Sábado, 6 de dezembro de 2025
APOIE
Menu

Há 113 anos, em 22 de outubro de 1912, tinha início a Guerra do Contestado, a maior revolta camponesa da história do Brasil. O conflito opôs posseiros, sitiantes e trabalhadores sem-terra às tropas do Exército Brasileiro e às forças policiais de Santa Catarina e do Paraná.

Expulsos de suas terras por empresários e latifundiários, os camponeses da região do Contestado se organizaram em torno de um movimento messiânico, seguindo a liderança do monge José Maria.

A exemplo de Canudos, os trabalhadores rurais criaram uma comunidade autônoma, baseada na cooperação e em princípios igualitários. O movimento, no entanto, incomodou os coronéis, os latifundiários e o governo brasileiro.

Rotulados como fanáticos perigosos que pretendiam derrubar a república, os sertanejos foram brutalmente atacados pelo Exército. Eles resistiram às seis primeiras expedições militares, mas foram subjugados e massacrados na ofensiva derradeira, após o prolongado cerco do general Setembrino de Carvalho.

O Contestado e a Estrada de Ferro

Estendendo-se por uma área de aproximadamente 40 mil quilômetros quadrados, a região entre o sudoeste paranaense e o centro-oeste catarinense era alvo de uma longa disputa territorial. A indefinição das divisas remontava ao período colonial, mas ganhou relevância no fim do século 19, quando os estados de Santa Catarina e Paraná passaram a disputar a soberania sobre a área. Por esse motivo, a região recebeu o nome de “Contestado”.

Além das disputas territoriais, o Contestado também era marcado por conflitos fundiários. Com a Proclamação da República, os governos estaduais assumiram a jurisdição sobre as terras devolutas e passaram a beneficiar coronéis e os grandes produtores rurais. Desprovidos de títulos de propriedade, os pequenos lavradores e posseiros que haviam se instalado na região passaram a sofrer com o crescente assédio dos fazendeiros, sendo expulsos de suas terras para permitir a formação de latifúndios.

A situação se agravou ainda mais a partir de 1908, quando começaram as obras locais da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande. O governo brasileiro havia confiado a construção da ferrovia à Brazil Railway Company, uma empresa pertencente ao magnata norte-americano Percival Farquhar.

Além de ser contratado para executar as obras, Farquhar foi agraciado com a concessão de terras, ganhando o direito de explorar uma faixa de 15 quilômetros de largura em ambos os lados da ferrovia, ao longo de todo o traçado. Os pequenos agricultores que ocupavam essas faixas também foram forçados a abandonar suas terras.

Após a conclusão da estrada de ferro, Farquhar empreendeu mais ataques aos camponeses do Contestado. Outra empresa de seu grupo, a Southern Brazil Lumber & Colonization, recebeu autorização do governo para explorar madeira em uma área de 18.000 quilômetros quadrados.

A companhia seria responsável por uma verdadeira catástrofe socioambiental, derrubando mais de 15 milhões de araucárias, impulsionando a grilagem e privando milhares de camponeses do uso da terra.

Os pequenos agricultores e posseiros não foram os únicos prejudicados pelas ações de Farquhar. A construção da ferrovia havia atraído milhares de pessoas de várias partes do Brasil para o Contestado. Com o término das obras, a maior parte desses trabalhadores ficou abandonada, sem ter acesso à terra ou outras ocupações, agravando ainda mais a crise social na região.

Camponeses cercados pelas tropas federais durante a Guerra do Contestado
wikimedia

O movimento messiânico

Desassistidos, muitos dos trabalhadores do Contestado encontraram conforto, apoio e solidariedade em torno de um incipiente movimento religioso.

Esse era um fenômeno relativamente comum no Brasil entre o fim do século 19 e as primeiras décadas do século 20. Nos grotões e áreas remotas, onde o Estado estava ausente e a Igreja Católica tinha pouca presença institucional, vicejaram exemplos do chamado “messianismo rústico”, fortemente influenciado pelas tradições religiosas populares.

Vários desses movimentos messiânicos resultaram na criação de formas alternativas de organização comunal, calcadas em princípios igualitários, buscando fugir da opressão dos coronéis e latifundiários. Camponeses se reuniam em torno de lideranças místicas e criavam comunidades baseadas na cooperação e na divisão igualitária dos recursos. O mais famoso desses movimentos foi a comunidade de Canudos, fundada no sertão baiano por Antônio Conselheiro.

