A greve geral de 1988 na África do Sul: um marco da luta operária contra o apartheid
Há 36 anos, em 6 de junho de 1988, sindicatos de trabalhadores negros e movimentos de luta contra o apartheid convocavam a maior greve geral realizada na história da África do Sul até então. Mais de três milhões de trabalhadores aderiram à paralisação, que se tornou um marco da luta operária contra o regime segregacionista.
Oficialmente estabelecido em 1948 pelo Partido Nacional, o regime do apartheid institucionalizou e aprofundou as práticas segregacionistas que vigoravam na África do Sul desde a era colonial. Implementada pelo Partido Nacional — a agremiação supremacista de extrema direita que governou o país por quase meio século — a política de segregação racial relegou os sul-africanos negros à condição de cidadãos de segunda classe, privando-os de votar e de usufruir de direitos políticos e civis e forçando-os a viver em distritos precários, sem acesso a benefícios, serviços públicos, oportunidades e submetidos à violenta opressão do Estado.
A população negra lutou de forma aguerrida contra o regime supremacista da África do Sul. Organizações como o Congresso Nacional Africano (CNA) e o Congresso Pan-Africanista (CPA) realizaram protestos, boicotes e campanhas de desobediência civil. Também conduziram a luta armada contra o apartheid, criando grupos guerrilheiros, como o Umkhonto we Sizwe (braço armado do CNA) e o Exército de Libertação do Povo Azaniano (braço armado do CPA). O governo sul-africano reagiu com extrema violência, desarticulando as guerrilhas, perpetrando uma série de massacres contra a população civil e ampliando as restrições legais. Organizações políticas do movimento negro foram banidas e líderes como Nelson Mandela foram condenados à prisão perpétua.
Com as guerrilhas e organizações políticas desarticuladas pela repressão do governo sul-africano, coube aos estudantes e movimento operário reavivar a luta contra o apartheid na década de 1970. Fundado por Steve Biko, o Movimento da Consciência Negra iniciou um importante trabalho de fomento à organização operária. Ao mesmo tempo, a União Nacional de Estudantes Sul-Africanos ajudou a financiar a criação de organizações sindicais clandestinas por intermédio do Fundo Geral de Benefícios aos Trabalhadores. Em janeiro de 1973, os operários negros de Durban, iniciaram uma onda de greves, mobilizando centenas de milhares de pessoas. As greves de Durban inflamaram os trabalhadores e inspiraram uma série de manifestações, paralisações e atos em toda a África do Sul — nomeadamente a mobilização contra a reforma estudantil que desembocaria no Levante de Soweto.
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Malgrado a forte repressão do governo sul-africano, o movimento sindical prosseguiu se fortalecendo. Mesmo atuando na clandestinidade, os sindicatos conseguiam preencher a lacuna deixada pelo banimento de partidos políticos. As organizações operárias não se limitavam a fazer reivindicações trabalhistas. Elas se transformaram nas principais plataformas da resistência contra as políticas do apartheid, galvanizando a oposição ao regime e atraindo amplo apoio da classe trabalhadora às suas iniciativas e ações. A ação política dos sindicatos foi fortalecida a partir de 1979, quando o governo de Pieter Willem Botha, pressionado pelo crescente isolamento internacional, instituiu algumas ações de distensão, flexibilizando as restrições à atividade sindical. Esse contexto permitiu a legalização das organizações operárias negras e a criação da Federação dos Sindicatos Sul-Africanos (Fosatu). Por sua vez, o estabelecimento da Frente Democrática Unida (UDF) — frente popular que congregava mais de 400 entidades, entre sindicatos, movimentos estudantis e comunidades paraeclesiásticas —também possibilitou uma melhor articulação das organizações de oposição ao regime do apartheid.

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Regime do apartheid institucionalizou práticas segregacionistas que vigoravam na África do Sul desde a era colonia
Em novembro de 1985, 33 sindicatos e entidades trabalhistas da África do Sul se uniram para fundar o Congresso Sul-Africano de Sindicatos (Cosatu). A instituição se tornaria a maior central sindical do país e uma das maiores federações sindicais do continente africano. Combativo e bem articulado, o Cosatu conduziu uma campanha bem sucedida de expansão da atividade sindical, ao mesmo tempo em que exortou fortemente a mobilização da classe trabalhadora, criando a “Campanha do Salário Digno” e convocando atos, protestos e paralisações pelo fim do regime do apartheid. O Cosatu conseguiu mobilizar mais de um milhão de trabalhadores durante a greve realizada em paralelo com a eleição parlamentar de 1987. Nesse mesmo ano, a organização aderiu à Carta da Liberdade, elaborada pela Aliança do Congresso, reafirmando seu compromisso com a luta antissegregacionista.
