A Crise de 1993: o banho de sangue que garantiu o retorno da Rússia ao capitalismo
Sede do Soviete Supremo era bombardeada pelas Forças Armadas da Federação Russa por ordem do presidente Boris Yeltsin, no ápice de uma crise gerada pelas disputas entre poder executivo e parlamento
Há 31 anos, em 4 de outubro de 1993, a sede do Soviete Supremo era bombardeada pelas Forças Armadas da Federação Russa por ordem do presidente Boris Yeltsin. O bombardeio foi o ápice da crise constitucional gerada pelas disputas entre o poder executivo e o parlamento russo, acerca das reformas políticas e econômicas conduzidas após a dissolução da União Soviética.
Contrariamente ao senso comum propalado pelo Ocidente, o processo de dissolução da União Soviética e de transição do sistema socialista para a economia de mercado foi extremamente atribulado, autoritário e conduzido sem a concordância de boa parte da população do país.
O desmonte foi iniciado na década de 1980 por Mikhail Gorbachev, responsável por instituir os planos de “reestruturação econômica” (Perestroika) e de “abertura política” (Glasnost), abrindo caminho para o avanço das agendas neoliberais e para a erosão das bases de sustentação política dentro do próprio governo soviético. O acidente com o reator atômico da usina nuclear de Chernobyl, a eclosão de movimentos separatistas e as “revoluções coloridas” do Leste Europeu, apoiadas e financiadas pelas potências ocidentais, adicionaram ainda mais pressão em favor das reformas.
Apesar do contexto turbulento, a grande maioria da população soviética se opôs à dissolução da confederação. No referendo realizado em março de 1991, 77,8% dos eleitores afirmaram categoricamente que eram favoráveis à “manutenção da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas como uma Federação renovada de repúblicas iguais e soberanas”, contra apenas 22,1% que apoiaram a dissolução do país.
Apesar da vitória esmagadora do “sim” indicar o desejo popular de manter a União Soviética, as lideranças do país deram continuidade ao projeto de desmonte. Durante o ano de 1991, todas as repúblicas soviéticas se separaram da União — incluindo a própria Rússia. O processo de dissolução foi articulado por Boris Yeltsin, que se encarregou de conduzir as ações diante da impopularidade de Gorbachev. Em 26 de dezembro de 1991, a União Soviética foi oficialmente extinta. Gorbachev renunciou e Boris Yeltsin assumiu a presidência da Federação Russa.
Se a dissolução da União Soviética já não contava com aprovação majoritária, o aprofundamento das transformações operadas no país tornou a situação ainda mais crítica. As reformas conduzidas por Yeltsin — transição para economia de mercado, privatizações, extinção de serviços públicos, redução da rede de proteção social e implementação do receituário neoliberal — foram desastrosas.
A Rússia mergulhou em uma recessão econômica sem precedentes e viu seu PIB despencar para os níveis de 40 anos antes. O desemprego aumentou exponencialmente e milhões de pessoas foram jogadas na miséria. Diante da insatisfação generalizada e das crescentes manifestações, Yeltsin recorreu à repressão policial para impor as reformas.
Coube ao Congresso dos Deputados do Povo — principal órgão legislativo da Federação Russa — o papel de contrapor e contestar as reformas de Yeltsin. Alegando que a transição para o capitalismo estava levando o país à ruína, a oposição parlamentar iniciou um boicote sistemático às pautas do governo federal.

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Sede do Soviete Supremo após o bombardeio perpetrado pelo exército russo
As relações entre o executivo e o legislativo se deterioraram de forma acentuada ao longo do ano de 1993, levando Yeltsin a proferir um discurso televisionado em que informava ao povo russo sobre a instauração de um “regime especial de governança”, que permitiria ao governo impor as reformas mesmo sem a concordância do legislativo. Em outras palavras, Yeltsin assumiu ter a intenção de governar como ditador, de modo a concluir o processo de transição do país para o capitalismo.
O Soviete Supremo — parlamento permanente eleito pelo Congresso dos Deputados do Povo — alegou que as ações de Yeltsin eram inconstitucionais e acionou o Tribunal Constitucional da Rússia para dar início ao processo de deposição do chefe de governo. A corte suprema concordou com a interpretação dos parlamentares, autorizando o início do processo de impeachment.
Visando neutralizar as ações do Soviete Supremo, Yeltsin passou a cooptar parte dos deputados, liberando verbas e prometendo vantagens financeiras e apoio político para seus projetos pessoais. A estratégia funcionou e a oposição não conseguiu obter votos suficientes para depor o presidente. Angariou 617 de 1033 votos — 72 a menos do que o mínimo necessário para aprovar o impeachment.
Yeltsin se contrapôs à tentativa de deposição articulando a aprovação de uma moção de confiança. Com base nessa consulta, o presidente ordenou a dissolução do parlamento. O Soviete Supremo reagiu, definindo a ação do mandatário como um golpe de Estado. Em seguida, decretou o impeachment de Yeltsin e proclamou o vice-presidente Alexander Rutskoi como novo presidente da Federação Russa.
Protestos massivos contra as ações de Yeltsin e a favor do Soviete Supremo tomaram as ruas de Moscou. Embora mantivesse um discurso formal de neutralidade, a cúpula das Forças Armadas manteve-se ao lado de Yeltsin, ignorando a resolução do parlamento.
Os deputados se trancaram na sede do Soviete Supremo e prometeram resistir às ações golpistas de Yeltsin, ao passo que protestos se avolumavam e se espalhavam pela Rússia, deixando o país à beira de uma guerra civil. Yeltsin ordenou aos policiais que cercassem o prédio do parlamento. No dia 3 de outubro, entretanto, uma multidão obrigou os policiais a desfazerem o cerco ao edifício.
Populares também invadiram a prefeitura de Moscou e tentaram tomar a estação de rádio e televisão de Ostankino. Vislumbrando a possibilidade de perder o controle da situação e ver emergir um governo inclinado a desfazer as reformas, as Forças Armadas resolveram agir.
Na manhã do dia 4 de outubro, a artilharia e os tanques do exército russo passaram a bombardear a sede do Soviete Supremo. Vários parlamentares de oposição morreram durante o ataque ou em consequência do incêndio que tomou o edifício após o bombardeio.
Militares invadiram os pavimentos inferiores do parlamento e decretaram a prisão dos deputados que sobreviveram ao ataque, encerrado a resistência. Em seguida, Yeltsin dissolveu o Soviete Supremo e extinguiu o Congresso dos Deputados do Povo, assumindo o controle pleno sobre o país e sobre os instrumentos legais necessários para impor a transição da Rússia para o regime capitalista.
O conflito é considerado o evento mais letal ocorrido em Moscou desde a Revolução de 1917. As fontes oficiais do governo russo afirmam que 147 pessoas morreram durante a ação. O Partido Comunista da Federação Russa, entretanto, estima que a repressão governamental deixou mais de 2.000 mortos.