No Contestado, havia desde o século 19 uma tradição de monges que serviam como guias espirituais e lideranças comunitárias. É o caso de João Maria de Agostini, um peregrino de origem italiana que anunciava a chegada de um “reino encantado”, onde os pobres seriam recompensados e a justiça finalmente prevaleceria.

Agostini foi sucedido por um Atanás Marcaf, um monge de origem síria que adotou o pseudônimo João Maria de Jesus. Marcaf anunciava a chegada do Apocalipse e dizia que a punição divina se manifestaria na forma de guerras sangrentas. Ele identificava o recém-proclamado regime republicano como “obra do diabo” e afirmava que a restauração da monarquia era a vontade de Deus.

O discurso de que a república era uma “obra demoníaca” encontrava ampla aceitação entre os camponeses do Contestado. Afinal, a maioria dos posseiros fora expulsa de suas terras após a proclamação do regime republicano, ao passo que a monarquia tolerava a presença de pequenos agricultores.

O pregador sírio desapareceu sem deixar rastros em 1908, mas logo foi sucedido por um terceiro monge, que se apresentou com o nome de José Maria de Santo Agostinho. O novo líder religioso foi tratado como uma reencarnação do velho beato e ganhou reputação de ser capaz de realizar milagres. Ele teria ressuscitado uma jovem e curado a esposa do coronel Francisco de Almeida, que sofria de uma doença grave.

Além de seu papel de guia espiritual, José Maria se converteu em uma importante liderança política no Contestado. Suas críticas à desapropriação das terras, à corrupção do governo republicano e à ganância dos latifundiários atraíram não apenas camponeses, sitiantes e posseiros, mas também fazendeiros que começavam a ser prejudicados pelo avanço do império fundiário de Percival Farquhar.

Com auxílio dos fiéis, José Maria ergueu no Contestado uma comunidade autônoma que batizou como “Quadro Santo”. O monge rejeitou a autoridade da República e das estruturas de poder estabelecidas, proclamando um reino independente. Os membros da comunidade se organizaram em um sistema de cooperação comunal, onde o comércio e o dinheiro foram abolidos e as tarefas eram organizadas por mutirões.

Os fiéis criaram uma guarda de honra para o monge chamada “Doze Pares de França”, evocando a cavalaria do imperador Carlos Magno. Camponeses ligados ao movimento ergueram novos povoados, expandindo o que eles chamavam de “monarquia celeste”.

José Maria dizia aos camponeses que o fim do mundo estava próximo. A morte não deveria ser temida, pois todos ressuscitariam a tempo de participar do derradeiro embate contra as forças do mal. Quando chegasse esse momento, o rei português Dom Sebastião retornaria, acompanhado de um exército divino que acudiria os fiéis.

Início do conflito

O rápido crescimento de Quadro Santo e das comunidades da “monarquia celeste” preocupava as autoridades governamentais. Os fiéis eram vistos como fanáticos perigosos que conspiravam contra a República e pretendiam abolir todo o sistema de poder vigente.

As tensões chegaram ao ápice em agosto de 1912, quando José Maria e 300 fiéis viajaram para a comunidade de Taquaruçu, na cidade de Curitibanos, onde participaram da Festa do Senhor Bom Jesus. O monge e seus seguidores permaneceram na cidade após o término do evento, realizando pregações e prestando assistência aos doentes.

Incomodado com a presença dos religiosos na cidade, o coronel Francisco de Albuquerque, deputado e membro da Guarda Nacional, solicitou ajuda aos governos do Paraná e de Santa Catarina para “conter os rebeldes que queriam proclamar a monarquia em Taquaruçu”.

A informação chegou aos ouvidos do presidente Hermes da Fonseca. Preocupado com a eclosão de um movimento insurgente, o mandatário ordenou o envio de tropas do Exército.

Cientes de que a repressão estava a caminho, José Maria e seus seguidores partiram para a cidade de Irani, à época um vilarejo sob jurisdição do Paraná. Em 22 de outubro de 1912, os sertanejos foram atacados por um destacamento da polícia paranaense comandado por João Gualberto.

Armados com espingardas de caça, facões e armas rudimentares, os seguidores de José Maria reagiram à ofensiva policial. A Batalha de Irani terminou com 21 mortos — 11 camponeses e 10 policiais. Entre as vítimas do embate estava o monge José Maria.

