Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Há 90 anos, em 3 de novembro de 1935, nascia o sociólogo e militante socialista Herbert José de Sousa, o Betinho.

Ele foi um dos fundadores da Ação Popular, uma agremiação da esquerda católica que se destacou na luta contra a ditadura militar. Após seu retorno do exílio, Betinho exortou a sociedade a participar da luta pela redemocratização, ajudou a criar a rede brasileira de proteção social e a viabilizar a conquista de diversos direitos na Constituinte.

Hemofílico, Betinho descobriu que havia contraído o vírus da imunodeficiência humana através de uma transfusão de sangue. Ele fundou a ABIA e comandou algumas das primeiras iniciativas em prol da defesa dos direitos das pessoas vivendo com HIV.

Betinho também foi o fundador da Ação da Cidadania Contra a Fome, mobilizando dezenas de milhões de pessoas na maior ação de solidariedade já registrada na história do Brasil.

Juventude e formação

Herbert José de Sousa nasceu em Bocaiuva, no norte de Minas Gerais, como um dos oito filhos de Maria da Conceição Figueiredo e de Henrique José de Souza. A exemplo de dois de seus irmãos, — o cartunista Henfil e o músico Chico Mário — Betinho herdou da mãe a hemofilia, um distúrbio genético que impede a coagulação do sangue.

A condição impediu Betinho de ter uma infância comum. Como não podia correr o risco de se machucar, ele evitava se expor às brincadeiras e atividades físicas mais intensas. As complicações médicas também o forçaram a interromper os estudos em várias ocasiões.

Aos 15 anos, Betinho foi diagnosticado com tuberculose. Rejeitando a ideia de internar o filho em um sanatório, os pais decidiram isolá-lo na edícula da casa. Ele permaneceu em confinamento por três anos, período em que se dedicou à leitura de livros religiosos, jornais e revistas.

As terapias tradicionais não estavam surtindo efeito e a família estava desesperançosa. Foi quando Betinho leu na revista O Cruzeiro um anúncio sobre o lançamento da Hidrazida, um medicamento experimental usado no tratamento da tuberculose. O jovem convenceu seu médico a administrar a nova droga. O tratamento deu certo.

Betinho atribuiu sua cura à intervenção divina e desenvolveu uma espiritualidade mais profunda. Assim, quando retomou os estudos em 1953, ele ingressou na Juventude Estudantil Católica (JEC). A agremiação era o ramo juvenil da Ação Católica Brasileira (ACB), movimento que promovia a participação ativa dos fiéis leigos na missão evangelizadora e nas obras sociais da igreja.

Na JEC, Betinho se aproximou da ala progressista liderada pelo frei Mateus Rocha, seu “mentor espiritual”. O frade dominicano defendia a ideia de um Cristo revolucionário e proativo. Ele afirmava que a missão dos cristãos era lutar pela transformação do mundo a partir de um referencial de justiça social. Essa percepção da fé como um instrumento de construção de uma realidade mais justa e solidária seria fortalecida a partir do Concílio Vaticano II, servindo de base para o surgimento da teologia da libertação.

Em 1958, depois de concluir o ensino secundário no Colégio Estadual de Belo Horizonte, Betinho ingressou no curso de Sociologia e Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ao longo da graduação, ele se manteve ativo tanto no movimento estudantil quanto nas agremiações religiosas, convertendo-se em um dos principais coordenadores da Juventude Universitária Católica (JUC).

Dedicando-se ao estudo do socialismo, Betinho se perfilou cada vez mais às ideias de esquerda. Durante a crise sucessória de 1961, iniciada logo após a renúncia de Jânio Quadros, ele defendeu a posse de João Goulart e viajou para o Rio Grande do Sul como representante da UNE, participando da Campanha da Legalidade.

Betinho se graduou em 1962. Nesse mesmo período, iniciou seu relacionamento amoroso com Irles Carvalho, sua futura esposa e mãe de seu primeiro filho, Daniel.

A Ação Popular e o golpe de 1964

Ainda em 1962, Betinho se tornou um dos fundadores da Ação Popular (AP), uma organização da esquerda católica que defendia a construção de um socialismo humanista. Formada majoritariamente por militantes oriundos da JUC, a AP se consagraria como uma das organizações mais dinâmicas da esquerda nos anos 60, auxiliando na articulação dos movimentos sociais e organizando campanhas em prol de temas como a alfabetização, a reforma agrária e os direitos trabalhistas.

