A traição aos heróis negros: 181 anos do Massacre de Porongos
Lanceiros Negros, escravizados cooptados para lutar na insurreição farroupilha, foram assassinados após o comandante David Canabarro selar a paz com o governo imperial
Há 181 anos, em 14 de novembro de 1844, centenas de combatentes negros ativos na Guerra dos Farrapos eram assassinados pelas tropas imperiais no Cerro de Porongos, Rio Grande do Sul.
Os combatentes pertenciam aos corpos dos Lanceiros Negros. Eram escravizados que foram cooptados para lutar na insurreição farroupilha em troca da promessa de liberdade. Chegaram a responder por quase metade das tropas sublevadas e se destacaram como guerreiros obstinados.
Ao término do conflito, no entanto, os Lanceiros Negros foram traídos pelo comandante farroupilha David Canabarro, que os desarmou e os entregou à morte certa, a fim de selar a paz com o governo imperial.
A Guerra dos Farrapos
Instaurada durante o Período Regencial, a Guerra dos Farrapos (ou Revolução Farroupilha) foi um dos mais longos conflitos internos da história do Brasil. A guerra civil se prolongou por quase dez anos, de 1835 até 1845, e deixou mais de 3.000 mortos.
Iniciado no Rio Grande do Sul, o conflito surgiu em função do descontentamento dos estancieiros e comerciantes gaúchos com o governo imperial. A economia da província, voltada para o mercado interno e centrada na produção do charque, sofria cada vez mais com os impostos elevados e com a concorrência do charque platino.
Proprietários rurais, lideranças liberais, maçons e militares gaúchos se uniram em torno de um movimento que reivindicava a adoção de um novo regime tributário e a instauração de um modelo político federativo, que conferisse mais autonomia para as províncias. O movimento se tornou gradualmente mais radicalizado, incorporando ideias separatistas e republicanas e dando início à formação de um exército rebelde.
O levante contra o Império eclodiu em 20 de setembro de 1835, quando as tropas insurgentes tomaram Porto Alegre. Os rebeldes eram chamados de “farrapos”, em função das roupas maltrapilhas dos combatentes. Sob o comando de Bento Gonçalves e Antônio de Sousa Neto, o movimento rapidamente se expandiu pelo interior.
Em novembro de 1836, as tropas rebeladas romperam formalmente com o Império e proclamaram a República Rio-Grandense. Quase três anos depois, em julho de 1839, David Canabarro expandiu a rebelião para Santa Catarina. Auxiliado por Giuseppe Garibaldi, ele conduziu a tomada de Laguna e proclamou a República Juliana.
Os Lanceiros Negros
A Guerra dos Farrapos evoluiu para campanhas cada vez mais desgastantes e batalhas intensas contra as tropas imperiais. A progressão do conflito demandava o recrutamento permanente de mais e mais soldados. Os líderes farroupilhas resolveram então buscar esses reforços junto à população escravizada.
Embora houvesse alguns simpatizantes da causa abolicionista entre os farroupilhas, os líderes do movimento defendiam a continuidade da escravidão. Afinal, muitos eram estancieiros e membros da elite gaúcha que exploravam a mão de obra escravizada em suas fazendas e propriedades.
A promessa de emancipação, no entanto, foi utilizada como estratagema para cooptar negros escravizados. Os farroupilhas não direcionavam a oferta aos seus próprios cativos. Buscavam sobretudo os escravizados de seus adversários, ligados ao governo imperial. Prometiam que os que lutassem ao lado dos farroupilhas receberiam a alforria quando a guerra terminasse.
O subterfúgio provou-se muito eficaz. Milhares de escravizados responderam ao chamado. Os combatentes negros se converteram em sustentáculos do movimento, perfazendo de um terço até metade do contingente das forças rebeldes.
Os soldados negros serviram em diversas funções durante o conflito, integrando a infantaria, a artilharia e a cavalaria — além de atuar em funções de apoio, que iam do trabalho de mensageiro até a fabricação de pólvora. As unidades de maior destaque eram os corpos dos Lanceiros Negros, as “tropas de choque” das forças farroupilhas.
Inicialmente liderados pelo coronel Joaquim Pedro, os Lanceiros Negros se distribuíam por oito companhias com 51 homens cada, totalizando 408 combatentes. Eram extremamente ágeis no uso de armas brancas, sobretudo lanças, adagas e facões.
Resilientes, experientes na montaria e bem adaptados à vida no campo, os Lanceiros Negros se destacaram como combatentes excepcionais. Eram, acima de tudo, guerreiros obstinados, já que identificavam no sucesso da luta a garantia da própria liberdade.
Tão significativa era a presença negra entre os combatentes farroupilhas que o governo imperial aprovou, em novembro de 1838, a Lei da Chibata.
