Carlos Marighella: a trajetória de um revolucionário
Guerrilheiro e fundador da Ação Libertadora Nacional, militante comunista tornou-se símbolo da resistência armada contra ditadura militar brasileira
Há 56 anos, em 4 de novembro de 1969, o revolucionário Carlos Marighella era assassinado por agentes da ditadura militar brasileira. Ele tombou durante uma emboscada organizada por Sérgio Paranhos Fleury, delegado do DOPS.
Marighella iniciou sua militância política ainda na juventude, participando da agitação estudantil e operária. Militante do Partido Comunista (PCB), ele seria alvo das ofensivas lançadas por Vargas após a insurreição de 1935, sendo submetido a vários anos de prisão e tortura.
Convertido em um dos principais dirigentes do PCB, Marighella integrou a histórica bancada comunista eleita para compor a Assembleia Constituinte de 1946, destacando-se pela luta pelos direitos sociais e trabalhistas.
Após o golpe de 1964, Marighella fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN), uma das organizações mais combativas da luta armada contra a ditadura. Ele foi responsável por algumas das operações mais espetaculares da guerrilha urbana e chegou a ser rotulado como o “inimigo número um” do regime.
Juventude e formação
Carlos Marighella nasceu em 5 de dezembro de 1911 em Salvador, Bahia. Era o primogênito dos oito filhos de Augusto Marighella e Maria Rita dos Santos. Seu pai era um imigrante italiano que chegou ao Brasil no início do século 20, ativo como mecânico e operário da indústria metalúrgica. A mãe, empregada doméstica, era descendente direta de africanos hauçás, trazidos do norte da Nigéria para o Brasil como escravizados.
A família vivia em uma casa na Baixa dos Sapateiros, uma região comercial no centro histórico de Salvador. Desde cedo, os pais de Marighella o incentivaram a ler, presenteando-o com obras de autores nacionais e estrangeiros. O jovem foi bastante influenciado pela visão política do pai, simpatizante das ideias anarquistas.
Marighella frequentou o ensino primário no Colégio Carneiro Ribeiro. Posteriormente, ingressou no Ginásio da Bahia, a única escola pública de ensino secundário então existente em Salvador. Lá, ele se destacou como um dos melhores alunos de sua turma.
Data desse período um de seus registros escolares mais conhecidos — uma prova de física respondida em forma de versos, que ficaria exposta no Ginásio da Bahia até o golpe de 1964. O jovem cursou um ano a mais após o término do ensino secundário, obtendo o bacharelado em Ciências e Letras, o que o habilitava a atuar como professor e a dar aulas particulares.
Em 1929, Marighella ingressou no curso de Engenharia Civil na Escola Politécnica da Bahia. Foi nesse período que ele iniciou sua militância política, participando de atos, manifestações e congressos convocados pelo movimento estudantil.
Marighella foi preso pela primeira vez em 1932, como punição por ter participado da ocupação da Faculdade de Medicina da Bahia — um protesto contra o autoritarismo do governo de Getúlio Vargas. Ele também havia escrito um famoso poema onde tecia críticas ao interventor Juracy Magalhães.
O estudante logo foi liberado, mas se tornou alvo de um processo interno. Em 1934, Marighella seria punido com uma suspensão, acusado de ter subtraído documentos do inquérito em que era investigado.
Militância no PCB e as prisões na Era Vargas
Aprofundando-se na militância, Marighella passou a acompanhar de perto as atividades do movimento operário. Ainda em 1934, ele se filiou ao Partido Comunista do Brasil (antigo PCB).
Estabelecido em Niterói em 1922, o PCB enfrentava grandes obstáculos para consolidar suas atividades em outras regiões do país — incluindo a repressão do governo, que jogou o partido na ilegalidade apenas três meses após sua fundação. No início dos anos 30, o PCB baiano tinha presença bastante modesta, limitada a algumas dúzias de militantes.
Marighella abandonou o curso de engenharia para se dedicar integralmente às atividades políticas. Ele passou um ano ajudando a articular as ações do PCB na Bahia e se converteu em um dos principais dirigentes locais da agremiação. Em 1935, por orientação do partido, Marighella se mudou para o Rio de Janeiro, assumindo tarefas repassadas diretamente pela secretaria nacional.