Incomodado com a crescente mobilização da classe operária, o governo sul-africano passou a reverter algumas das medidas de distensão adotadas no início dos anos 80. O estado de emergência instituído em 1985 foi prorrogado indefinidamente, limitando os direitos políticos dos opositores e dando respaldo à repressão policial. Em fevereiro de 1988, o regime baniu 17 organizações sindicais e de oposição ao apartheid, incluindo a UDF, e criou uma série de restrições às atividades do Cosatu, proibindo-o de exercer qualquer atividade política de caráter extra sindical. Por fim, o governo encaminhou um projeto de reforma das leis trabalhistas que criava limites ao direito de greve e de atuação sindical e estabelecia que os sindicatos deveriam ressarcir os empresários por prejuízos decorrentes de paralisações.
Foi a gota d’água. Desafiando a ofensiva do regime, a Cosatu convocou os trabalhadores a realizarem uma grande greve geral contra o projeto de lei. Centenas de sindicatos e organizações operárias responderam à convocatória e iniciaram a atuação junto às bases. Entidades estudantis e movimentos antiapartheid também apoiaram massivamente a mobilização, incluindo o Congresso Nacional Africano e o arcebispo anglicano Desmond Tutu. A greve geral teve início em 6 de junho de 1988. A adesão foi histórica: cerca de três milhões de trabalhadores negros cruzaram os braços. Era a maior greve já vista na África do Sul até então.
A greve teve altíssima adesão nas grandes cidades. Em Joanesburgo e Durban, dois dos maiores centros industriais do país, cerca de 90% dos trabalhadores negros aderiram à greve. Em Pretória e Porto Elizabeth, a adesão foi superior a 50%. Em Soweto, quase todos os estabelecimentos fecharam as portas. Nas paredes de vários edifícios foram afixados cartazes conclamando os trabalhadores a realizarem três dias de paralisação, com os dizeres “proibido trabalhar — 6, 7, 8”. Os grevistas saíram às ruas para protestar contra o regime do apartheid e reivindicar a suspensão do estado de emergência, liberdade política, fim da perseguição às organizações sindicais e salários dignos. Para evitar o recurso aos “fura greves”, os trabalhadores organizaram piquetes e armaram barricadas bloqueando os acessos aos distritos fabris.
Em paralelo à greve, os protestos se espalharam por todo o país. Ônibus, caminhões, viaturas policiais e estações de trens foram incendiados em Durban e a linha ferroviária nos arredores de Joanesburgo foi danificada. A greve se estendeu por três dias e teve um impacto substancial, paralisando boa parte da estrutura produtiva do país — sobretudo a indústria automobilística, que teve de suspender as atividades em sete linhas de montagem. O impacto também foi massivo no comércio e no setor de serviços. Os grandes supermercados registraram taxas de adesão superiores a 70% entre os trabalhadores negros. Conforme a Associação das Câmaras de Comércio, a greve causou prejuízos de mais de 250 milhões de dólares (em valores da época) ao empresariado sul-africano. Inconformados com as perdas, os empresários exigiram uma resposta enérgica do governo. A repressão foi brutal. Forças policiais e militares foram enviadas para reprimir os grevistas e os conflitos eclodiram em todo o país. Centenas de manifestantes foram presos, ao menos 10 pessoas foram assassinadas e dezenas ficaram
feridas.
Apesar da violência, a greve geral atestou a força do movimento sindical e sua enorme capilaridade e influência sobre a classe trabalhadora — o que assustou o governo e a classe empresarial. Temeroso de que o movimento
grevista evoluísse para uma convulsão social, o governo recuou e desistiu de seu projeto de alterar as leis trabalhistas. O movimento operário não se contentou com o recuo. Em 1989, o Cosatu e a UDF convocaram os trabalhadores a se unirem em uma ação permanente contra o regime do apartheid. Teve início assim a Campanha Nacional do Desafio, em que a população negra era incentivada a realizar novas greves e a invadir e ocupar os espaços que o regime havia decretado como reservados para uso dos brancos. As ações do movimento sindical ajudaram a erodir as últimas bases de sustentação do regime sul-africano, escancarando sua insustentabilidade e falta de legitimidade política, abrindo caminho para o fim do regime do apartheid.























