A Espanha em chamas: 89 anos da Guerra Civil Espanhola
Tropas do general Francisco Franco lançaram golpe contra governo de centro-esquerda de Manuel Azaña, instalando uma ditadura fascista no país
Há 89 anos, em 17 de julho de 1936, as tropas do exército lideradas pelo general Francisco Franco lançavam um golpe de Estado contra o governo de centro-esquerda de Manuel Azaña, dando início à Guerra Civil Espanhola.
O conflito representou o ápice da polarização ideológica e das disputas políticas que há décadas que desenrolavam na Espanha, agravadas pela instabilidade da república proclamada em 1931.
A guerra opôs a coalização dos republicanos (englobando anarquistas, socialistas e comunistas, apoiados pelas Brigadas Internacionais) às forças nacionalistas (reunindo os setores conservadores, monarquistas e fascistas, auxiliados pela Alemanha e pela Itália).
A vitória dos nacionalistas em 1939 marcou o início da ditadura fascista de Francisco Franco, que se estenderia até 1975. A Guerra Civil Espanhola foi um dos conflitos mais sangrentos ocorridos na Europa no século 20, deixando um rastro de devastação e mais de 600 mil mortos
As disputas políticas na Espanha
Desde o fim do século 19, a Espanha se encontrava submersa em uma crise política. Derrotada pelos Estados Unidos na Guerra Hispano-Americana, o país havia perdido quase todos as suas possessões coloniais. No âmbito interno, a unidade do Estado espanhol era cada vez mais contestada pela reivindicação de autonomia das populações bascas e catalãs.
O domínio tradicional da Igreja Católica, com forte influência sobre a educação, a cultura e a política, também era cada vez mais questionado pela esquerda e pelos liberais anticlericais, resultando em frequentes embates com os setores conservadores.
A economia do país permanecia majoritariamente agrária. Os grandes latifundiários controlavam vastas extensões de terra, enquanto milhões de camponeses viviam na pobreza. A renda permanecia fortemente concentrada nas mãos das oligarquias nacionais. E mesmo nas regiões que começavam a testemunhar um processo de industrialização, o povo não sentia mudanças nas condições de vida.
Esses fatores insuflaram a grande insatisfação com a monarquia espanhola, considerada inepta e corrupta. O rei Afonso XIII era bastante impopular — como atestado pelas várias tentativas de assassinato sofridas pelo monarca. O custo humano da Guerra do Rife, um conflito colonial travado no Marrocos, intensificou o descontentamento popular.
Ao mesmo tempo em que a insatisfação com a monarquia alimentava o ativismo republicano, a Espanha testemunhava a rápida expansão do movimento operário. As ideias anarquistas e socialistas se popularizavam cada vez mais entre os trabalhadores espanhóis e organizavam a atuação dos principais sindicatos.
Reagindo à expansão da esquerda radical, os setores conservadores, sobretudo militares, monarquistas e lideranças ligadas à Igreja Católica, passaram a se organizar politicamente. O choque de classes se tornou evidente e cada vez mais violento.
Grupos terroristas de extrema direita, nomeadamente o “Sindicato Libre”, procuravam suprimir as organizações operárias através do assassinato de seus principais líderes. A esquerda reagiu criando seus próprios grupos armados como o “Nosotros”, que combatiam empresários e líderes conservadores responsáveis por financiar as milícias de extrema-direita.
Em 1923, em uma tentativa de reforçar o controle social, a monarquia espanhola nomeou Primo de Rivera como ditador de um regime de inspiração fascista, mas a democracia seria restaurada após sua renúncia em 1930, motivada por uma série de escândalos de corrupção.
A Segunda República
No pleito de abril de 1931, os monarquistas venceram no cômputo geral, mas os republicanos obtiveram uma sólida maioria de votos nos grandes centros urbanos. Antecipando-se à mobilização antimonarquista, Afonso XIII abdicou do trono e a Segunda República Espanhola foi proclamada.
Na eleição realizada em dezembro de 1931, a esquerda saiu vitoriosa. Tentando evitar o boicote da direita, os republicanos concordaram com uma estratégia conciliatória. O conservador Alcalá-Zamora assumiria a presidência da República, ao passo que Manuel Azaña, um republicano da esquerda moderada, seria o chefe de governo.
Azaña institui várias medidas reivindicadas pelo campo progressista, mas o agravamento da crise econômica que eclodira em 1929, a instabilidade política e a pressão dos setores reacionários não permitiram que o governo fizesse grandes avanços nas questões agrárias e trabalhistas.
Insatisfeitos com a imobilidade dos republicanos, os anarquistas, que possuíam grande influência sobre a classe operária, iniciaram uma série de greves, ocupações, mobilizações e levantes operários, como as insurreições de Alt Llobregat (1932) e Casas Viejas (1933). Eles seriam duramente reprimidos pelas tropas do governo.
