Sábado, 6 de dezembro de 2025
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11 de setembro de 2025 já é uma data especial para o Brasil. Pela primeira vez na história, um ex-presidente e militares de alta patente foram condenados por uma tentativa de golpe de Estado. Embora acumule mais de uma dúzia de quarteladas e intentonas, o Brasil nunca havia julgado os líderes de um movimento golpista. Sempre foram beneficiados com a anistia e com os pactos pelo esquecimento.

O ex-presidente Jair Bolsonaro foi condenado a 27 anos de prisão por cinco crimes: tentativa de golpe de Estado, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, participação em organização criminosa armada, deterioração do patrimônio público e dano qualificado. Também foram condenados sete membros da cúpula do governo, incluindo três generais e um almirante.

Ainda assim, é difícil dizer que a justiça foi feita. Bolsonaro foi responsabilizado pelas ameaças e ataques que fez às instituições do Estado. Seus atos mais perversos, no entanto, não foram alvo de escrutínio da justiça. Os crimes contra a vida permanecem impunes. E a verdade é que não faltam cúmplices pressionando pela continuidade desse tétrico legado.

Os ricos e a pandemia

7 de abril de 2021 também foi uma data histórica — ainda que com uma conotação totalmente distinta. Dois eventos ocorreram nessa ocasião. Durante o dia, o Portal Transparência divulgou que, pela primeira vez, o número de mortes registrados na Região Sudeste do Brasil ultrapassou o número de nascimentos. Com 13.998 partos e 15.967 óbitos, o Sudeste apresentou um decréscimo populacional de quase duas mil pessoas na primeira semana de abril.

Na mesma data, porém à noite, o então presidente Jair Bolsonaro e seus ministros participaram de um jantar com grandes empresários brasileiros. Não houve cobranças sobre a situação de descontrole sanitário ou sobre o fato de que o Brasil concentrava 30% de todas as mortes diárias decorrentes da covid-19 — mesmo respondendo por apenas 2,7% da população mundial.

Ninguém questionou o mandatário sobre o insólito fato de que o país agora estava fabricando mais caixões do que berços. Não houve cobranças sobre a notícia divulgada no mesmo dia que o Brasil havia ultrapassado a marca de 340 mil mortes pela pandemia. Ao contrário: as falas de Bolsonaro e de seu ministeriado foram efusivamente aplaudidas pela claque de banqueiros, barões da mídia, donos de construtoras e industriais.

Não é difícil compreender o apoio de bilionários e multimilionários a Bolsonaro. Enquanto a classe trabalhadora enxergava o seu poder de compra derreter e era forçada a substituir carne vermelha por ovo e a procurar restos de pelanca na fila dos ossos, os ultra-ricos aumentavam sua fatia na concentração de renda nacional com uma voracidade espantosa.

No mesmo mês em que a Rede PENSSAN divulgava seu relatório mostrando que 55,2% dos brasileiros se encontravam em situação de insegurança alimentar e 20 milhões de pessoas estavam passando fome, a Forbes publicava seu ranking atualizado, mostrando que apenas no primeiro trimestre de 2021, o Brasil ganhou 11 novos bilionários. O patrimônio dos super-ricos cresceu mais de 30% só no primeiro ano da pandemia.

Bolsonaro sempre foi Bolsonaro

Na imprensa liberal, não faltaram os “ingênuos de ocasião” — formadores de opinião “arrependidos”, que alegavam que “não tinham como saber” que Bolsonaro era Bolsonaro e, cinicamente, tentaram esconder sob a máscara do clamor civilizatório sua própria responsabilidade no processo de destruição da sociedade brasileira.

Afinal, Bolsonaro nunca negou que era Bolsonaro. Elogios à ditadura, à tortura e à execução sumária sempre foram elementos presentes na sua retórica. Em uma entrevista concedida em 1999 à TV Bandeirantes, o ex-capitão do Exército disse explicitamente que era a favor de fomentar uma guerra civil no Brasil para “matar uns 30 mil”. Durante uma coletiva de imprensa datada junho de 2017, Bolsonaro reafirmou com todas as letras seu ideário: “minha especialidade é matar, não é curar ninguém.”

A trajetória parlamentar do ex-capitão ao longo de quase três décadas também nunca impediu uma leitura correta sobre a sua mentalidade eugenista e sua obsessão pelo controle demográfico. O então deputado apresentou projetos de lei visando instituir a esterilização de pessoas pobres. “Pobre no Brasil só serve pra votar, com título de eleitor na mão e diploma de burro no bolso”, afirmou enfaticamente em uma ocasião.

