70 anos sem a 'Pequena Notável': a história de Carmen Miranda
Sua carreira foi em boa parte alavancada pela 'política de boa vizinhança' estabelecida pelo governo de Franklin Roosevelt
Há 70 anos, em 5 de agosto de 1955, um Brasil comovido dizia adeus a um de seus maiores ícones. A cantora e atriz Carmen Miranda havia falecido precocemente, vitimada por um ataque cardíaco.
Ícone da Era do Rádio no Brasil, Carmen foi uma das maiores intérpretes do samba na década de 1930, produzindo diversas obras que ficaram eternizadas na memória popular.
Ela também se distinguiu como estrela de cinema, constituindo uma sólida carreira internacional e firmando-se como uma das maiores atrizes de Hollywood.
Carmen permanece até hoje como um das personalidades brasileiras de maior projeção internacional, possuindo um impacto cultural duradouro que segue influenciando gerações de artistas.
Da juventude ao estrelato
Maria do Carmo Miranda da Cunha nasceu em 9 de fevereiro de 1909 em Marco de Canaveses, no norte de Portugal, filha do barbeiro José Maria Pinto da Cunha e de sua esposa, Maria Emília Miranda. A família imigrou para o Brasil quando Carmen tinha menos de um ano de idade, fixando residência no Rio de Janeiro.
No Brasil, o pai montou uma barbearia e a mãe tornou-se administradora de uma pensão. Carmen frequentou a Escola Santa Teresa, um colégio para meninas carentes mantido pelas Irmãs Vicentinas. Deixou a escola aos 14 anos, a fim de auxiliar nas despesas de casa.
A jovem passou a trabalhar entregando marmitas e foi balconista em uma loja de chapéus. Carmen nutria desde muito cedo o sonho de ser artista. No seu tempo livre, gostava de cantar. Aprendeu também a costurar com sua irmã mais velha e tinha o hábito de confeccionar suas próprias roupas.
A carreira artística de Carmen teve início em 1929, quando a jovem se apresentou em um recital beneficente organizado pelo Instituto Nacional de Música. O talento de Carmen chamou a atenção do compositor Josué de Barros, que a convidou para se apresentar na Rádio Sociedade.
Nesse mesmo ano, Carmen gravou suas primeiras canções, todas compostas por Josué: “Não Vá Sim’bora”, “Se o Samba é Moda”, “Dona Balbina” e “Triste Jandaia”.
Em 1930, Carmen gravou a marchinha “Taí”, composta por Joubert de Carvalho, que se tornou um enorme sucesso no carnaval daquele ano. O disco com a canção vendeu 35.000 exemplares, um recorde à época, e impulsionou o nome de Carmen ao estrelato nacional.
Muito versátil, Carmen se ocupou de diversos projetos na década de 1930. Atuou na revista musical “Vai Dar o Que Falar”, encenada no Teatro João Caetano, e cantou com a orquestra da Guarda Velha nas festas do Fluminense F.C., onde conviveu com Eleazar de Carvalho e Radamés Gnattali. Em parceria com Pixinguinha, ela escreveu a canção “Os Home Implica Comigo”.
A Era do Rádio
Em 1931, a cantora foi contratada pela Rádio Mayrink Veiga, tornando-se a primeira artista brasileira a assinar um contrato de exclusividade com uma emissora de rádio.
Talentosa e carismática, Carmen logo se consagrou como a maior intérprete brasileira da Era do Rádio. A artista trabalhou em parceria com alguns dos mais proeminentes nomes da música brasileira, interpretando composições de Lamartine Babo, Assis Valente, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Sinhô, Alcyr Pires Vermelho, Ataulfo Alves, Cartola, Noel Rosa, Synval Silva, etc.
O repertório musical de Carmen era extremamente variado, incluindo sambas, choros, cateretês, etc. A cantora fez interpretações antológicas de sucessos atemporais, como “Tico-Tico no Fubá” (de Zequinha de Abreu e Aloysio de Oliveira) e “Na Baixa do Sapateiro” (de Ary Barroso).
Ela também se firmou como um símbolo do carnaval, lançando algumas das marchinhas mais conhecidas do Brasil (“Mamãe, Eu Quero”, de Jararaca e Vicente Paiva). Carmen Miranda se destacou por introduzir um novo estilo interpretativo em suas canções, sobretudo nos sambas, substituindo a impostação do canto operístico por uma execução mais natural e espontânea.