A Guerra do Contestado

O assassinato do líder religioso inflamou os ânimos os camponeses do Contestado, servindo de estopim para uma espécie de “guerra santa”. Visando consolidar a criação de seu “reino celeste”, os rebeldes se locomoveram até Taquaruçu, onde fundaram um uma nova comunidade, também assentada em princípios comunais.

O assentamento cresceu rapidamente, atraindo muitos camponeses que fugiam da miséria e da exploração nas fazendas da região. Logo iniciaram a expansão do movimento, formando novas “cidades santas” em Caraguatá, Santo Antônio, Caçador Grande, Bom Sossego, Santa Maria, Pedra Branca, São Miguel e São Pedro.

Os fiéis agora eram chefiados por Maria Rosa, uma jovem de 15 anos que afirmava receber instruções do monge José Maria em seus sonhos. A adolescente guiava os camponeses montada em um cavalo branco, portando um fuzil decorado com flores.

Em fevereiro de 1914, uma ofensiva conjunta dos governos de Santa Catarina, do Paraná e do Exército Brasileiro destruiu a comunidade de Taquaruçu. Um grupo de 750 soldados armados com metralhadoras atacou a incendiou o acampamento, matando várias pessoas. A maior parte dos insurgentes, no entanto, conseguiu fugir e se restabelecer em Caraguatá.

As tropas do Exército organizaram uma nova expedição em março de 1914, atacando violentamente o novo acampamento. Dessa vez, os soldados sofreram uma derrota humilhante. Sem conhecer a região, os militares foram surpreendidos por escaramuças e emboscadas, sendo forçados ao recuo.

Essa foi a primeira de uma série de vitórias. O Exército Brasileiro enviaria outras cinco expedições para tentar debelar o movimento, sendo derrotado em todas elas. As armadilhas e táticas de guerrilha adotadas pelos rebeldes do Contestado se mostraram muitas eficientes para neutralizar as ofensivas das tropas regulares. Além disso, os fiéis se entregavam à luta de forma apaixonada, crentes de que a morte não era o fim.

As sucessivas vitórias sobre as tropas do governo convenceram os sertanejos de que eles contavam com a proteção divina. Mais do que isso: as notícias sobre as façanhas dos rebeldes se espalharam pela região e ajudaram a arregimentar novos seguidores.

Os rebeldes chegaram a controlar uma área de 250 quilômetros quadrados na região do Contestado. Ao longo de quatro anos, realizaram uma série de ações ousadas: atacaram latifúndios e propriedade de coronéis e destruíram a serraria da Lumber, uma das empresas que atuavam nas empreitadas de Percival Farquhar. Também destruíram as instalações ferroviárias e a estação de Calmon e atacaram as cidades de Matos Costa, Curitibanos e Porto União.

A repressão

Decidido a esmagar o levante do Contestado, o governo brasileiro incumbiu o general Setembrino de Carvalho de traçar uma nova estratégia. O general chegou à região em setembro de 1914, assumindo o comando da 2ª Circunscrição Militar. Organizou então uma grande ofensiva, mobilizando quatro colunas de soldados para cercar os redutos dos camponeses.

Os militares bloquearam todos os acessos utilizados pela comunidade, impedindo que os rebeldes se deslocassem ou adquirissem alimentos e insumos. Também empregaram, pela primeira vez, aviões em operações militares de reconhecimento aéreo e vigilância.

O cerco causou o rápido desabastecimento da comunidade, levando a uma crise famélica. Enfraquecidos, doentes e com fome, os camponeses começaram a se render. Muitos eram atacados e degolados por jagunços, enviados pelos coronéis da região para auxiliar as tropas do Exército.

Em março de 1915, a coluna comandada pelo capitão Tertuliano Potiguara avançou contra o núcleo rebelde de Santa Maria, o mais numeroso acampamento rebelde. A ofensiva também contou com auxílio das tropas do tenente Estillac Leal. O ataque resultou em um banho de sangue, deixando mais de 600 mortos, incluindo a jovem Maria Rosa.

Adeodato, o último líder do Contestado, conseguiu fugir do massacre acompanhado por um grupo de rebeldes. Ele se embrenhou nas matas da região e permaneceu escondido por oito meses. Vencido pela fome, acabou se entregando em agosto de 1916, pondo fim ao levante.

A Guerra do Contestado deixou um saldo trágico. As estimativas apontam que cerca de 20.000 pessoas morreram durante o conflito, vitimados pelos combates, pelas epidemias e pela crise famélica. Adeodato foi condenado a 30 anos de cadeia. Ele foi morto em 1923, durante uma tentativa de fuga.