Em outro discurso, criticando o “crescimento populacional exagerado”, reclamou do fato de o país ser muito populoso: “Não tem lugar para deitar na praia. É gente demais! Temos que colocar um ponto final nisso se quisermos produzir felicidade em nosso país.”

O cinismo da imprensa liberal consiste justamente na admoestação acrítica que tenta estabelecer uma suposta incompatibilidade entre apoiar Bolsonaro pela “agenda econômica” e relevar sua natureza autoritária. É o contrário: boa parte da elite brasileira apoiou Bolsonaro justamente porque sua agenda era a que conciliava liberalismo econômico e autoritarismo de extrema-direita.

A aliança entre liberais e o protofascismo militarista não é uma novidade. Ela sempre ressurge de forma mais explícita quando o capitalismo passa por uma crise econômica ou se vê ameaçado pelo avanço de iniciativas potencialmente danosas aos interesses da plutocracia. Foi o que ocorreu na ascensão do nazifascismo europeu. Foi o que voltou a acontecer durante as ditaduras militares da Guerra Fria. É o que está acontecendo agora, em meio à ascensão da “nova direita”, turbinada pela arquitetura de algoritmos das redes sociais.

Coveiros sepultam uma vítima da pandemia de covid-19 no Cemitério de Vila Alpina, São Paulo
Gustavo Basso/Wikimedia Commons

Thomas Malthus segue vivo

O governo Bolsonaro foi marcado por outro dado inédito: uma redução expressiva da expectativa de vida nacional, que despencou de 76,2 anos em 2019 para 72,8 anos em 2021.

A expectativa de vida é um dos mais importantes indicadores sociais. Quanto maior o acesso dos habitantes de uma determinada localidade a serviços de saúde, saneamento básico, nutrição adequada, maior tende a ser a longevidade da população.

Os avanços da ciência e da medicina, a consolidação dos sistemas de saúde, o controle de epidemias e a expansão do saneamento básico permitiram o aumento significativo da expectativa de vida ao longo do século 20. Na virada para o século 21, pululavam na mídia as matérias sobre como a biomedicina e as pesquisas em genética logo tornariam a existência de centenários um fato corriqueiro.

Tudo indica, entretanto, que faltou combinar com as classes dominantes. Ao mesmo tempo em que o progresso científico e o avanço das condições materiais possibilitam o aumento da longevidade, observa-se um processo de fortalecimento do discurso neomalthusiano — isso é, a revalorização das ideias de controle populacional defendidas pelo economista britânico Thomas Malthus.

Aparentemente, o neomalthusianismo está sendo cogitado como uma ferramenta para gerir o aumento do exército industrial de reserva — a parcela da força de trabalho que excede as necessidades da produção, mantida permanentemente desempregada ou subempregada.

A existência de um exército industrial de reserva oferece aos capitalistas a possibilidade de reduzir os salários e desestimular a organização da classe trabalhadora. Não é por acaso que frequentemente vemos os economistas favoritos da grande mídia defendendo ideias como a de que “um certo nível de desemprego é salutar para a economia”.

Mas quando o exército industrial de reserva excede o número ideal, há o risco de proliferação de problemas sociais e de gastos do erário para a contenção de eventuais rupturas. Surge então a necessidade do controle demográfico. E um reflexo desse contexto é a adoção de um modo de fazer política que possibilite e naturalize a morte em massa de pessoas.

O ingresso de Bolsonaro na política ocorre em paralelo com o fortalecimento do neomalthusianismo. Desde a década de 1970, relatórios elaborados pela CIA propunham a adoção de políticas de controle populacional em países do “Terceiro Mundo”.

Posteriormente, o governo norte-americano adotou medidas de redução da rede de proteção social dentro de seu próprio território — o que tem levado, por exemplo, à estagnação da expectativa de vida dos seus cidadãos. Desde 2010, a expectativa de vida dos norte-americanos permanece no mesmo nível ou regride. A plutocracia capitalista, aparentemente, decidiu que a longevidade não deve ser um atributo ao alcance das massas.

Evidentemente, a redução da expectativa de vida no Brasil foi um reflexo da pandemia. Mas basta lembrar do ex-ministro da Fazenda Paulo Guedes reclamando da longevidade dos brasileiros para compreender que as alterações no índice não foram vistas como um problema.

“Todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130”, reclamou Guedes, emendando que “é impossível” o “Estado consiga acompanhar” as demandas por saúde. Diante do aumento da expectativa de vida, a solução apontada pelo ministro de Bolsonaro era tipicamente malthusiana: vivam menos.

Necropolítica

Embora já exista há décadas, a agenda anti-vida costumava ser dissimulada pela retórica de defesa dos “direitos humanos”, da “democracia” e da “liberdade”, enquanto se promovia a concentração de riquezas, a exclusão social, a precarização do trabalho e o desmonte do Estado de Bem-Estar Social.

O acirramento da crise econômica pós-2008 levou à substituição gradual dessa estratégia pelo modelo de governança abertamente autoritário, embasado no apoio popular angariado por meio da retórica “antissistema”. Bolsonaro é um dos reflexos dessa degradação da governança imposta pelo capitalismo global. E como outros da mesma leva, ele buscou instrumentalizar a necropolítica.

O termo necropolítica foi cunhado em 2003 pelo historiador camaronês Achille Mbembe e pode ser compreendido como o uso do poder político e social para gerenciar arbitrariamente as oportunidades de vida e morte dentro do sistema capitalista. É um processo de subversão da função protetora e civilizatória do Estado, abandonada em favor da gestão das políticas de vida e morte, definindo quais e em que condições algumas pessoas podem viver e quais são as outras pessoas que devem morrer.

Desde que assumiu o governo em janeiro de 2019, Bolsonaro priorizou de forma sistemática a agenda política da morte. A facilitação do acesso às armas, a incitação para que grileiros e fazendeiros usem força letal contra movimentos sociais, os ataques reiterados aos povos indígenas, a tentativa de aprovar o excludente de ilicitude, dando proteção legal ao extermínio da população marginalizada pelas forças policiais, a flexibilização das leis de trânsito, a aprovação recorde de agrotóxicos — muitos dos quais banidos no resto do planeta por serem altamente prejudiciais — são todos elementos pertencentes a uma política que visava transformar o povo brasileiro em alvo.

Ao mesmo tempo, essas políticas eram complementadas pelo austericídio e pelas medidas ultraliberais conduzidas por Paulo Guedes, que levaram ao aumento desenfreado do custo de vida, das contas de consumo e do preço dos alimentos, ao mesmo tempo em que o poder de compra foi reduzido — submetendo dezenas de milhões de brasileiros ao flagelo da miséria e da fome.

Ao contrário do que apregoa a imprensa liberal, não foi por incompetência que o governo Bolsonaro negligenciou o combate à pandemia de covid-19. A recusa em comprar vacinas para imunizar a população, o incentivo à aglomeração, o desrespeito das medidas de controle epidemiológico e distanciamento social, a pressão pela reabertura dos comércios, o fomento ao conspiracionismo, ao obscurantismo e anticientificismo, foram todas medidas integradas deliberadamente a uma agenda antipovo, que nos conduziu a um verdadeiro genocídio.

A morte foi naturalizada nos discursos governamentais, que insistiam no apelo do conceito da “sobrevivência dos mais aptos”. A responsabilidade sanitária virou “frescura”, “mimimi”, os que se protegiam viraram “maricas” e a vida dos cidadãos foi tratada como algo descartável — com direito a piadas zombando dos cidadãos que sucumbiram aos problemas respiratórios.

Mesmo as ações do governo que se apresentam como atos de responsabilidade social foram pré-condicionadas a essa lógica genocida. É o caso da chantagem de Guedes ao tentar vincular o pagamento do auxílio emergencial a uma reforma que levasse ao desmonte dos sistemas públicos de saúde e educação.

Bolsonaro não foi um raio em um céu azul. Ele não foi a doença — foi um sintoma. O resultado da transformação de um modelo de capitalismo, que em algum momento tentou conciliar sua agenda econômica com a dissimulação da defesa dos direitos humanos, mas que se vê tentado agora a abandonar essa pactuação em prol da construção de modelo de sociedade distópica alinhando autoritarismo fascista e ultraliberalismo selvagem.

O Brasil foi um laboratório desse modelo, sob aplausos efusivos do empresariado e condescendência criminosa de boa parte da imprensa. E a pandemia foi um dos instrumentos utilizados para consolidá-lo. Mais de 716.000 pessoas pagaram com a vida. É hora de exigir justiça para essa gente.