O texto informava que os escravizados que aceitassem lutar ao lado dos rebeldes receberiam de 200 a 1.000 chibatadas como punição. Ao mesmo tempo, as tropas imperiais difundiram a informação de que, caso se entregassem, os negros teriam sua liberdade garantida — mais um engodo. A nova lei não bastou para desencorajar os Lanceiros Negros, que seguiram leais ao movimento.
Embora fossem fundamentais para a revolta dos farroupilhas, os soldados negros sofriam enorme discriminação. Não tinham autorização para portar armas de fogo, não podiam exercer cargos de liderança e viviam em acampamentos segregados por cor.
A derrocada do movimento
A insurreição farroupilha começou a ruir a partir de 1840, com a intensificação da repressão imperial. A longa extensão do conflito castigou fortemente a economia gaúcha e as tropas rebeldes já sofriam com a escassez de armas, munições e suprimentos básicos — algo que se agravou com a interrupção das rotas comerciais e com os bloqueios navais impostos pela Armada do Império.
Em 1842, Luís Alves de Lima e Silva, futuro Duque de Caxias, assumiu o comando da repressão e enviou um amplo contingente de soldados para sufocar a guerrilha. O oficial também reforçou o bloqueio econômico da província e incitou a fragmentação do movimento rebelde, tentando isolar as lideranças mais radicais.
As tropas rebeldes eram agora lideradas por David Canabarro. Bento Gonçalves havia renunciado ao comando dos farroupilhas em 1843, tentando evitar a crescente cisão do movimento. Ciente de que a guerra estava perdida, Canabarro deu início às negociações com o governo imperial.
Temendo que os rebeldes recebessem ofertas de colaboração do líder argentino Juan Manuel de Rosas, o gabinete de Pedro II instruiu Lima e Silva a propor condições generosas para a rendição dos farroupilhas.
A questão dos soldados negros constituía um impasse. O governo imperial exigia que os ex-escravizados fossem devolvidos aos seus senhores. Os farroupilhas argumentaram que os combatentes não aceitariam retornar à condição de cativos e que a tentativa de reescravizá-los resultaria em uma insurreição.

Ilustração do Massacre de Porongos
TVE-RS / Wikimedia Commons
A traição e o massacre
A saída encontrada seria uma batalha farsesca, combinada entre as duas partes, durante a qual ocorreria o massacre dos soldados negros. A traição é evidenciada em uma carta enviada por Lima e Silva ao coronel Chico Pedro, chefe das tropas imperiais, contendo instruções para ação militar.
Em um trecho do documento, lê-se: “Regule suas marchas de maneira que, no dia 14 às 2 horas da madrugada, possa atacar o comando a mando de Canabarro, que estará neste dia no cerro de Porongos. (…) No conflito, poupe o sangue brasileiro o quanto puder, particularmente da gente branca da província ou índios”.
E assim foi feito. Na madrugada do dia 14 de novembro de 1844, no arroio de Porongos (atual município de Pinheiro Machado), o pouso dos farroupilhas foi violentamente atacado pelas tropas imperiais. O ataque foi direcionado apenas ao acampamento onde estavam o coronel Teixeira Nunes e os Lanceiros Negros.
Os combatentes estavam desarmados. Na véspera do ataque, Canabarro havia ordenado o recolhimento das armas e das munições, alegando a necessidade de substituí-las. O líder farroupilha não presenciou o ataque. Havia deixado o acampamento horas antes da chegada dos soldados imperiais.
Estima-se que mais de 100 soldados negros foram assassinados durante o Massacre de Porongos. Os poucos sobreviventes foram enviados para o Rio de Janeiro, sendo reescravizados ou realocados como serventes nas instalações governamentais.
A matança dos Lanceiros Negros viabilizou o armistício. Alguns meses depois do massacre, em 1º de março de 1845, as partes beligerantes assinaram o Tratado de Poncho Verde e a Guerra dos Farrapos chegou ao fim. Acusado de traição, Canabarro foi alvo de uma investigação na justiça militar, mas o processo foi arquivado em 1866, por pressão do Duque de Caxias.
A Guerra dos Farrapos se converteu em elemento central do tradicionalismo gaúcho, exaltada em celebrações ufanistas. Os Lanceiros Negros e o fatídico massacre do qual foram vítimas, contudo, foram apagados das narrativas romantizadas e ignorados pela historiografia oficial.
O resgate da memória dos combatentes negros na insurreição farroupilha é um fenômeno recente, diretamente ligado ao fortalecimento do movimento negro no Brasil. O primeiro monumento em homenagem a esses combatentes só foi erguido em 2004. No ano passado, os Lanceiros Negros foram reconhecidos como heróis nacionais e registrados no Livro de Aço do Panteão da Pátria.