A chegada à capital coincidiu com o recrudescimento da repressão anticomunista da Era Vargas. O PCB havia ajudado a criar a Aliança Nacional Libertadora — ANL, uma frente antifascista que fazia oposição tanto ao governo brasileiro quanto ao movimento integralista. Em novembro de 1935, militares ligados à ANL deram início a uma insurreição. O levante foi esmagado em poucos dias, mas justificou uma violenta ofensiva do governo, resultando na decretação de estado de sítio e na prisão de milhares de militantes comunistas.
Suspeito de participação na revolta, Marighella foi preso em 1936. Ficou sob custódia da polícia política chefiada por Filinto Müller, sendo torturado por 23 dias seguidos. Apesar da brutalidade dos interrogatórios, Marighella se negou a delatar seus companheiros. O líder comunista permaneceu encarcerado por um ano. Foi libertado em junho de 1937, no contexto da “macedada” — a medida editada pelo ministro da Justiça, José Carlos de Macedo Soares, que determinou a soltura dos presos políticos não condenados.
Em novembro de 1937, utilizando o farsesco “Plano Cohen” como pretexto, Getúlio Vargas liderou o golpe que deu início à ditadura do Estado Novo. Marighella permaneceria atuando na clandestinidade, colaborando com Joaquim Câmara Ferreira na rearticulação do partido. Ele recebeu a tarefa de combater as frações trotskistas e assumiu a direção da revista Problemas.
Em 1939, Marighella foi novamente preso, acusado de “atividades subversivas”. Ficou detido por seis anos, a princípio na prisão de Fernando de Noronha e depois no presídio na Ilha Grande. Durante o cárcere, o líder comunista organizou uma “universidade popular”, dando aulas sobre diversos temas para mais de 180 detentos.
Mesmo estando preso, Marighella foi eleito integrante do Comitê Nacional do PCB em 1943, durante a Conferência da Mantiqueira. Ele foi solto em abril de 1945, beneficiado pela anistia concedida durante o processo de redemocratização.
A bancada comunista
A reorganização do PCB em 1943 e o cenário político favorável possibilitaram que o partido experimentasse uma expansão sem precedentes de sua base de apoio após o fim da Segunda Guerra Mundial.
A vitória da União Soviética sobre os nazistas e a luta em prol da redemocratização conferiram amplo prestígio ao movimento comunista, igualmente beneficiado por uma estratégia bem-sucedida de difusão da imprensa operária e de articulação junto aos sindicatos, entidades estudantis e movimentos sociais. Posto na legalidade, o PCB se converteu em um partido de massas, atraindo mais de 200.000 filiados.
O crescimento do PCB se refletiu nas eleições realizadas em 1945. Iedo Fiúza, o candidato do partido ao pleito presidencial, angariou 10% dos votos. Nas eleições parlamentares, o PCB conseguiu eleger 14 deputados federais e um senador.
Carlos Marighella foi eleito deputado federal pelo PCB da Bahia, integrando a histórica bancada comunista da Assembleia Nacional Constituinte, ao lado de nomes como Luiz Carlos Prestes, Gregório Bezerra, João Amazonas e Jorge Amado.
Durante seu mandato, Marighella se destacou como um dos deputados mais atuantes, usando a tribuna para mobilizar a população em prol das pautas populares. Ele instituiu um programa voltado à defesa dos direitos trabalhistas, à expansão dos serviços públicos e ao controle estatal sobre os recursos energéticos. Foi também o autor da ementa que propôs a criação do Instituto Nacional do Petróleo.
A carreira do deputado, no entanto, logo seria interrompida. Em 1947, a justiça anulou o registro eleitoral do PCB. No ano seguinte, todos os parlamentares do partido tiveram seus mandatos cassados. Alinhando-se à política anticomunista dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, o governo de Eurico Gaspar Dutra desatou mais uma onda de repressão à esquerda radical.
Destituído de seu mandato, Marighella retornou à militância clandestina, atuando no movimento sindical e nas organizações populares. Foi nesse período que nasceu seu único filho, Carlos Augusto, fruto de seu romance com a operária Elza Sento Sé. Posteriormente, Marighella se envolveu com Clara Charf, uma militante do PCB que seria sua companheira pelo resto da vida.