Betinho foi um dos principais dirigentes da Ação Popular, coordenando diversas atividades da agremiação entre 1962 e 1964. Como articulador político da entidade, ele ajudou a transformá-la em uma das mais ativas do movimento estudantil, viabilizando a ascensão de três líderes da AP à presidência da UNE: Aldo Arantes, Vinícius Caldeira Brant e José Serra.

Em 1963, Betinho assumiu o cargo de assessor de Paulo de Tarso, o Ministro da Educação de João Goulart. Nessa função, ele ajudou a organizar a Campanha Nacional de Alfabetização, um projeto de erradicação do analfabetismo conduzido pelo educador Paulo Freire, então chefe da Comissão de Cultura Popular.

O sociólogo também atuou como assessor de Francisco Whitaker, ajudando na formulação do projeto de reforma agrária do governo. Colaborou ainda com Leonel Brizola na criação do Grupo dos Onze, impulsionando a luta pela implementação das reformas de base.

O advento do golpe militar de 1964, no entanto, interrompeu todos esses projetos. Betinho foi imediatamente afastado de suas funções e teve sua prisão solicitada pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar). O líder da AP conseguiu se refugiar por um breve período no Uruguai e, ao lado de Brizola, tentou articular a criação de um movimento insurrecional.

Betinho foi preso em dezembro de 1966 e levado para a sede do DOPS no Rio de Janeiro. Solto na antevéspera de Natal, ele passou à clandestinidade, assumindo uma série de tarefas na Ação Popular. Reagindo à crescente repressão da ditadura, a AP radicalizou a sua linha política, afastando-se das diretrizes religiosas e assumindo-se como uma organização marxista-leninista revolucionária, favorável à luta armada.

Em 1967, Betinho viajou para Cuba, a fim de representar a AP durante um evento da Organização Latino-americana de Solidariedade (OLAS). Após retornar ao Brasil, ele trabalhou como operário na região do ABC Paulista. Em meio à cisão da AP, Betinho se vinculou ao grupo dos maoístas, embora não concordasse com a postura dogmática de seus camaradas.

O exílio

Assim como as demais organizações da esquerda revolucionária, a AP passou a ser caçada pelo regime militar durante os “anos de chumbo” e vários dirigentes da organização foram presos ou assassinados no início dos anos 70.

A ofensiva sanguinolenta da ditadura forçou várias lideranças a deixarem o Brasil. Em 1971, Betinho se exilou no Chile, então governado pelo socialista Salvador Allende. Ele foi acompanhado de Maria Nakano, uma militante da AP que se tornaria sua segunda esposa e mãe de seu segundo filho, Henrique.

No Chile, Betinho trabalhou como pesquisador da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO) e assumiu a direção do Instituto de Estudos Sociais e Econômicos (IESE). Atendendo ao convite de Darcy Ribeiro, ele também prestou serviços ao governo chileno, atuando como consultor da Oficina de Planificação da Presidência da República.

Em setembro de 1973, no entanto, o governo de Salvador Allende também foi derrubado por um golpe de Estado. Comandada por Augusto Pinochet e apoiada pelo governo dos Estados Unidos, a quartelada deu origem a uma ditadura violenta que se estenderia por 17 anos.

Forçado a deixar o Chile, o sociólogo buscou abrigo no Panamá e depois foi para o Canadá. Em Toronto, Betinho cursou o doutorado em Ciência Política pela Universidade York e fundou a Unidade de Pesquisa Latino-Americana (Laru). Ao lado de Carlos Afonso, ele publicou O Estado e o Desenvolvimento Capitalista no Brasil, abordando a dinâmica da subordinação da economia brasileira às demandas do capital estrangeiro.

Em 1977, Betinho se transferiu para a Escócia. Ele havia sido convidado por Theotônio dos Santos para lecionar no Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Glasgow. Após alguns meses, mudou-se novamente, dessa vez para o México, onde assumiu o cargo de professor de Ciência Política da Universidade Nacional Autônoma (UNAM).

No México, Betinho se reuniu com Leonel Brizola, Francisco Julião, Neiva Moreira e outras lideranças exiladas para discutir o processo de reorganização da esquerda no Brasil. Ele também participou do Encontro dos Trabalhistas em Lisboa, o evento que pavimentaria o caminho para a criação do Partido Democrático Trabalhista (PDT).

Betinho.
Via Memórias da Ditadura

O retorno ao Brasil

Betinho retornou para o Brasil em 1979, após a promulgação da Lei da Anistia. Sua recepção se tornou um verdadeiro ato político, com centenas de pessoas reunidas no aeroporto cantando O Bêbado e a Equilibrista — a célebre canção de Aldir Blanc que havia se convertido em um símbolo da luta pela volta dos exilados.

