A polícia a serviço do capital: 62 anos do Massacre de Ipatinga
Há 62 anos, em 7 de outubro de 1963, dezenas de trabalhadores da Usiminas eram assassinados por policiais militares
Há 62 anos, em 7 de outubro de 1963, dezenas de trabalhadores da Usiminas eram assassinados por policiais militares durante o Massacre de Ipatinga, uma das mais violentas chacinas da história do movimento operário brasileiro.
Os trabalhadores protestavam contra as péssimas condições de vida, a repressão sindical e os constantes abusos cometidos pelo serviço de segurança da empresa. Após uma série de enfrentamentos com a polícia, 6.000 funcionários compareceram a um protesto na frente da usina, mas foram metralhados pelos policiais.
O saldo foi devastador: mais de 30 operários foram mortos e centenas ficaram feridos. A vítima mais jovem do massacre era um bebê de apenas três meses. Os policiais que participaram da matança chegaram a ser indiciados, mas foram absolvidos após o golpe de 1964.
A Usiminas
Eleito Presidente da República em 1955, Juscelino Kubitschek angariou apoio popular apresentando-se como herdeiro de Getúlio Vargas e continuador do programa nacional-desenvolvimentista. Sua plataforma eleitoral consistia no chamado “Plano de Metas”, um programa arrojado de planejamento estatal e modernização da estrutura produtiva, que previa investimentos pesados na indústria de base.
Foi nesse contexto de expansão do parque industrial que surgiu a Usiminas — Usinas Siderúrgicas de Minas Gerais. Fundada em abril de 1956, a Usiminas era uma empresa de economia mista, com 55% de seu capital sob poder do Estado, 40% pertencente a empresários japoneses e 5% em mãos de industriais brasileiros.
A Usiminas foi a primeira grande indústria siderúrgica implementada em Minas Gerais. Suas instalações foram erguidas em Ipatinga, então um distrito de Coronel Fabriciano, a cerca de 200 quilômetros de distância de Belo Horizonte, na região que viria a ser conhecida como Vale do Aço.
Ipatinga, até então uma pequena vila rural, transformou-se rapidamente em um polo industrial, atraindo milhares de trabalhadores de Minas Gerais e de outros estados do país. A empresa iniciou suas operações em 1962, já no governo de João Goulart. À época, a Usiminas contava com 15.000 funcionários — 8.000 empregados diretamente e 7.000 subcontratados por empreiteiras.
O crescimento acelerado acarretou uma série de problemas. Os bairros erguidos para abrigar os trabalhadores seguiam uma lógica hierárquica. A diretoria da empresa foi instalada em locais bem estruturados, como o bairro de Castelo, ao passo que os operários foram relegados a bairros periféricos como Santa Mônica e Cariru.
Mais de 60% dos trabalhadores da Usiminas viviam em alojamentos superlotados de bairros distantes e carentes de infraestrutura básica. A maioria dos bairros não possuía sequer saneamento. Eram desprovidos de creches, escolas, hospitais e postos de saúde. O transporte era insuficiente e não existiam quaisquer opções de lazer.

Protesto de trabalhadores após o massacre de Ipatinga
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Questões trabalhistas
Além dos problemas de habitação em Ipatinga, os funcionários da Usiminas também enfrentavam graves situações no local de trabalho. Os operários eram obrigados a trabalhar sem equipamentos de proteção adequados em torno da aciaria, expostos a gases tóxicos e temperaturas que chegavam a 1.700°C. Os acidentes de trabalho eram muito comuns.
Os refeitórios na empresa também eram hierarquizados. Diretores, engenheiros e técnicos tinham acesso a bons restaurantes, ao passo que os operários eram obrigados a encarar filas enormes para comer refeições de baixa qualidade em instalações sujas, lotadas e desorganizadas.
Os trabalhadores sofriam humilhações diárias. Eram submetidos a revistas invasivas no início e no fim da jornada de trabalho e tinham seus itens pessoais confiscados.
A segurança na Usiminas era feita por vigilantes privados e pela própria Polícia Militar — e ambos tratavam os trabalhadores com enorme truculência. As agressões físicas eram constantes e os operários eram vigiados até mesmo fora do ambiente de trabalho. Equipes de segurança vistoriavam os bares da cidade nos fins de semana e delatavam os trabalhadores presentes nesses estabelecimentos para a direção da empresa.