Dos anos 50 ao golpe de 1964
Integrado à Comissão Executiva do Comitê Central do PCB, Marighella atuou nas mais importantes mobilizações populares dos anos 50, incluindo a campanha em prol do monopólio estatal do petróleo e os protestos contra o envio de soldados brasileiros para lutar na Guerra da Coreia.
O comunista também teve papel central na organização da histórica Greve dos 300.000 que parou São Paulo em março de 1953. Motivada pelo descontentamento dos trabalhadores com o aumento do custo de vida, a paralisação resultaria na queda do ministro do Trabalho Segadas Viana, substituído por João Goulart.
Também em 1953, Marighella viajou para a China, a convite do Partido Comunista chinês. Passou mais de um ano nesse país, acompanhando de perto a gestão desenvolvida após o triunfo do movimento revolucionário. Em Pequim, encontrou-se com Mao Zedong e participou do congresso da Organização de Solidariedade dos Povos da África, Ásia e América Latina.
De volta ao Brasil, Marighella se dedicou à produção intelectual e à difusão das ideias revolucionárias. Em 1958, ele escreveu “Alguns Aspectos da Renda da Terra no Brasil”, uma sucinta análise crítica sobre as questões agrárias, a dinâmica e os efeitos perversos da concentração fundiária e do modelo econômico agroexportador.
O dirigente baiano tomou parte dos acalorados debates provocados pelo 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética em 1956. Durante o encontro, o premiê Nikita Kruschev exortou a rejeição ao legado de Josef Stalin, atribuindo uma série de crimes ao seu antecessor.
As denúncias de Kruschev abalaram profundamente o movimento comunista internacional e levaram à cisão do PCB. O partido se dividiu em dois blocos, com posições antagônicas sobre a nova orientação política de Moscou. Em 1962, um grupo de dissidentes deixou a agremiação (já rebatizada como “Partido Comunista Brasileiro”) e fundou o PCdoB.
Marighella se perfilou ao grupo alinhado às novas diretrizes de Moscou. A mudança na linha política do partido seria referendada pelo V Congresso do PCB, organizado em 1960. Buscando garantir sua legalização, a agremiação adotou a defesa da transição pacífica para o socialismo, vinculando-a à manutenção das instituições democráticas liberais.
Embora fosse um dos maiores defensores da campanha pela legalização e apoiasse as reformas de João Goulart, Marighella se tornou um crítico das posturas excessivamente moderadas do partido, denunciando a negligência da direção do PCB em relação às suas bases e apontando o risco de ruptura institucional.
O golpe de 1964 e a saída do PCB
Os desentendimentos entre Marighella e a direção do PCB se agravaram a partir do golpe militar de 1964. A deposição de João Goulart foi seguida pela instauração de uma ditadura militar que se prolongaria por 21 anos, desatando uma sequência interminável de retrocessos.
Em 9 de maio de 1964, Marighella foi localizado por agentes do DOPS dentro de um cinema no Rio de Janeiro. Ao enfrentar os policiais com socos e gritos de “abaixo a ditadura”, o revolucionário baiano foi baleado, recebendo um tiro à queima-roupa no peito. Foi socorrido no Hospital Souza Aguiar e depois levado mais uma vez ao cárcere na Penitenciária Lemos Brito.
Libertado por ordem judicial após três meses, Marighella passou a defender a luta armada contra a ditadura. Em 1965, ele escreveu Por Que Resisti à Prisão, fazendo uma denúncia enfática contra o regime e criticando a inércia do PCB diante da quartelada.
No ano seguinte, Marighella escreveu A Crise Brasileira, um trabalho teórico analisando a conjuntura nacional a partir da observação da estrutura de classes. Mais uma vez, o revolucionário criticava o PCB, acusando o partido de se acomodar na ilusão da política institucional burguesa. Em 1966, Marighella renunciou ao seu cargo na Comissão Executiva do partido, detalhando os motivos de seu descontentamento na chamada “Carta à Executiva”.
Marighella não era uma voz isolada no PCB. A recusa do partido em apoiar a luta armada causou amplo descontentamento entre suas bases e levou à divisão do Comitê Central. Os dissidentes se agruparam em torno da “corrente revolucionária”, que congregava nomes como Joaquim Câmara Ferreira, Jacob Gorender e Mário Alves, entre outros.
