Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Há 52 anos, em 16 de setembro de 1973, o Chile perdia um de seus maiores artistas. Víctor Jara, cantor, compositor, poeta e diretor de teatro, era brutalmente assassinado pela ditadura militar.

Nos anos 60, Víctor foi responsável por algumas das montagens mais emblemáticas do teatro experimental chileno, dirigindo peças que abordavam a luta de classes e os problemas sociais do país.

Em paralelo, ele se consagrou como um dos maiores nomes da Nova Canção Chilena, movimento musical que combinava a valorização da cultura popular e dos ritmos folclóricos com mensagens de luta por justiça social e igualdade.

Militante do Partido Comunista, Víctor apoiou o governo de Salvador Allende e organizou comícios e atos em prol da reforma agrária, das nacionalizações e dos direitos dos trabalhadores. Ele também atuou na resistência à articulação golpista, mas foi preso, torturado e fuzilado logo após o golpe de 11 de setembro de 1973.

Infância e juventude

Víctor Lidio Jara Martínez nasceu em 28 de setembro de 1932. Era um dos cinco filhos de Amanda Martínez e Manuel Jara, um casal de camponeses da província de Ñuble, no Chile central. As fontes divergem sobre o local exato de seu nascimento, ora apontado como a comuna de San Ignacio, ora como o povoado de Quiriquina. Foi em Lonquén, contudo, uma pequena localidade nos arredores de Santiago, que o jovem Víctor cresceu.

Víctor começou a trabalhar na lavoura com seis anos de idade. Muito pobre, sua família não possuía terra própria. Eles cultivavam um lote de um enorme latifúndio pertencente aos Ruiz-Tagle, um dos clãs mais poderosos do Chile.

O relacionamento com o pai era bastante conturbado. Alcoólatra, ausente e violento, Manuel acabou por abandonar a família quando Víctor ainda era pequeno. Amanda se esforçou para sustentar a casa e garantiu que todos os filhos frequentassem a escola.

Foi a mãe quem influenciou o gosto de Víctor pela música e pela cultura popular. Amanda era uma mestiça de ascendência Mapuche e gostava de ensinar aos filhos sobre o folclore e as tradições indígenas. Ela tocava violão e piano de ouvido, compunha versos e cantava toadas, vilancetes e canções folclóricas em casamentos, batizados e velórios. Víctor costumava acompanhá-la nas apresentações e absorveu seu rico repertório de canções andinas.

Na adolescência, Víctor e a família se mudaram para Santiago em busca de melhores condições de vida. O jovem concluiu o ensino primário e depois foi trabalhar em uma fábrica de móveis da família Morgado. Aos 15 anos, Víctor perdeu sua mãe, vitimada por um infarto. A morte de Amanda o abalou profundamente e resultou na dissolução do núcleo familiar, com os irmãos ficando sob tutelas distintas.

Víctor foi acolhido na casa da família Morgado, onde residiu por três anos. Em 1950, ele aceitou o conselho de um padre e se tornou seminarista na Congregação do Santíssimo Redentor. Na instituição, o jovem se dedicou ao canto gregoriano e ao estudo da teologia, mas acabou desistindo da carreira religiosa ao notar que “o sacerdócio era uma fuga, não uma vocação”. Em seguida, cumpriu o serviço militar obrigatório na Escola de Infantaria do Exército Chileno.

Contribuição nos palcos

Víctor iniciou sua trajetória artística aos 21 anos, quando se juntou ao Coro da Universidade do Chile e participou de uma montagem de Carmina Burana, cantata cênica de Carl Orff. Três anos depois, decidido a seguir a carreira nos palcos, ele ingressou Escola de Teatro da Universidade do Chile, onde estudou atuação e direção técnica.

Durante a graduação, Víctor foi aluno de nomes como Bélgica Castro e Pedro de la Barra, expoentes do teatro experimental chileno. Ele se aproximou dos grupos que defendiam que o palco era um espaço privilegiado para a reflexão crítica e para a abordagem da temática social. Nesse mesmo período, filiou-se ao Partido Comunista do Chile (PCCh), envolvendo-se cada vez mais nos debates políticos e na defesa das causas populares.

Víctor foi membro da Companhia de Mímica Noisvander e integrante do conjunto folclórico Cuncumén. Ele se tornou amigo da cantora Violeta Parra e ajudou a organizar uma série de pesquisas folclóricas, destinadas a registrar as tradições orais e as obras do cancioneiro popular.

Sua estreia como diretor ocorreu em 1959, com a peça Parecido a la Felicidad, de Alejandro Sieveking. Com um texto marcado pelo realismo, abordando as aspirações e frustrações da classe trabalhadora, a peça se tornou um marco do teatro social chileno e foi apresentada em vários países da América Latina.