Os salários eram baixos, as rotinas extenuantes e os operários não tinham sequer direito à representação sindical. As filiações ao Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Coronel Fabriciano foram vetadas pela empresa e as tentativas de organização autônoma dos operários eram debeladas pela polícia. Trabalhadores que ousassem externar publicamente sua insatisfação também sofriam duras retaliações.
A perseguição aos sindicalistas não era uma exclusividade da Usiminas. Em todo o estado de Minas Gerais, os movimentos sindicais estavam sendo monitorados e violentamente reprimidos. O governador mineiro Magalhães Pinto era um udenista ferrenho que enxergava o movimento operário como uma grave ameaça à ordem.
Com o fortalecimento da articulação golpista que pretendia derrubar o governo de João Goulart, as forças reacionárias intensificaram os ataques às entidades sindicais — sobretudo aquelas ligadas ao Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), organização intersindical que tinha laços históricos com o Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Magalhães Pinto havia colocado o Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (DOPS) à disposição do patronato, oferecendo agentes para operações de infiltração e desarticulação dos movimentos sindicais. Essa ação permitiu que os órgãos de segurança se antecipassem às movimentações políticas do operariado, inviabilizando planos grevistas e neutralizando as principais lideranças.
Foi através da ação de policiais infiltrados que os diretores da Usiminas descobriram que os trabalhadores estavam se organizando em sindicatos secretos e mantendo conversas com dirigentes da CGT — informações que seriam imediatamente repassadas ao Exército Brasileiro.
Os ataques do dia 6 de outubro
As péssimas condições de trabalho, os maus-tratos e o constante assédio das forças policiais haviam criado uma insatisfação generalizada entre os funcionários da Usiminas. Assim, a despeito das intimidações, os operários continuaram tentando se organizar para reivindicar melhorias.
Uma agressão policial dirigida contra um grupo de operários por motivos banais seria a gota d’água. Em 6 de outubro de 1963, os trabalhadores convocaram uma reunião com representantes do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Coronel Fabriciano. Durante encontro, os funcionários concordaram com a reivindicação de reajuste salarial de 36% e expuseram os problemas relacionados à moradia, transporte e alimentação.
Ciente do encontro com o sindicato, o serviço de segurança da Usiminas solicitou o reforço do policiamento e tentou intimidar os trabalhadores. Na noite de 6 de outubro, logo após a troca de turno, os caminhões que transportavam operários foram parados para uma vistoria surpresa.
A revista foi humilhante. Vigilantes e policiais insultaram e agrediram os trabalhadores. As marmitas foram abertas e as rações diárias de leite e pão francês foram confiscadas. Indignados com a ação, alguns funcionários reagiram, dando início a um tumulto. A cavalaria então avançou sobre a multidão, pisoteando várias pessoas e causando pânico.
No alojamento do bairro Santa Mônica, policiais militares atacaram uma reunião de trabalhadores e agrediram brutalmente um eletricista. Os agentes foram expulsos pela reação vigorosa dos populares, mas prometeram voltar. Temendo novos ataques, os trabalhadores ergueram barricadas nas ruas do bairro.
Não demorou para os policiais retornassem, acompanhados da cavalaria. Os agentes invadiram alojamentos e residências e espancaram os trabalhadores, que reagiram jogando paus e pedras. A energia elétrica do bairro foi cortada e os enfrentamentos e barulhos de tiro ecoaram madrugada adentro. Mais de 300 trabalhadores foram presos e vários foram baleados.
O capitão Robson Zamprogno solicitou ao padre Avelino Marques que atuasse como mediador junto aos operários. Após ouvir as reivindicações dos funcionários, o sacerdote solicitou aos policiais a libertação dos trabalhadores presos e a organização de um encontro com os diretores da Usiminas.
O massacre
Na manhã de 7 de outubro, uma multidão de 6.000 trabalhadores ocupava a entrada da Usiminas, protestando contra os ataques dos policiais ocorridos na madrugada anterior e exigindo a decretação de greve. A reunião com a diretoria começou às 7h30, contando com a presença do capitão Robson, do padre Avelino e de Geraldo Ribeiro, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos.
