pautas progressistas influenciou mudanças importantes nos modelos pedagógicos da universidade. A criação do “Ciclo Básico” permitiu a inclusão de disciplinas que visavam estimular o pensamento crítico. Já o projeto “Operação Periferia”, lançado em 1976, possibilitou uma aproximação do corpo acadêmico com a realidade social do país, através da criação de núcleos de assistência social e jurídica nos subúrbios de São Paulo.

Um outro importante marco na história da universidade foi a nomeação de Nadir Gouvêa Kfouri como reitora em 1977. Nadir foi a primeira mulher a assumir o comando de uma universidade católica no mundo. Assistente social de formação, ela exerceria uma gestão alinhada às reivindicações dos movimentos estudantis, enfatizando a defesa da autonomia universitária e a adoção de princípios democráticos nos processos decisórios internos.

O ENE

Plenamente integrados ao movimento estudantil, os estudantes da PUC-SP participaram ativamente dos preparativos para o 3º Encontro Nacional dos Estudantes (ENE), que tinha como propósito a reorganização da UNE. O encontro estava previsto para ocorrer na USP, mas o coronel Erasmo Dias, secretário de Segurança Pública do estado de São Paulo, foi alertado sobre o evento por agentes infiltrados.

Após ordenar o bloqueio das rodovias paulistas, visando interceptar e prender os estudantes oriundos de outros estados, o coronel Dias iniciou uma operação para impedir a realização do encontro. No dia 21 de setembro de 1977, na véspera do ENE, 15 mil policiais cercaram os campi da USP, FGV e PUC, bloqueando a entrada dos estudantes.

Para distrair os policiais, os estudantes da USP realizaram uma manobra diversionista, simulando que o encontro estaria sendo realizado na Faculdade de Medicina da Avenida Doutor Arnaldo, ao mesmo tempo em que manifestações relâmpago eram organizadas em vários bairros de São Paulo.

A manobra permitiu que os representantes do movimento estudantil mudassem o local do encontro para o campus da PUC, onde se reuniram e deram início às deliberações. Durante o encontro, os estudantes criaram a comissão pró-UNE e estabeleceram as diretrizes para a reorganização da entidade.

A invasão

Após a realização do encontro, mais de 2.000 estudantes compareceram a um ato público na TUCA, o Teatro da PUC, onde seria feita a leitura de uma carta aberta. Antes que o ato fosse concluído, entretanto, o campus foi invadido por um contingente de 900 homens da tropa de choque e agentes do DOPS.

Comandada por Erasmo Dias, a operação foi marcada pela brutalidade. Tanques de guerra avançaram sobre o campus, enquanto policiais espancavam estudantes com cassetetes elétricos e lançavam bombas incendiárias de fósforo branco contra a multidão.

Estudantes, professores e funcionários da universidade foram retirados de suas salas e locais de trabalho, agredidos e levados em fila indiana até o estacionamento. Empregadas domésticas que estavam tendo aulas de alfabetização na Casa Paroquial também foram espancadas e presas.

Cerca de 1.500 pessoas foram detidas e submetidas a uma triagem. Desse total, ao menos 514 discentes, identificados como lideranças estudantis ou registrados em listas de “subversivos”, foram levados para as carceragens do DOPS e do Batalhão Tobias de Aguiar, sede da ROTA. Trinta e sete estudantes foram indiciados com base na Lei de Segurança Nacional.

Dezenas de estudantes ficaram feridos e 16 precisaram ser hospitalizados, incluindo alunos queimados pelas bombas incendiárias ou pisoteados durante o tumulto. Os casos mais graves foram os das alunas Maria Cristina Raduan e Graziela Eugênia Augusto, que ficaram internadas por mais de um mês. Maria Cristina teve de passar por cinco cirurgias e Graziela sofreu uma grave infecção após inalar a fumaça das bombas de fósforo branco.

Informada sobre a invasão, a reitora Nadir Kfouri se dirigiu imediatamente à universidade, onde confrontou os policiais. Abordada pelo coronel Erasmo Dias, recusou-se a cumprimentá-lo. “Não dou a mão a assassinos”, explicou. Nadir se esforçou em denunciar o ataque à imprensa e instituiu um inquérito para apurar os abusos cometidos durante a invasão.

O ataque à PUC causou indignação na comunidade acadêmica e foi denunciado internacionalmente. O arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns estava na Europa na ocasião e tratou de informar pessoalmente ao papa sobre o ocorrido.

Sob pressão, a Assembleia Legislativa de São Paulo instaurou uma Comissão Especial de Inquérito para apurar os fatos, mas nenhum agente do estado foi punido. A repercussão negativa do episódio, contudo, serviu para atenuar a agressividade do regime contra o movimento estudantil. A PUC seria a última universidade a ser invadida pelos agentes da ditadura.

O movimento estudantil seguiu se reorganizando e ampliando a cooperação com outros setores da sociedade, sobretudo as organizações sindicais. Nadir Kfouri foi reeleita para um segundo reitorado, comandando a adesão da PUC-SP ao movimento pela redemocratização e às Diretas Já.

Erasmo Dias, o coronel que comandou a invasão, seguiu carreira na política, exercendo sucessivos mandatos como deputado estadual e federal. Ele faleceu em 2010, aos 85 anos. Em 2023, Erasmo Dias foi homenageado pela gestão Tarcísio de Freitas, que sancionou uma lei batizando uma rodovia no interior paulista com o nome do coronel.