Em 1960, Víctor participou da montagem de La viuda de Apablaza, escrita por Germán Luco Cruchaga, e dirigiu A Mandrágora, comédia de Maquiavel. Atuou como diretor de Ánimas de Día Claro e La Remolienda, dois clássicos da dramaturgia chilena escritos por Sieveking, além de Los Invasores, de Egon Wolff, Dúo, de Raúl Ruiz, e La Casa Vieja, de Abelardo Estorino. Auxiliou também na montagem de O Círculo de Giz Caucasiano, de Bertolt Brecht.

As peças dirigidas por Víctor Jara ao longo dos anos 60 dialogavam com seu crescente engajamento político, abordando questões como a luta de classes, a desigualdade social e as contradições da sociedade chilena, quase sempre apresentadas sob a perspectiva da classe trabalhadora. As montagens foram muito elogiadas e renderam prêmios ao diretor, incluindo o Laurel de Oro e o Prêmio de Crítica Dramática do Círculo dos Jornalistas.

Nos anos 60, Víctor atuou como diretor da Academia de Folclore da Casa da Cultura de Ñuñoa. Ele também integrou a equipe permanente de diretores do Instituto de Teatro da Universidade do Chile (Ituch) e foi professor de atuação na universidade entre 1964 e 1967.

Em maio de 1966, Víctor se casou com Joan Turner, uma bailarina e coreógrafa britânica que conhecera durante uma montagem teatral. O casal teve uma filha, Amanda Jara, meia-irmã de Manuela Bunster, nascida do casamento anterior de Joan.

A Nova Canção

Ascendendo ao posto de diretor artístico do grupo Cuncumén, Víctor deu continuidade às missões folclóricas, realizando uma série de viagens voltadas ao registro das tradições andinas. Em 1959, ele gravou seu primeiro disco como solista do conjunto, contendo dois vilancetes musicados.

Em 1961, Víctor Jara compôs sua primeira canção: a balada romântica Paloma Quiero Contarte. A música integrou o LP Folclore Chileno, lançado pelo grupo Cuncumén no ano seguinte. Em 1966, o autor lançou seu primeiro álbum solo.

Víctor Jara
Biblioteca Nacional do Chile via Agência Brasil

Ao longo dos anos 60, Víctor Jara se destacaria como um dos maiores nomes da Nova Canção Chilena — movimento em prol da valorização das culturas regionais, que buscava fomentar uma arte legitimamente popular e politicamente engajada. Para Víctor, a música seria, acima de tudo, uma poderosa ferramenta de conscientização, de denúncia dos problemas sociais e de incentivo à mobilização política.

A Nova Canção Chilena se integrava uma série de movimentos congêneres que emergiram no continente ao longo dos anos 60, pregando a solidariedade entre os povos da região, a resistência cultural contra o imperialismo e o fortalecimento das identidades culturais latino-americanas.

As canções que Víctor compunha ou interpretava abordavam a vida dura dos trabalhadores do campo e da cidade (El Arado, Marcha de los Trabajadores de la Construcción), criticavam a violência e a repressão policial (Canción del Soldado), denunciavam a desigualdade social e o racismo (Luchín, Así Como Hoy Matan Negros), exaltavam a luta popular e a revolução (Para Cochabamba me Voy, Juan Sin Tierra, Manifiesto).

Entre 1966 e 1969, Víctor atuou como diretor artístico do grupo Quilapayún, um dos mais importantes conjuntos de música folclórica chilena, gravando álbuns como Canciones Folclóricas de América, Por Vietnam e Basta. Também integrou por cinco anos a Peña de los Parra, uma iniciativa criada pelos irmãos Isabel y Ángel, filhos de Violeta Parra, que congregava alguns dos mais célebres nomes da Nova Canção.

Em 1969, Víctor Jara se consagrou como vencedor do Primeiro Festival Chileno da Nova Canção, se apresentando com a música Plegaria a um Labrador, uma de suas obras mais marcantes, exortando a solidariedade de classe e a luta contra a opressão.

Igualmente datado de 1969 é o álbum Pongo en tus Manos Abiertas, onde se destaca a canção Preguntas por Puerto Montt — uma crítica ao Massacre de Pampa Irigoin, quando 11 camponeses foram assassinados pela polícia chilena, incluindo um bebê de três meses.

Nos anos seguintes, Víctor prosseguiu lançando álbuns que combinavam o folclore andino e os ritmos latino-americanos, sempre com letras engajadas e colaboração com os artistas da Nova Canção Chilena. Em 1970, ele lançou o LP Canto Libre, com a participação de Patricio Castillo e das bandas Quilapayún e Inti-Illimani. Depois, gravou El Derecho de Vivir en Paz, disco inspirado pelo movimento de oposição à Guerra do Vietnã, premiado com o Laurel de Ouro.

