Sábado, 6 de dezembro de 2025
APOIE
Menu

Há 64 anos, em 25 de agosto de 1961, tinha início a Campanha da Legalidade, uma das maiores mobilizações populares da história do Brasil. Liderado por Leonel Brizola, o movimento se contrapôs à tentativa das Forças Armadas de impedir que João Goulart assumisse a Presidência da República após a renúncia de Jânio Quadros.

Brizola transformou o Rio Grande do Sul no epicentro da resistência legalista. Ele fortificou o palácio do governo, distribuiu armas para os civis, organizou batalhões populares e criou a “Cadeia da Legalidade” — uma rede formada por mais de 150 emissoras de rádio que teve importância fundamental para engajar a população na luta contra a intentona golpista.

A intensa pressão popular e o risco de uma guerra civil conduziram as partes envolvidas a uma solução negociada: a adoção do regime parlamentarista, que possibilitou a posse de Goulart, mas reduziu temporariamente seus poderes.

Udenistas x Desenvolvimentistas

Após o término da Segunda Guerra Mundial, o Brasil mergulhou em um período marcado por forte agitação política e pela disputa entre dois projetos antagônicos. Enquanto os varguistas, trabalhistas e setores da esquerda nacionalista se agrupavam em torno do projeto nacional-desenvolvimentista, a UDN e os setores conservadores reivindicavam o retorno do programa liberal, calcado na primazia do agronegócio e na subordinação ao capital estrangeiro.

O retorno de Getúlio Vargas ao governo em 1950 havia inflamado a oposição udenista, que passou a articular abertamente um golpe de Estado. O suicídio do mandatário convulsionou o país, gerando uma onda mobilizadora que neutralizou a ofensiva golpista.

Apresentando-se como “herdeiro de Getúlio”, Juscelino Kubitschek foi eleito em 1955 defendendo um audacioso programa de modernização econômica — o “Plano de Metas”. Ele também foi alvo de diversas investidas golpistas e enfrentou uma tentativa de impugnação antes mesmo de sua posse.

JK concluiu seu mandato, mas sofreu com o desgaste do aumento acelerado da inflação, que chegou a 39,5% em 1959. A alta generalizada dos preços prejudicou o desempenho de Marechal Lott, o candidato de JK na eleição presidencial de 1960. O conservador Jânio Quadros, por sua vez, conseguiu atrair muitos eleitores prometendo um combate implacável contra a inflação e a redução do custo de vida.

Angariando 48,3% dos votos, Jânio venceu a disputa, tornando-se o 22º presidente do Brasil. Seu vice-presidente, entretanto, seria João Goulart, ex-Ministro do Trabalho de Vargas e vice-presidente do governo JK, ligado aos trabalhistas e a setores da esquerda. Isso porque, na época, as eleições não eram disputadas por chapas vinculadas, existindo votação separada para presidente e para vice.

A renúncia de Jânio

Empossado em 1961, Jânio Quadros encontrou muitas dificuldades para governar. Além de não possuir maioria no congresso, o presidente acabou alienando parte da sua própria base de apoio. Jânio mantinha uma postura beligerante, frequentemente atacando os parlamentares com um discurso moralista, o que acabou isolando o seu governo.

A política econômica implementada por Jânio também causou insatisfação popular. As medidas de austeridade, a desvalorização cambial e o corte de subsídios elevaram os preços, gerando altas de até 100% no pão e nos combustíveis — contrariando a promessa do controle da inflação. Ao mesmo tempo, a política externa de Jânio, calcada em princípios pragmáticos, desagradou os setores conservadores, ao promover a aproximação comercial com as nações do bloco socialista.

As críticas dos conservadores a Jânio se avolumaram após 18 de agosto, quando ele condecorou o guerrilheiro Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul. O presidente se tornou alvo do histriônico Carlos Lacerda, que passou a acusá-lo de tramar um “golpe de gabinete” para fortalecer o seu governo.