Ao mesmo tempo, Azaña também sofria constantes ofensivas dos setores reacionários. Em 1932, o general monarquista José Sanurjo tentou impor uma quartelada, mas fracassou.
Novas eleições foram convocadas em 1933, em um ambiente de cisão na esquerda. Furiosos com a repressão governamental, os anarquistas se recusaram a participar do pleito e exortaram o povo a tomar parte de uma “greve do voto” para denunciar a ilegitimidade do processo eleitoral.
Com a esquerda dividida, a direita obteve a vitória e organizou um governo profundamente reacionário, conduzido sob a liderança da Confederação Espanhola de Direitas Autônomas (CEDA), que passou a reverter os ganhos sociais da gestão anterior e a reprimir severamente as organizações sindicais e movimentos sociais.
Diante da interrupção das reformas e do autoritarismo do governo, as organizações da esquerda revolucionária iniciaram uma série de levantes populares. Insurgentes anarquistas e socialistas chegaram a tomar o poder em uma região ao norte do país, estabelecendo a efêmera “Comuna das Astúrias”. Os levantes, no entanto, foram rapidamente debelados. A repressão foi brutal, resultando em milhares de mortes e prisões em massa.

Voluntários republicanos a caminho da frente de Teruel, em 1938
Wikimedia Commons
O início da guerra
Diante da violenta ofensiva da direita e do recrudescimento do autoritarismo, os anarquistas resolveram apoiar a centro-esquerda nas eleições de 1936.
Unida em uma grande coalizão, a esquerda venceu as eleições por uma margem mínima de votos, obtendo o controle do parlamento graças às regras do sistema eleitoral, que favoreciam as maiorias parlamentares. Manuel Azaña assumiu a presidência e Largo Caballero se tornou chefe de governo.
A direita não aceitou a derrota e passou a insuflar abertamente um golpe, acusando o governo eleito de ser pró-soviético. Os republicanos, entretanto, julgavam exagerados os receios de uma quartelada e não tomaram medidas para debelar as ações golpistas.
Os setores conservadores e reacionários se agruparam sob a liderança do general Francisco Franco na Frente Nacionalista — que reunia o alto comando das Forças Armadas, a Confederação Espanhola de Direitas Autônomas, os monarquistas, as lideranças católicas carlistas e a Falange Espanhola, partido político fascista.
Em 16 de julho de 1936, o líder reacionário Calvo Sotelo foi assassinado pela Guarda de Assalto, que o responsabilizara pela morte de um de seus integrantes. O assassinato de Sotelo serviu de pretexto para que os nacionalistas iniciassem a investida contra os republicanos.
Em 17 de julho de 1936, a Frente Nacionalista se sublevou, dando início à Guerra Civil Espanhola. O golpe foi deflagrado a partir das guarnições militares sediadas no Marrocos, onde Francisco Franco comandava as tropas do exército colonial.
O desenrolar do conflito
Comunistas, socialistas, anarquistas e republicanos liberais se uniram na Frente Popular para enfrentar os nacionalistas e defender a república. Eles conseguiram manter o controle sobre cidades-chave, tais como a capital, Madri, e Barcelona, mas os nacionalistas logo receberam o reforço dos legionários vindos do Marrocos, intensificando a disputa.
A guerra foi travada em múltiplas frentes, com batalhas que marcaram a história pela intensidade e pelo alto custo humano. Em Madri, os republicanos resistiram a um cerco prolongado entre 1936 e 1937.
A cidade sofreu um ataque brutal dos legionários de Franco, que executaram dezenas milhares de combatentes republicanos e um enorme contingente de civis suspeitos de apoiá-los. Ainda assim, as forças republicanas conseguiram retomar a cidade. O lema “No pasarán”, popularizado pela líder comunista Dolores Ibárruri, tornou-se um símbolo da resistência madrilenha.
As tropas de Franco receberam reforços dos regimes nazifascistas. O líder italiano Benito Mussolini enviou o Corpo de Tropas Voluntárias, com 70 mil soldados. Por sua vez, o chanceler alemão Adolf Hitler despachou 15 mil homens e disponibilizou importante apoio aéreo.
Submarinos italianos atacaram a frota republicana no Mar Mediterrâneo, ao passo que a Luftwaffe (Força Aérea da Alemanha nazista) iniciou as primeiras campanhas de bombardeio em larga escala da história militar, devastando cidades sob controle dos republicanos, nomeadamente Guernica, capital de uma comarca do País Basco.