Governo de Salvador Allende

Víctor Jara participou com entusiasmo da campanha eleitoral de Salvador Allende em 1970. Integrante do Comitê Central das Juventudes Comunistas, ele ajudou a articular a ação política do movimento estudantil. Também foi responsável por compor a segunda versão da canção Venceremos, o hino entoado nos comícios e marchas da Unidade Popular (UP).

Em outubro de 1970, Allende foi eleito presidente do Chile — tornando-se o primeiro marxista a assumir o cargo de chefe de governo em uma democracia liberal. Nomeado embaixador cultural do governo da UP, o cantor liderou uma série de projetos voltados à mobilização das massas, incluindo o “Festival de la Unidad”, que reuniu artistas apoiadores da reforma agrária.

Víctor chefiou as missões culturais enviadas a Cuba e União Soviética e dirigiu a homenagem a Pablo Neruda, laureado com o Prêmio Nobel em 1971. Também lançou novos álbuns abordando as questões sociais (La Población, trabalho conceitual sobre as condições de vida nos “campamentos” chilenos), a cultura popular e o folclore (Canto por Travesura).

No teatro, o autor auxiliou Patricio Bunster na montagem de Los Siete Estados, um espetáculo experimental de grande porte, fundindo música e artes cênicas. Também compôs canções e vinhetas para a Televisão Nacional do Chile e lecionou no Departamento de Comunicações da Universidade Técnica do Estado.

Reagindo à articulação golpista dos setores reacionários, Víctor se somou às frentes voluntárias que combatiam os locautes e as paralisações dos empresários e caminhoneiros. Ele denunciou a campanha de desestabilização e convocou o povo a se engajar na defesa do projeto socialista.

O assassinato

Em 11 de setembro de 1973, Salvador Allende foi derrubado por um golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet e apoiado pelo governo dos Estados Unidos. Acossado pelo bombardeio ao Palácio de La Moneda, o mandatário chileno se recusou a renunciar e acabou por tirar a própria vida.

No dia seguinte, 12 de setembro, Víctor Jara foi preso durante a invasão militar ao campus da Universidade Técnica do Estado. Ele foi conduzido algemado até o Estadio Chile, um complexo esportivo de Santiago que fora convertido em um campo de concentração para os alvos da junta militar.

Victor ficou detido no local por quatro dias, mantido em isolamento e sem comida. Ele foi submetido a espancamentos e torturas brutais. Os militares esmagaram os ossos de suas mãos com coronhadas de fuzil, arrancaram suas unhas, cortaram sua língua e o queimaram com pontas de cigarros.

No dia 16 de setembro de 1973, Víctor Jara foi fuzilado. Seu corpo foi jogado em uma rua nos arredores do Cemitério Metropolitano, na Población Santa Olga, ao lado dos cadáveres de Littré Quiroga (seu companheiro de partido) e Eduardo Paredes Barrientos (militante do Partido Socialista).

Víctor Jara tinha 40 anos quando foi morto. A autópsia revelou 44 perfurações a bala e vários ossos fraturados. O necrotério o classificou como anônimo, mas a esposa do cantor conseguiu identificá-lo a tempo de evitar que fosse enterrado como indigente. Ele foi sepultado no Cemitério Geral de Santiago.

Joan Turner, a viúva de Víctor, passou décadas tentando identificar e punir os assassinos do marido. A responsabilidade do Estado chileno somente foi reconhecida em 1990, após a redemocratização e a criação da Comissão da Verdade. Ainda assim, os tribunais chilenos se recusavam a abrir inquéritos ou investigações formais contra os agentes da ditadura.

Foi somente em maio de 2009 que o Tribunal de Apelações de Santiago determinou a prisão de José Paredes Márquez, um dos assassinos do cantor. Três anos depois, no final de 2012, a justiça indiciou um grupo de soldados que atuavam no Estádio Chile no dia em que Víctor Jara foi executado.

Oito militares foram condenados à prisão em julho de 2018: Hugo Sánchez, Raúl Jofré, Edwin Dimter, Nelson Haase, Ernesto Bethke, Juan Jara Quintana, Hernán Chacón e Patricio Vásquez. As sentenças foram confirmadas pela Suprema Corte, mas vários réus receberam permissão para cumprir pena domiciliar em função da idade avançada. Hernán Chacón se suicidou antes de ser levado para a prisão.

Pedro Barrientos, outro acusado de participar do assassinato de Víctor, se refugiou nos Estados Unidos. Ele foi deportado para o Chile em dezembro de 2023 e aguarda a conclusão do julgamento.