Contrariando a recomendação do partido, Marighella viajou para Cuba em 1967, a fim de participar da 1ª Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS). Após a estadia em Havana, escreveu Algumas Questões Sobre a Guerrilha do Brasil, trabalho que seria dedicado à memória do revolucionário Che Guevara, assassinado nesse mesmo ano na Bolívia.

Carlos Marighella retratado por volta de 1946
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro
A ALN e a luta armada
A viagem de Marighella para Cuba foi considerada a gota d’água. Em 1967, o líder baiano foi expulso do PCB. O mesmo ocorreria com os demais dirigentes agrupados na “corrente revolucionária”.
Em fevereiro de 1968, Marighella escreveu Chamamento ao Povo Brasileiro, conclamando a população à resistência contra o regime. Ao lado de Joaquim Câmara Ferreira, ele fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN), movimento guerrilheiro que se consagraria como uma das organizações mais combativas da luta armada contra o regime.
A ALN seria responsável por algumas das ações mais ousadas perpetradas pela resistência. Em outubro de 1968, em uma operação conjunta com Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), os guerrilheiros executaram Charles Chandler, oficial do exército dos Estados Unidos que prestava assessoria aos órgãos de repressão da ditadura.
Em 1969, Marighella publicou o Minimanual do Guerrilheiro Urbano, uma obra com orientações sobre estratégias e táticas de guerrilha. Mimeografada e fotocopiada, a obra foi fartamente distribuída entre os movimentos revolucionários de oposição à ditadura. O líder comunista também redigiu outros textos abordando a luta armada, incluindo “Sobre a Organização dos Revolucionários”.
Em agosto de 1969, os combatentes da ALN tomaram as instalações da Rádio Nacional em São Paulo, com o propósito de transmitir o manifesto de Marighella intitulado “Ao Povo Brasileiro”, denunciando os crimes da ditadura e explicando a motivação da resistência armada. A transmissão durou 30 minutos.
A mais espetacular ação da ALN ocorreria três semanas depois, em setembro de 1969. Em uma operação conjunta com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), os guerrilheiros sequestraram Charles Burke Elbrick, o embaixador dos Estados Unidos no Brasil. Em troca da soltura do diplomata, a ALN exigiu a libertação de 15 presos políticos e a leitura de um manifesto em rede nacional.
A captura do embaixador teve enorme repercussão e constrangeu a ditadura. Decidido a esmagar a ALN, o governo militar mobilizou todo o seu aparato repressivo e lançou uma série de operações para capturar e eliminar os guerrilheiros.
O martírio
Os militares brasileiros receberam do governo norte-americano a informação de que Carlos Marighella mantinha contatos frequentes com frades dominicanos de São Paulo. Em 1º de novembro de 1969, os agentes prenderam os frades Ivo e Fernando de Brito. Levados até o Centro de Inteligência da Marinha (Cenimar), os religiosos foram brutalmente torturados e acabaram por confessar que tinham um encontro marcado com o guerrilheiro comunista.
Carlos Marighella foi assassinado na noite de 4 de novembro de 1969. Após confirmar o encontro com os frades, ele foi atraído para uma emboscada na Alameda Casa Branca, em São Paulo, sendo fuzilado por agentes do DOPS. A operação foi coordenada pelo delegado Sérgio Fleury, um dos mais infames assassinos da ditadura.
Em 2008, o Ministério da Justiça reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de Marighella e, em 2012, a Comissão da Verdade lhe concedeu a anistia post mortem.
Marighella foi homenageado por Caetano Veloso com a canção Um Comunista e também pelos Racionais MC’s com a música Mil Faces de um Homem Leal. O guerrilheiro foi tema de três documentários e dois longa-metragens.
Seu Minimanual do Guerrilheiro Urbano foi traduzido para vários idiomas e publicado em dezenas de países, consagrando-se como um dos melhores compêndios sobre guerrilha em ambiente urbano — a ponto de ser integrado ao material didático da CIA, como referência para elaborar ações de contrainteligência.
Marighella segue sendo um dos maiores expoentes e influências da esquerda brasileira e um símbolo poderoso de resistência à arbitrariedade e de dedicação inarredável às causas populares, sintetizados em um de seus mais famosos adágios: “a única luta que se perde é aquela que se abandona”.