Uma semana depois, em 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros surpreendeu todo o país ao assinar sua renúncia, alegando estar sob pressão de “forças terríveis”. A renúncia era uma manobra política. Jânio sabia que os setores conservadores não aceitariam que João Goulart assumisse a presidência. Ele esperava ser reconduzido ao governo com poderes ampliados, o que lhe permitiria neutralizar a oposição do Congresso.

O plano de Jânio, entretanto, fracassou. Sua renúncia foi prontamente aceita. Não houve pressão popular pelo seu retorno à presidência e mesmo os deputados conservadores não se engajaram em sua defesa. Havia, de fato, muita resistência a Goulart entre os militares, mas eles não achavam que dependiam de Jânio para barrar a ascensão do líder trabalhista.

A crise sucessória

João Goulart não estava no Brasil quando a crise eclodiu. Ele havia partido para a China no fim de julho, à frente de uma missão comercial. A tarefa lhe fora entregue por Jânio, que já pretendia se aproveitar da ausência do vice para pôr seu plano em prática.

Ranieri Mazzilli, o presidente da Câmara dos Deputados, assumiu o governo interinamente, mas o poder efetivo ficou nas mãos de uma junta militar formada pelos ministros da Guerra (Odylio Denys), da Marinha (Sílvio Heck) e da Aeronáutica (Gabriel Grün Moss).

A possibilidade de um presidente ligado à esquerda e ao movimento sindical assumir a presidência causava enorme preocupação à cúpula das Forças Armadas. Os militares vetaram a posse de Goulart, argumentando riscos à segurança nacional devido às supostas “ligações comunistas” do vice-presidente — um argumento que foi fortalecido pelo fato de Goulart estar um país socialista quando a renúncia ocorreu.

Um manifesto redigido por Golbery do Couto e Silva reafirmou a posição dos militares, acusando Goulart de promover “agitações sucessivas e frequentes nos meios sindicais”. As Forças Armadas propuseram a convocação de novas eleições em 60 dias e pressionaram o Congresso a declarar o impedimento de Goulart.

O Parlamento rejeitou a proposta, mas a crise continuou a se agravar. Goulart iniciou seu retorno ao Brasil, mas o fez de forma lenta, estabelecendo várias escalas, visando gerar tempo hábil para as negociações.

Muitos militares se opuseram ao movimento golpista, incluindo o Marechal Lott. Ele tentou reunir os oficiais legalistas no Rio de Janeiro e deu fortes declarações públicas defendendo a ordem constitucional. Lott foi preso no dia 27 de agosto. Outros oficiais como Jefferson Cardim Osório, William Stockler e Francisco Teixeira também foram detidos.

Quase todos os governadores se alinharam aos golpistas, com exceção de Chagas Rodrigues, do Piauí, Mauro Borges, de Goiás, e Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul. Miguel Arraes, o prefeito de Recife, e Prestes Maia, prefeito de São Paulo, também se posicionaram a favor da posse de Goulart.

A maioria esmagadora da população rejeitou a ofensiva dos militares. Uma pesquisa de opinião produzida na época pelo Ibope revelou que 91% dos entrevistados eram favoráveis à posse de Goulart.
Manifestações em favor do líder trabalhista eclodiram por todo o país, mobilizando estudantes e operários. A UNE e a Frente Parlamentar Nacionalista organizaram uma série de atos e diversos sindicatos convocaram greves.

A repressão foi brutal. Na Cinelândia, palco de uma onda de protestos que se prolongaram por dias, a polícia chegou a abrir fogo contra os manifestantes. Vários sindicatos foram invadidos e depredados e milhares de pessoas foram presas.

A Campanha da Legalidade

Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul e cunhado de João Goulart, emergiu como figura central da resistência. Filiado ao PTB, Brizola já era uma das maiores lideranças da esquerda nacionalista, tendo se destacado pelas políticas avançadas que implementou em seu governo e pela postura firme nos embates com as empresas internacionais.