O sociólogo retomou imediatamente sua atividade política. Em 1981, ao lado de Carlos Afonso e Marcos Arruda, Betinho fundou o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), organização que se destacaria por promover a participação da sociedade civil em uma série de iniciativas relevantes ao longo dos anos 80.

Por intermédio do IBASE, Betinho produziu estudos críticos como Carajás: o Brasil hipoteca o seu futuro e Cerrados: uma ocupação japonesa no campo. Ele coordenou a Campanha Nacional pela Reforma Agrária e atuou como consultor de projetos de combate à fome desenvolvidos pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

Betinho atuou ativamente no movimento das Diretas Já, ajudando a mobilizar a população na luta pela eleição direta para a Presidência da República. Ele também deu importantes contribuições para a Assembleia Constituinte, promovendo emendas populares que levaram à inclusão de direitos sociais na Constituição de 1988.

Em 1986, Betinho descobriu que havia contraído o vírus da imunodeficiência humana (HIV) por meio das transfusões de sangue que era obrigado a fazer em função da hemofilia. A mesma coisa havia acontecido com seus irmãos Henfil e Chico Mário — ambos falecidos por complicações derivadas da AIDS em 1988.

À época, não havia tratamentos eficazes para o controle do HIV e as pessoas vivendo com o vírus eram submetidas a estigmas desumanizantes e preconceituosos. Betinho se destacou por assumir publicamente seu status sorológico e por incluir a luta pelos direitos das pessoas com HIV entre suas principais bandeiras. Ele fundou a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e comandou a campanha pressionando o governo a garantir o acesso dos pacientes ao AZT, um fármaco antirretroviral.

Ação da Cidadania

Betinho prosseguiu dando importantes contribuições ao Brasil no período pós-redemocratização. Seu instituto, o IBASE, foi responsável por criar o Alternex, o primeiro provedor de acesso à internet disponível para pessoas físicas no Brasil. Em julho de 1991, Betinho foi laureado com o Prêmio Global 500, concedido pela ONU em reconhecimento à sua luta pelas causas ambientais e sociais.

Em 1992, Betinho integrou o Movimento pela Ética na Política e liderou as marchas reivindicando o impeachment de Fernando Collor. No mesmo ano, o sociólogo criou o Terra e Democracia, denunciando o aumento da violência no campo. O ato organizado pelo movimento no Aterro do Flamengo reuniu mais de 200.000 pessoas. Ele também foi o criador da campanha “Se Essa Rua Fosse Minha”, voltada ao acolhimento das crianças em situação de rua no Rio de Janeiro.

Durante a Eco-92, Betinho se destacou como uma das vozes mais respeitadas nas discussões do Fórum Global paralelo. Ele desenvolveu um olhar cada vez mais crítico sobre os limites da democracia liberal, rejeitando o rótulo de social-democrata e afirmando categoricamente que “a democracia é absolutamente incompatível com o capitalismo”.

O ápice da ação social de Betinho ocorreu a partir de 1993, quando ele lançou a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida. O movimento surgiu em um contexto de grave crise econômica, marcado pelo aumento exponencial da subnutrição. No interior do Nordeste, a fome havia feito a mortalidade infantil explodir, resultando em índices mais elevados do que o de países como Angola e Moçambique.

Visando combater a crise social, Betinho criou a maior campanha de solidariedade da história do Brasil. Comitês independentes espalhados por todo o país realizavam a coleta de alimentos em larga escala. O movimento mobilizou escolas, igrejas, sindicatos, empresas e organizações comunitárias. Diversos artistas realizaram shows para ajudar a causa.

Estima-se que cerca de 32% da população brasileira participou da campanha já em sua primeira edição, o que possibilitou uma distribuição sem precedentes de alimentos e cestas básicas. Além de sensibilizar a sociedade para o flagelo da fome, a campanha pressionou o governo a criar programas de segurança alimentar, consolidando a percepção de que o combate à fome era uma obrigação do Estado.

Betinho se dedicou à luta contra a fome até o fim da vida. Ele faleceu em 9 de agosto de 1997, aos 61 anos, vitimado pela AIDS. Sua obra permanece viva através do IBASE, da ABIA e da Ação da Cidadania, que se tornou um movimento permanente e foi ampliado para incluir novas campanhas como o “Natal Sem Fome” e programas de apoio à população carente.