Carmen suprimia os ornamentos vocais tradicionais e introduzia novos elementos, como palavras, alterações da modulação da voz e uma entonação que expressava ironia e sarcasmo ou duplo sentido. Tais novidades agradaram o público e se alinharam às inovações da indústria radiofônica, impactando o desenvolvimento da música ulterior.

Carmen Miranda, fotografada por Annemarie Heinrich
Wikimedia Commons
O sucesso de Carmen no rádio resultou em convites para que ela atuasse na incipiente indústria de filmes sonoros. O primeiro filme estrelado por Carmen foi o documentário “O Carnaval Cantado de 1932”, de Vital Ramos de Castro. No ano seguinte, Carmen executou três peças para o filme “A Voz do Carnaval”, de Humberto Mauro e Adhemar Gonzaga.
Em 1935, a cantora atuou no musical “Alô Alô, Brasil!”, de Wallace Downey, protagonizando o encerramento com a marcha “Primavera no Rio”. No mesmo ano, interpretou seu primeiro papel narrativo na comédia “Estudantes”, também de Wallace Downey.
Em 1936, Carmen participou de mais uma comédia musical — “Alô Alô, Carnaval”, de Adhemar Gonzaga e Wallace Downey. O filme foi uma grande produção para os padrões do cinema brasileiro à época e teve como ponto alto a performance das irmãs Carmen e Aurora Miranda em “Cantores de Rádio”, de João de Barro.
Nos palcos da Broadway
Em 1939, Carmen atuou em seu último filme brasileiro — “Banana da Terra”, produzido por Wallace Downey e dirigido por Ruy Costa. Em um trecho da obra, Carmen interpreta a canção “O que é que a baiana tem?”, de Dorival Caymmi, utilizando pela primeira vez o traje de baiana e os balangandãs que se tornariam sua marca.
O figurino seria reaproveitado nas apresentações de Carmen e de sua banda, o Bando da Lua, no Cassino da Urca. Os espetáculos chamaram a atenção de Lee Shubert, um empresário norte-americano, dono de diversos teatros em Nova York. Shubert convidou Carmen para se apresentar nos Estados Unidos. Ela concordou, com a condição de que o Bando da Lua fosse junto.
Carmen estreou na Broadway em junho de 1939, contracenando com a dupla cômica Abbott e Costello no espetáculo “As Ruas de Paris”, dirigido por Edward Duryea Dowling. A brasileira se tornou a grande atração do show, recebendo várias críticas positivas da imprensa — chegando até mesmo a ser descrita como “a maior sensação teatral do ano”.
O espetáculo foi montado em várias cidades dos Estados Unidos e, em março de 1940, Carmen fez uma apresentação especial para o presidente Franklin Roosevelt na Casa Branca. A brasileira se transformou em um fenômeno midiático, chegando a receber o apelido de “the Brazilian Bombshell”.
O sucesso de Carmen nos Estados Unidos não foi bem digerido por alguns no Brasil. Além das críticas politicamente motivadas, a artista enfrentou acusações de que estava suprimindo sua “brasilidade” para se adaptar ao gosto norte-americano.
Quando voltou ao Brasil e retomou os shows no Cassino da Urca, Carmen foi recebida com frieza, chegando a ser vaiada pela plateia. Em resposta às críticas, a cantora gravou o samba “Disseram que Voltei Americanizada”, composto especialmente para a ocasião por Luís Peixoto e Vicente Paiva.
A carreira em Hollywood
Carmen retornou aos Estados Unidos em 1940, assinando um contrato com a Fox e iniciando uma prolífica carreira cinematográfica em Hollywood.
A carreira de Carmen foi em boa parte alavancada pela “política de boa vizinhança” estabelecida pelo governo de Franklin Roosevelt. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial na Europa, os Estados Unidos precisavam reforçar suas alianças políticas na América Latina e conquistar novos mercados consumidores — incluindo novas salas de cinema para absorver a produção de sua indústria cultural.
Carmen tinha, portanto, a missão de ser uma espécie de “alegoria” da América Latina. Para isso, a brasileira teve de forjar uma personagem exótica, uma espécie de amálgama indefinida e estereotipada de referências latinas.
Sua indumentária era extravagante, seu sotaque era propositalmente forçado e as personagens sempre seguiam o estereótipo da mulher latina — alegre, passional, efusiva, espalhafatosa, sensual e lasciva.