O governador gaúcho mobilizou seus aliados e articulou a criação de uma frente para exigir o cumprimento da Constituição. Ele obteve apoio de vários oficiais legalistas, incluindo os generais Peri Constant Bevilacqua e Oromar Osório, e iniciou a transformação do governo gaúcho em uma verdadeira trincheira contra o movimento golpista. Nascia assim a Campanha da Legalidade.

Na madrugada do dia 27 de agosto, Brizola requisitou as rádios Farroupilha e Guaíba e fez um discurso anunciando que o Rio Grande do Sul não permitiria ataques à democracia: “Não assistiremos passivamente a quaisquer atentados contra as liberdades públicas e a ordem constitucional. Reagiremos como estiver ao nosso alcance”, afirmou.

Brizola liderando civis e militares durante a Campanha da Legalidade. Via Instituto João Goulart

Brizola liderando civis e militares durante a Campanha da Legalidade
Via Instituto João Goulart

Brizola enviou a Brigada Militar para ocupar pontos estratégicos de Porto Alegre e armou os funcionários do Palácio Piratini, a sede do governo gaúcho. A população respondeu à convocatória. Manifestações em apoio a Brizola e Goulart tomaram as ruas de Porto Alegre e um cordão de voluntários cercou o palácio do governo.

O Comando Sindical de Porto Alegre organizou uma marcha com mais de 5.000 manifestantes. Sindicatos de várias categorias ajudaram a formar batalhões populares e foram iniciados os preparativos para uma greve geral.

Para coordenar as ações da população civil, o governo gaúcho criou o Comitê Central do Movimento de Resistência Democrática, que contou com a adesão de mais de 45.000 pessoas. Os comitês legalistas se espalharam pelo estado. A população contribuiu oferecendo armas, carros e tudo mais que pudesse ser útil ao movimento.

A Cadeia da Legalidade

Alarmada pela intensa mobilização no Rio Grande do Sul, a junta militar forçou a interrupção das transmissões nas rádios Itaí, Farroupilha e Difusora. Brizola reagiu ordenando a ocupação da Rádio Guaíba. Ele transferiu os estúdios para o Palácio Piratini e colocou 200 soldados da Brigada Militar para defender os transmissores.

O governador também requisitou o uso de estações espalhadas pelo interior do estado, que foram integradas para formar a “Cadeia da Legalidade” — uma rede de mais de 150 emissoras de rádio, alcançando diversas regiões do território nacional. A estratégia foi essencial para denunciar as ofensivas da junta militar e coordenar a luta contra o golpe.

Brizola não parou na comunicação: ele requisitou toda a produção da Taurus e distribuiu armas e munições para os civis. Fortificou o Palácio Piratini com trincheiras, sacos de areia e arame farpado. Posicionou metralhadoras nas torres das igrejas e nos altos dos edifícios. Enviou tropas para que ocupassem a Companhia Telefônica e colocou o transporte aéreo da Varig sob controle do estado. O Rio Grande do Sul estava preparado para travar uma guerra em nome da legalidade.

A mobilização se espalhou para outros estados. Em Goiás, Mauro Borges integrou a Rádio Brasil Central à Cadeia da Legalidade, mobilizou 5.000 voluntários no “Batalhão Tiradentes” e requisitou armas e munições para preparar uma insurreição. Um plano para estabelecer Goiânia como sede de um governo paralelo foi criado.

No Paraná, a Assembleia Legislativa declarou apoio à causa legalista. Iberê de Mattos, o prefeito de Curitiba, permitiu o uso da Rádio Guairacá e criou um Comitê de Arregimentação Democrática para formar milícias populares. Grandes manifestações seguiram ocorrendo em São Paulo, Rio de Janeiro e Recife.

Os militares se rebelam

Brizola ganhou um apoio inesperado e de enorme importância no dia 28 de agosto. O general José Machado Lopes, comandante do III Exército, rompeu com a junta militar e se uniu à causa legalista. O oficial ficara indignado ao ouvir dos superiores em Brasília a ordem para bombardear o Palácio Piratini. “Cumpro somente ordens que estão dentro da Constituição vigente”, retrucou.

