Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Em um marco histórico para o desenvolvimento socioeconômico da Índia, o estado de Kerala anunciou, no último dia 1º de novembro, a erradicação da pobreza extrema em todo o seu território. O anúncio foi feito pelo chefe de governo de Kerala, Pinarayi Vijayan, do Partido Comunista da Índia-Marxista (PCI-M).

Kerala é o primeiro estado indiano a erradicar a miséria — e o tamanho da façanha impressiona. Até meados da década de 1970, cerca de 60% da população do estado vivia abaixo da linha da pobreza.

A notícia não é um fato isolado. Da taxa de alfabetização à mortalidade infantil, Kerala é hoje o estado que concentra os melhores indicadores sociais da Índia. E não é difícil compreender o fator que impulsionou essa transformação. Há mais de meio século, Kerala tem sido majoritariamente governado pela esquerda, com dois partidos comunistas vencendo as eleições.

A esquerda em Kerala

A ascensão da esquerda em Kerala remonta à década de 1920, quando os trabalhadores e camponeses começaram a se articular politicamente para organizar a luta anticolonial contra o domínio britânico, questionar as opressões de casta, classe e gênero e as superstições religiosas que serviam ao controle social.

A Grande Depressão, iniciada em 1929, teve impactos devastadores na economia indiana. Em Kerala, a queda drástica nos preços das commodities e a redução da demanda internacional pelos produtos locais levaram milhares de agricultores à ruína.

A crise incitou a agitação social em Kerala. Grandes insurreições camponesas emergiram nas regiões de Malabar, Cochin e Travancor e lideranças como Krishna Pillai e E.M.S. Namboodiripad se dedicaram a organizar sindicatos e associações camponesas.

A partir da década de 1930, Kerala se tornou sede de vários movimentos sociais. Essas organizações se uniriam para formar uma expressiva tendência socialista, batizada de “Partido Socialista do Congresso”, tendo Govindan Nair como secretário-geral. Essa tendência passaria a operar dentro dos quadros do Congresso Nacional Indiano (CNI), o partido que congregava os principais movimentos independentistas do país.

Evidenciando sua forte base popular, o Partido Socialista do Congresso conseguiu obter a maioria dos assentos no Comitê Parlamentar de Kerala Pradesh. Não obstante, a facção passou a ter constantes atritos com a cúpula do CNI, que a julgava demasiadamente radical.

Na década de 1940, as divergências em relação aos princípios da Satyagraha (doutrina que pregava a resistência pacífica) e as críticas ao movimento de resistência não violenta liderado por Mahatma Gandhi levaram à expulsão da tendência socialista do CNI. Os socialistas então se reagruparam, inaugurando a seção local do Partido Comunista da Índia (PCI).

O golpe de 1959

Em 1957, em um triunfo histórico, o Partido Comunista da Índia venceu a eleição para administrar o estado de Kerala. Logo após tomar posse, o chefe de governo Namboodiripad anunciou uma série de reformas de grande impacto, incluindo a estatização de escolas particulares, um generoso reajuste salarial dos servidores e a ampliação dos direitos trabalhistas.

Ainda em 1957, o governo de Kerala anunciou uma nova Lei de Relações Agrárias — uma proposta avançada de reforma agrária, que limitava a posse da terra a 15 acres por família, prevendo a desapropriação e redistribuição das áreas excedentes. O projeto também previa a anulação das dívidas dos pequenos proprietários rurais, a redução do preço dos aluguéis e novas normas para proteger arrendatários de despejos abusivos.

Embora populares entre camponeses e operários, as propostas do PCI enfrentaram a enfurecida oposição dos setores conservadores. Essa oposição culminou na criação de um movimento anticomunista conhecido como “Vimochana Samaram” — ou “Luta pela Libertação” — congregando empresários, a elite das castas Nair, líderes da Igreja Católica e da Liga Muçulmana da União Indiana.

O movimento logo passou à articulação golpista, pressionando abertamente pela deposição do governo de Kerala. Além do respaldo da burguesia indiana, o “Vimochana Samaram” contou com apoio da CIA, que ajudou a financiar a agitação antigovernamental. Os protestos se tornaram cada vez mais violentos, culminando na morte de sete pessoas em uma manifestação.

Em 31 de julho de 1959, o primeiro-ministro Jawaharlal Nehru ordenou a intervenção em Kerala. O governo do PCI foi deposto e o estado passou a ser administrado por gestores apontados pelo governo indiano. A reforma agrária instituída por Namboodiripad foi julgada inconstitucional e revertida.

Uma manifestação de militantes do Partido Comunista da Índia-Marxista em Kerala
wikimedia

As conquistas da Frente Democrática de Esquerda

O golpe de 1959 impediu a concretização das reformas do PCI, mas o partido seguiu contando com respaldo popular. Oito anos depois, em 1967, os comunistas venceram as eleições parlamentares locais, conquistando a maioria dos assentos na Assembleia Legislativa de Kerala.

A vitória, paradoxalmente, ocorreu em um momento de crise do PCI. As divergências teóricas insufladas pelo rompimento entre a China e a União Soviética resultaram na formação de uma importante dissidência dentro do partido. Em 1964, esse grupo deixou a agremiação e fundou o Partido Comunista da Índia-Marxista (PCI-M).

A despeito da cisão, as duas agremiações conseguiram evitar o sectarismo e estabeleceram um bem-sucedido projeto de colaboração. Elas se uniram na Frente Democrática de Esquerda, uma coligação de partidos progressistas que venceu a maioria dos processos eleitorais organizados em Kerala desde a década de 1970, transformando o estado no principal reduto da esquerda indiana.

O forte apoio popular dos eleitores de Kerala resulta dos bons resultados das reformas sociais implementadas nas gestões da esquerda. Após seu retorno ao governo, Namboodiripad conseguiu implementar um novo projeto de reforma agrária.

Embora bem mais moderado do que a proposta de 1957, o projeto permitiu a redistribuição de milhões de hectares de terras, abolindo a estrutura fundiária semifeudal e contribuindo para a expressiva redução da pobreza nas áreas rurais.

O governo de Kerala incentivou a expansão das cooperativas agrícolas e fomentou o sucesso das fazendas coletivas de Wayanad, um sistema de gestão comunal que tem servido de inspiração para programas congêneres em todo o mundo.

A esquerda em Kerala conseguiu promover a universalização dos sistemas de saúde e educação e criou abrangentes programas sociais e medidas de apoio aos trabalhadores. Teve também um papel central e pioneiro na desconstrução do sistema de castas e criou a mais avançada legislação sobre igualdade de gênero do país.

Kerala é hoje o estado mais desenvolvido da Índia, com um Índice de Desenvolvimento Humano (0,790) bem superior à média nacional (0,685) e maior do que o de países como Brasil, Colômbia e Ucrânia. É o estado com a maior expectativa de vida (77,3 anos) e a maior taxa de alfabetização (96,2%) da Índia. Possui também as menores taxas de mortalidade infantil (12 mortes por 1.000 nascidos vivos) e de homicídios do país (1,1 homicídios por 100.000 habitantes).

O apoio popular à esquerda é visível no cotidiano de Kerala — e não apenas nas eleições. Estrelas, foices e martelos estão por toda parte, até no design dos pontos de ônibus. Bandeiras vermelhas e citações famosas de teóricos do socialismo decoram as esquinas das cidades.

Os muros são pintados com representações de Karl Marx, Lenin, Stalin, Fidel Castro e Che Guevara e as ruas são batizadas com nomes como Friedrich Engels e Ho Chi Minh. Em Kerala, o “fantasma do comunismo” não assusta mais ninguém.