Não obstante, Carmen soube direcionar esse enquadramento imposto pela indústria em seu favor, conseguindo cativar a plateia com seu carisma, seu elegante gestual e sua performance expressiva.
A personagem caricata levou parte da intelectualidade brasileira a rejeitar Carmen, mas nos Estados Unidos ela fez enorme sucesso — ao ponto de se tornar a atriz mais bem paga de Hollywood. Carmen estreou no cinema norte-americano em 1940, com “Serenata Tropical”, de Irving Cummings, um blockbuster que recebeu três indicações ao Oscar.
No ano seguinte, a brasileira trabalhou em “Uma Noite no Rio”, também de Cummings (descrito como “o ápice dos musicais do tempo de guerra da Fox”), e em “Aconteceu em Havana”, de Walter Lang.
Ainda em 1941, Carmen se tornou a primeira personalidade latino-americana a deixar suas mãos gravadas no pátio do Teatro Chinês em Hollywood. Futuramente, ela também seria a primeira sul-americana a ser homenageada com uma estrela na Calçada da Fama.
Em 1942, após mais uma breve temporada na Broadway, Carmen retornou ao cinema com “Minha Secretária Brasileira”, de Cummings. Seguiu-se “Entre a Loura e a Morena”, de Busby Berkeley, indicado ao Oscar de melhor direção de arte.
Os últimos anos
Em 1944, Carmen atuou em mais três filmes: “Quatro Moças num Jipe” (de William A. Seiter), “Serenata Boêmia” (Walter Lang) e “Alegria, Rapazes!” (Lewis Seiler).
Mas após o término da Segunda Guerra Mundial e o fim da “política de boa vizinhança”, o interesse dos estúdios por Carmen diminuiu sensivelmente. Seus filmes deixaram de ser produzidos com Technicolor, o que diminuiu o apelo das produções.
A atriz passou a ser relegada a papéis secundários, sem grande destaque. Após a produção de mais dois filmes (“Sonhos de Estrela” e “Se Eu Fosse Feliz”, ambos de Lewis Seiler), a Fox anunciou que não renovaria seu contrato.
Carmen seguiu com sua carreira como atriz independente e tentou aproveitar a oportunidade para fugir da personagem que a indústria lhe impunha. Em 1947, atuou no musical “Copacabana”, de Alfred Green. No mesmo ano, lançou a canção “I Make My Money with Bananas”, onde critica o enquadramento estereotipado a que foi submetida por Hollywood.
Em 1948, Carmen atuou em “O Príncipe Encantado”, de Richard Thorpe, onde contracenou com Wallace Beery e Elizabeth Taylor. Seu último filme, “Morrendo de Medo”, foi duramente criticado. O jornal “The New York Times” chegou a dizer que o “único serviço apreciável” de Carmen na obra foi dar a deixa para que Jerry Lewis pudesse parodiá-la.
As críticas ácidas contribuíram para agravar o estado de espírito de Carmen. A cantora passava por sérios problemas conjugais com seu marido, o produtor norte-americano David Sebastian.
Além de gerir pessimamente a carreira da atriz, David era alcoólatra, violento e agredia Carmen constantemente. Para piorar, Carmen sofreu um aborto espontâneo em 1948, que comprometeu sua capacidade reprodutiva. A atriz entrou em depressão e passou a abusar de bebidas, cigarros e medicamentos.
Carmen também se tornou dependente de barbitúricos, que tomava para poder cumprir a agenda extenuante da indústria do entretenimento. A dependência química, a rotina exaustiva e a depressão comprometeram gravemente sua saúde. Em 5 de agosto de 1955, Carmen foi encontrada morta em sua casa em Beverly Hills, vitimada por um ataque cardíaco. Ela tinha 46 anos de idade.
A morte de Carmen chocou e comoveu o Brasil. Após o traslado do corpo para o país, mais de um milhão de pessoas acompanharam o cortejo fúnebre do caixão até o Cemitério São João Batista — uma das maiores manifestações populares já registradas no Rio de Janeiro.
Carmen Miranda permanece até hoje como uma das personalidades brasileiras de maior projeção internacional. A artista teve enorme importância para difundir internacionalmente a música e a cultura do Brasil e inspirou gerações de artistas.
Suas personagens se tornaram arquétipos mundialmente conhecidos, que até hoje influenciam a indústria de massa, a moda e a cultura popular.