Durante o encontro, Geraldo expôs as reivindicações dos operários. Eles exigiam o fim das revistas abusivas, moradias dignas, transporte adequado e a retirada da cavalaria do policiamento de rua. Enquanto a reunião transcorria no interior da Usiminas, as tensões se agravavam no portão da empresa, com tumultos irrompendo entre trabalhadores e policiais.
Geraldo Ribeiro e o padre Avelino conseguiram convencer o capitão Robson a suspender temporariamente as ações de rua da cavalaria, até que fosse concluída uma investigação sobre os ataques ocorridas na noite anterior. A reunião terminou às 9h15. Quando os negociadores se dirigiam à multidão para prestar esclarecimentos, ouviu-se o som de rajadas de tiros.
O ataque partiu de um grupo de 19 policiais armados com metralhadoras e fuzis. Eles atacaram a multidão com bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo e depois abriram fogo contra os operários. O massacre se estendeu por 15 minutos, deixando dezenas de pessoas mortas.
O ataque causou um pânico generalizado e várias pessoas foram pisoteadas ao tentar deixar o local. A Casa de Saúde e o Hospital Siderúrgica de Coronel Fabriciano ficaram lotados de feridos.
Não se sabe o número exato de vítimas do massacre. A contagem oficial divulgada pelas autoridades registrou 8 mortos e 79 feridos, mas esse dado é claramente subavaliado. A maioria das fontes aponta para um contingente superior a 30 mortes. Alguns relatos chegam a afirmar que cerca de 80 pessoas teriam sido assassinadas.
O padre Abdala Jorge afirmou ter contabilizado 11 corpos em um único hospital, ao passo que um ex-funcionário da Usiminas registrou a aquisição de 32 caixões em Belo Horizonte. Em um artigo publicado em 1979, Daniel Miranda Soares alegou que ao menos 33 pessoas morreram e mais de 3.000 pessoas ficaram feridas. O inquérito aberto para investigar o massacre registrou que quatro corpos foram encontrados no Ribeirão Ipanema, evidenciando a maquiagem dos dados oficiais.
A vítima mais jovem do massacre era um bebê de apenas três meses de idade — a menina Ângela Eliane Martins, que foi baleada no colo de sua mãe enquanto era levada para o ambulatório da empresa. Outras vítimas identificadas do massacre são o fotógrafo José Isabel do Nascimento, baleado enquanto registrava o protesto, o alfaiate Geraldo Rocha Gualberto e os operários Gilson Miranda, Aides Dias de Carvalho, Antônio José dos Reis, Alvino Ferreira Felipe e Sebastião Tomé da Silva.
Consequências do massacre
Enfurecidos após o massacre, os trabalhadores da Usiminas realizaram três dias seguidos de protestos. Eles destruíram a guarita da empresa, depredaram a delegacia local e incendiaram viaturas da polícia. Sob pressão, a Usiminas faria algumas concessões, autorizando reajustes salariais e ordenando a redução do policiamento ostensivo.
A notícia sobre a chacina se espalhou rapidamente, repercutindo em todo o país e gerando indignação. A Assembleia Legislativa de Minas Gerais chegou a instalar uma Comissão de Inquérito, mas as investigações foram superficiais e manipuladas, buscando culpar os trabalhadores por “atos subversivos”.
Os policiais envolvidos no massacre chegaram a ser alvos de inquérito, mas foram absolvidos após a concretização do golpe militar de 1964, sob a justificativa de que tinham agido em “legítima defesa”. A ditadura também perseguiu os líderes sindicais de Ipatinga. Vários trabalhadores que atuaram nos protestos foram presos. Geraldo Ribeiro foi afastado de suas funções e o Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos ficou sob intervenção militar.
As primeiras indenizações para familiares das vítimas do massacre somente foram concedidas em 2004, quase duas décadas após a redemocratização. Um monumento em homenagem às vítimas foi instalado em 1989, por iniciativa do Sindicato dos Metalúrgicos de Ipatinga. Desde 2023, a data do massacre, 7 de outubro, é rememorada no município de Ipatinga como “Dia da Luta Operária”.