A decisão de Machado Lopes não apenas impediu o início de uma guerra civil, mas também acentuou a cisão entre golpistas e legalistas dentro das Forças Armadas. Militares favoráveis à Campanha da Legalidade seguiram o exemplo de Machado Lopes, passando a recusar o cumprimento de ordens que não estivessem ancoradas em princípios legais ou democráticos.

Foram inúmeros os casos de insubordinação. Em São Paulo, os comandantes de grupos de canhões antiaéreos se recusaram a tomar parte da “Divisão Cruzeiro”, a expedição encarregada de reprimir os legalistas no Rio Grande do Sul. Os soldados do 2º Batalhão de Caçadores em Santos se negaram a avançar rumo a Registro. Em Itu, vários oficiais foram presos por questionarem as ordens da junta militar.

Em Minas Gerais, o 11º Regimento de Infantaria se recusou a acatar as ordens. No Rio de Janeiro, diversas unidades se rebelaram, incluindo os paraquedistas e subunidades do 1º Regimento de Obuses, o 1º Esquadrão de Reconhecimento Mecanizado e o 3º Batalhão de Carros de Combate.

Na Base Aérea de Canoas, os sargentos gaúchos executaram uma operação de sabotagem, frustrando os planos de bombardeio aéreo contra Porto Alegre. Durante a madrugada, eles esvaziaram os pneus dos caças, desarmaram as aeronaves e alertaram Brizola e Machado Lopes. No dia 29, a base foi tomada pelas tropas legalistas.

Rebeliões também ocorreram na Marinha. No Recife, o comandante do “Bracuí” desafiou as ordens do Terceiro Distrito Naval. No contratorpedeiro “Ajuricaba”, os marinheiros se rebelaram, prendendo seus oficiais e assumindo o comando da embarcação.

A solução negociada

Com as Forças Armadas divididas, o Congresso pressionado e o país à beira da guerra civil, as autoridades civis e militares foram levadas a buscar uma resolução negociada para o impasse: a adoção do regime parlamentarista.

A proposta foi desenvolvida pelo deputado Tancredo Neves e apoiada pela maioria dos líderes conservadores. Ela determinava que Goulart poderia assumir a presidência, mas teria seus poderes limitados, transferindo grande parte das atribuições executivas ao primeiro-ministro e ao gabinete parlamentar.

Embora muito contrariado, Goulart foi convencido a aceitar o acordo. O presidente desembarcou em Porto Alegre no dia 1º de setembro de 1961. No dia seguinte, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional Nº 4, instaurando o regime parlamentarista no Brasil. Tancredo Neves assumiu o cargo de primeiro-ministro.

Brizola se opôs veementemente ao acordo, alegando que o Congresso estava agindo sob coação dos militares. Ele ainda tentou convencer Goulart a apoiar uma ofensiva do III Exército contra os golpistas, mas o presidente preferiu um recuo tático diante da possibilidade de guerra civil. O acordo frustrou boa parte da esquerda, que considerou a imposição do parlamentarismo como um “golpe branco”.

Goulart só conseguiu retornar a Brasília para tomar posse no dia 5 de setembro. Ele teve que esperar que as tropas do Exército ocupassem as bases aéreas para impedir a concretização da “Operação Mosquito” — um plano elaborado por oficiais da Aeronáutica que pretendiam abater o avião do presidente.

A adoção do parlamentarismo criou um arranjo político instável, engessando e enfraquecendo o governo de João Goulart e impedindo a concretização de seus projetos. Essa limitação, entretanto, seria revertida em 1963, quando um plebiscito restaurou o regime presidencialista e devolveu plenos poderes ao chefe do executivo.

Além de garantir a posse de Goulart, a Campanha da Legalidade projetou a figura de Leonel Brizola como um verdadeiro herói nacional. O movimento tornou-se um marco de grande importância para a luta popular, não apenas por ter sido uma das maiores mobilizações da classe trabalhadora no século 20, mas, sobretudo, por ser um exemplo de como a ação organizada das massas pode derrotar o golpismo, o autoritarismo e o arbítrio dos setores reacionários.