Os nacionalistas realizaram execuções em massa contra os apoiadores dos republicanos. Em regiões como Andaluzia, Extremadura e Navarra, milhares foram fuzilados. As tropas de Franco dispensavam aos civis dos territórios republicanos o mesmo tratamento que tinham dado aos povos marroquinos, submetendo-os a estupros, torturas e assassinatos.
A selvageria tinha por objetivo amedrontar os republicanos e forçá-los à rendição, mas teve efeito contrário. Milhares de civis das grandes metrópoles espanholas se voluntariaram para formar milícias e resistir ao avanço das forças fascistas.
Malgrado a brutalidade do conflito e o apoio das forças do Eixo a Franco, a França, o Reino Unido e as demais potências ocidentais se recusaram a intervir na guerra. A União Soviética teve uma participação relativamente modesta, encaminhando 5 mil consultores militares e armamentos.
O Comintern, entretanto, daria uma importante contribuição aos republicanos, ajudando a articular as Brigadas Internacionais. Tropas de 60 mil combatentes voluntários, vindos de todas as partes do mundo, a grande maioria comunistas, socialistas e anarquistas, juntaram-se à resistência antifascista.
O México, então sob o governo do socialista Lázaro Cárdenas, também enviou armas, alimentos e apoio diplomático para os republicanos, além de acolher milhares de exilados após o conflito.
A Revolução Espanhola
Logo após o início da guerra, as organizações anarquistas lideraram uma importante insurreição nas regiões sob seu controle em Aragão, na Catalunha e em partes de Valência.
Ao mesmo tempo em que atuavam na resistência às tropas nacionalistas, os trabalhadores organizados pela CNT (Confederação Nacional do Trabalho), pela FAI (Federação Anarquista Ibérica) e pelo POUM (Partido Operário de Unificação Marxista) assumiram o controle de indústrias, fazendas e serviços públicos, implementando sistemas de autogestão operária e coletivizações em larga escala.
A propriedade privada dos meios de produção foi abolida e os latifúndios foram expropriados e entregues aos camponeses. Os trabalhadores também assumiram a gestão dos serviços públicos, como bondes, hospitais e escolas.
Conselhos operários foram criados para organizar a gestão e a condução do processo revolucionário. As decisões eram todas tomadas de forma coletiva, através de assembleias populares. Importantes reformas sociais foram implementadas, incluindo medidas para garantir a secularização da sociedade e reforçar a igualdade de gênero.
A experiência implementada pelos anarquistas, entretanto, não obteve apoio do Partido Comunista da Espanha (PCE), do governo soviético e das demais organizações republicanas. Moscou e o PCE acreditavam que o radicalismo da insurreição anarquista afastaria o tão desejado apoio das potências ocidentais — algo que nunca se concretizou.
As relações entre anarquistas e comunistas se deterioraram continuamente, culminando com os violentos enfrentamentos abertos entre os dois grupos durante os chamados “Eventos de Maio” em 1937. Sob ataque dos próprios aliados e dos nacionalistas, a Revolução Espanhola logo entrou em declínio.
O fim do conflito
Enquanto as forças da esquerda lutavam entre si pelo controle da Frente Popular, as tropas de Franco consolidavam seu domínio sobre Pamplona, Burgos, Córdoba, Zaragoza e Sevilha. Do outro lado, Madri, Barcelona, Valência, Bilbao e Málaga seguiam resistindo às investidas nacionalistas, mas a um custo cada vez mais dramático.
O conflito se prolongou por três anos, convertendo-se em uma guerra de atrito. Franco conseguiu eventualmente isolar as forças republicanas em três enclaves, submetidos a um severo bloqueio comercial.
Por volta de 1938, sofrendo com a escassez e a falta de suprimentos e divididas por uma série de conflitos internos, as tropas republicanas entraram em colapso, permitindo aos nacionalistas capturarem Madri e Barcelona.
Os republicanos se renderam em 1º de abril de 1939, mas as tropas de Franco seguiram submetendo as regiões que capitularam a uma represália brutal, dando início ao período chamado Terror Branco, quando centenas de milhares de civis e ex-combatentes republicanos foram executados.
Franco assumiu o governo da Espanha e instituiu uma ditadura de inspiração fascista. Respaldado pela condescendência das potências ocidentais, que preferiam manter a Espanha sob domínio de uma ditadura do que correr o risco de ver emergir um governo aliado à União Soviética, o franquismo sobreviveu à queda dos regimes autoritários na Segunda Guerra Mundial.
Franco governou a Espanha por quase quatro décadas e ao término de sua presidência restaurou a monarquia espanhola. Seu governo foi marcado pela severa repressão da esquerda e dos movimentos sociais, pela supressão dos direitos civis e por frequentes abusos dos direitos humanos.























